Como conversar com filhos
Odorico Leal
Toni Erdmann (2016), da cineasta alemã Maren Ade, participa de um gênero de filmes bastante repisado: a história de reaproximação entre pais e filhos. Como de costume nesse tipo de produção, a caracterização de cada personagem carrega nas tintas dos contrastes: o pai, Winfried, professor de música de uma escola infantil, é quase improvável no gosto pelas pilhérias e joguetes, rompendo sempre os limites das convenções sociais por meio de um humor absurdista frequentemente sem graça; a filha, Ines, uma estrategista corporativa, parece patologicamente fechada ao mundo dos afetos, obsediada pelas chamadas do celular e protegida por várias camadas de selvageria empresarial e cinismo. Ambos os personagens são figuras exemplares do seu contexto histórico: Winfried é um despojo humano dos anos 60 – um suposto espírito livre que, na abertura do filme, aparece sugestivamente travestido de morto-vivo, vagando entre situações sociais que não comportam a atitude fingidamente lúdica que é sua marca registrada; Ines é o protótipo de um tipo de mulher moderna que vira as costas ao papel social tradicional, dispensando a fantasia de marido e filhos e adotando os valores agressivos e socialmente irrefletidos do mundo corporativo. A história de Toni Erdmann é a história de reaproximação entre Winfried e Ines, mas é também uma aula sobre como transformar personagens a princípio tão esquemáticos em figuras humanas de carne e osso.
Além do contraste esquemático entre os temperamentos do pai e da filha, Maren Ade, que assina o roteiro e a direção, trabalha o contraste entre modos de expressão e relacionamento, contraste pelo qual se chega ao significado profundo do filme. Não se deve perguntar quem é Toni Erdmann, mas, sim, o que é Toni Erdmann – Toni Erdmann é um experimento comunicativo, levado a cabo segundo os princípios cômicos esdrúxulos de Winfried. É um experimento necessário, porque aquilo que pai e filha precisam que exista entre eles não pode ser conjurado por meio de palavras – as palavras soam como clichês gastos que só convidam ao ceticismo. Também não pode ser preparado em situações formulaicas. Numa conversa na beira da piscina do hotel, o pai pergunta à filha sobre o que é importante na vida. É uma situação comunicativa inútil, que torna o discurso estéril: a filha responde com sarcasmo, devolvendo à pergunta ao pai, que não também não sabe o que responder. Mas ela também quer se comunicar. Do alto da sacada de seu apartamento, ela observa Winfriend entrar no táxi e partir, tendo fracassado no projeto de reconexão pelas vias tradicionais. Ela chora, talvez porque saiba que a morte ronda seu pai e que talvez nunca mais o veja. É a partir desse ponto de impasse que surge Toni Erdmann.
O que Winfried busca ao se transformar em Toni Erdmann e, mais tarde, na estranha e cativante criatura do folclore búlgaro é testar estratégias de comunicação que, abandonando métodos convencionais, apelam ao poético e ao absurdo a fim de gerar uma situação emocionalmente carregada, nas quais os termos mais simples e batidos ou o simples silêncio poderão ser vivenciados em toda sua potência. A sequência final do filme, desde a intrusão na comemoração de uma família de desconhecidos, passando pela festa desnuda – pela qual Ines adere ao método poético esdrúxulo do pai – até o encontro no parque entre a filha e o monstro imaginário, é uma jornada de descoberta – pela qual a filha se revela, mesmo naquilo que toda filha preferiria esconder -, em que tudo se desembaralha para se recompor, ao final, na beira do caixão da avó.
A morte está presente desde o começo do filme – em Winfried fantasiado de zumbi, na morte do cão que propulsiona a viagem à Bucareste, onde a filha trabalha, e que põe o filme em movimento. E é no enterro da avó que os dois, afinal, tendo se conhecido, abrem-se um ao outro, espelhando, agora, no mundo real, aquele encontro que se dera no mundo surreal entre uma Ines de camisola e Winfried de criatura búlgara. É um final ambíguo, em que Maren Ade acena, por um lado, para um desfecho esperançoso, pelo reconexão entre pai e filha, mas também terrível, pela sugestão de que esse reencontro é ditado também pelo terror do caos da morte, que faz com que as pobres criaturas humanas se agarrem umas às outras. É o que fica dos últimos segundos da película, quando o pai sai de cena para buscar uma câmera fotográfica, e ficamos com o plano fechado no rosto de Ines, que lança à distância um olhar vagamente perturbador. Acusado de pieguice, arrisco dizer que, no caso de Toni Erdmann, o sentimentalismo está nos olhos do espectador.