Roberto Cotta
A grande felicidade é que as crianças quando crescem esqueçam a instrução, sem o quê os próprios adultos não se poderiam mais entender. Aí tens: é ela, a instrução, que provoca o maior mal no homem…
(Maksim Gorki, O Pastor)
A propósito da mostra “Escola: Cidade Aberta” (2017), curada por Leonardo Amaral e por mim, com o financiamento da Caixa Cultural de São Paulo, apresentei umas breves notas aproximando estruturalmente os filmes Children (Terence Davies, 1976) e Nº27 (Marcelo Lordello, 2008). Mesmo percebendo os riscos trazidos por essa conjunção, muito me instiga a maneira como ambas as obras constroem noções acerca da instrução escolar como uma forma iminente de morte. Já que o acesso ao catálogo do evento ainda é restrito, resolvi reformular essa articulação de ideias e publicá-la nesta edição da Rocinante.
Contudo, antes de seguir adiante, é preciso ressaltar que tais filmes concentram suas premissas narrativas em dois jovens protagonistas imputados por uma morte cotidiana, algo capaz de suscitar uma sensação irreversível de abatimento e traduzir todos os males de uma juventude que precisa se enclausurar em si mesma para sobreviver. No média-metragem de Davies, ainda hoje sua obra mais irretocável, avistamos uma morte anunciada em dois tempos: o da infância, com sua tormenta entranhada na carne, e o da idade adulta, quando o tornado sai pela testa para se transformar em assombração permanente. No curta de Lordello, filme pernambucano que mais tem provocado nesses últimos anos, observamos uma morte implacável, aquela que apresenta sua cara e carrega sua foice diante de um grandioso evento: o momento derradeiro de uma decapitação pública.
Dois mundos, uma só sentença
Na calada da noite, quando o menino Robert Tucker amedronta-se diante do caixão que abriga o corpo do pai, a repressão atinge o grau máximo de evidência em Children. A noção estabelecida pela cena não poderia ser mais precisa: será impossível livrar-se da opressora figura paterna mesmo após sua morte. A reação ao cadáver também deixa claro o regime repressivo vivido na infância e a maneira como isso se traduzirá em herança inevitável. Os traumas durarão e, agindo com apatia às adversidades que encara, o adulto Robert sobreviverá aprisionado em caixotes, tal como acontecia quando criança. Comprovando esse fato, os flashforwards que atravessam o filme nos permitem acompanhá-lo anos depois, fragilizado por todas as imposições que lhes são legadas a vida inteira. O menino Tucker consegue se libertar de uma instância de poder que o apavora (seu pai), mas é aterrorizado pela responsabilidade precoce que tão logo carregará, assumindo o lugar do patriarca e tornando-se arrimo de família. É nesse momento que temos a certeza de que o protagonista sempre habitará um túmulo.
A sepultura inicial mostrada por Children está materializada na escola. O primeiro plano do filme apresenta a estrutura solene do colégio onde Tucker estuda. A instituição é vista de fora, grandiosa, secular, repleta de cômodos, cercada por muros. Depois disso, o personagem passará tempo substancial nesse lugar, acuado pelos alunos mais velhos, que zombam de seu porte franzino e especulam sobre sua sexualidade. A violência muitas vezes estoura, atuando como mecanismo de correção. Robert é agredido pelos colegas, castigado pelos professores e violentado pelo discurso de ordem que transborda em cada espaço físico do colégio. Dentro dele, as práticas corretivas são entendidas como forma de instrução. Lá fora, o mundo oferecido parece ainda mais aprisionador. O protagonista quase sempre está prostrado em ambientes internos: casa, quarto, clube, sauna, ônibus, sala de espera, consultório médico. Sem fôlego, Tucker se entrega indiferente às regras e hierarquias que esses limites espaciais impõem. Por isso, sua expressividade parece ter sido enterrada no mesmo caixão onde fora despejado o corpo do pai e deve permanecer encarcerada nele pra sempre. Como um morto-vivo, o lamento de Tucker se define num solitário grito abafado.
Já em Nº 27, a narrativa se concentra numa situação supostamente insólita, na qual o protagonista se vê obrigado a trancar-se no banheiro do próprio colégio. Nesse sentido, ao menos num primeiro momento, a tranca é vista como forma de refúgio. É preciso dela para se cercar de tudo que possa reprimi-lo, invertendo a percepção em torno de uma ideia naturalizada de cerceamento. O jovem Luís, adolescente que suja acidentalmente a camisa após uma dor de barriga, transforma o banheiro num jazigo para si mesmo, de modo que possa funcionar como campo de proteção e isolamento em relação a qualquer tipo de zombaria. O cômodo, então, torna-se um mundo à parte dentro da própria escola, onde a idolatria à ordem poderia, supostamente, encontrar alguma mínima condição de resistência.
Mas a instrução logo derruba seu muro. Pressionado pelos colegas, que querem entrar a todo custo, o personagem conversa com o coordenador do colégio, explicando-lhe o ocorrido. O diálogo é mostrado por entre obstáculos/abismos. Vemos apenas Luís e a parede, enquanto ouvimos o coordenador tentar convencê-lo a sair do banheiro. A porta trancada os separa, mas a persuasão da didática escolar logo consegue proporcionar sua abertura/ruptura. O rapaz sai desamparado e acaba trucidado por olhares e chistes durante o trajeto pelo corredor. Por sua vez, o coordenador o acompanha como se fosse um verdugo, conduzindo o adolescente para a sentença de morte. Definitivamente, não há mais qualquer chance de proteção e, agora, percebemos que o frágil túmulo outrora forjado deu lugar à reputação sepultada. Aos leões, o personagem é arremessado sem dó nem piedade, e a escola o devora antes mesmo que alguma nova jaula possa ser construída. A sala de aula se transforma em covil, a cacofonia dos colegas dilacera o horizonte e somente a imagem de seu rosto espinhento guardará os resquícios da inocência perdida. A morte está, de fato, consumada.