Ara Pyau: A Primavera Guarani (2018), de Carlos Eduardo Magalhães

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O olhar publicitário ou a otimização da revolta

João Campos

A princípio, o que chama atenção em Ara Pyau: A Primavera Guarani (2018) é a inesperada aliança entre povos indígenas e publicitários. A parceria resultou num estranho comercial Guarani, cujas imagens radiosas ofuscam mais que iluminam. Forjar o brilho através da técnica: esse é o esforço da obra.

Claramente bem intencionado e engajado na luta indígena, Carlos Eduardo Magalhães fez o filme a pedido do grupo. Em entrevista recente, ele afirmou: “Pode parecer um comercial da Eletrobrás, mas é um comercial dos índios. Eu venho da publicidade, eu tenho conhecimento da técnica publicitária e quis usar essa técnica a serviço desse cliente”[1]. A relação entre negociante e cliente, caracterizada pela otimização do tempo e por um imediatismo absoluto, se infiltra na mise-en-scène que o realizador compôs para os indígenas.

O tempo do filme é o agora imediato. O “comercial dos índios” nega toda história, purificando o presente de sua complexidade e desprezando diálogos com o passado e o futuro. A experiência de habitar (e reabitar) o mundo é, assim, barateada. A trilha pesada parece tentar suprir a lacuna que o registro mal feito não cumpriu, impondo uma carga dramática a um contexto que, por si só, já é dramático. A fotografia sempre busca o ângulo mais brilhoso dos índios, explorando recorrentemente (ou desesperadamente) efeitos lens flare, como um J.J. Abrams ou, mais precisamente, um publicitário otimizando ao máximo a imagem de seu cliente.

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O quadro pode brilhar, mas não ilumina o agora. Todo risco é evitado, o cineasta não investiga e nem dialoga, apenas acompanha. O esforço em construir uma imagem esvaziada e alegre da luta indígena faz de Ara Pyau um filme deplorável, mas um excelente comercial. A obra cumpre sua função propagandística de mostrar a face radiosa dos indígenas, expressando alegria e vitalidade a cada quadro, como no plano-sequência no qual duas crianças brincam com a câmera, numa coreografia que, novamente, encontra um lens flare qualquer para produzir uma iluminação artificial. Limitando-se aos rostos e ao brilho do sol, o cineasta foge da História e da experiência, se desviando, portanto, de elementos cabais para o documentário.

A fim de gerar um contraste, gostaria de mencionar dois filmes de cineastas ligados à luta indígena: Martírio (2016), de Vincent Carelli, Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho, e Conversas no Maranhão (1983), de Andrea Tonacci. Ambos negam o imediatismo a fim demostrar experiências complexas, em que distâncias temporais se reúnem em cena para o registro documentário. Carelli e Tonacci compõem histórias polifônicas, fazendo da câmera um instrumento expressivo para a construção de elos sociais e políticos. Ao abrir mão da excelência técnica que caracteriza filmes como Ara Pyau, os cineastas mencionados se jogam numa experiência investigativa em que fragmentos históricos, escavados de fontes diversas se inscrevem numa mise-en-scène imprevisível, claramente composta vis-à-vis à experiência das pessoas filmadas. A estrutura de Martírio e Conversas no Maranhão, salvo as grandes diferenças entre tais obras-primas, é essencialmente dialógica e diacrônica. Essa forma de filmar os outros – dialogando e investigando – não existe no filme de Carlos Eduardo Magalhães, preocupado em compor uma imagem romantizada e compadecida de seus amigos indígenas.

Em “A câmera e os homens”, Jean Rouch esboça belas palavras sobre o mundo de amanhã, chamando atenção para o papel do filme etnográfico no contato entre culturas: “somos bastantes a acreditar que o mundo de amanhã, esse mundo que estamos a construir, só será viável se tiver em consideração as diferenças existentes entre as culturas, se estiver decidido a não negar o outro transformando-o à sua imagem”[2] Infelizmente, Ara Pyau abre mão do filme etnográfico para explorar o caminho de transformar a alteridade em propaganda. Não devemos julgar essa estranha aliança, pois ela pode ter efeitos positivos no que tange à luta em que se engaja o grupo filmado por Carlos Eduardo Magalhães. Porém, creio não ser exagero dizer que o que vemos no ecrã não é um documentário, mas um comercial de pouco mais de uma hora repleto de “imagens reais”.

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[1]““Os índios não precisam de um cineasta branco”, destaca diretor de Ara Pyau”. Entrevista disponível em: https://www.opovo.com.br/vidaearte/2018/01/os-indios-nao-precisam-de-um-cineasta-branco-destaca-diretor-de-ara.html

[2] ROUCH, Jean. “A câmara e os homens”. In: Catálogo Jean Rouch. Lisboa: CinematecaPortuguesa – Museu do Cinema, 2011, p. 79.