Dias Vazios (2018), de Robney Bruno Almeida

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Dias vazios e duplos trágicos

Odorico Leal

Longa de estreia de Robney Bruno Almeida, Dias Vazios retrata angústias e perplexidades de adolescentes numa pequena e modorrenta cidade do interior de Goiás. Os dias vazios se repetem em ruas e bares vazios, nos monótonos corredores e salas do colégio católico onde os adolescentes estudam, dormem, fumam – um limbo onde prosperam apatia e desencanto.

É nesse cenário de tristezas e rancores silenciosos que encontramos Daniel e Alanis, namorados cursando o terceiro ano do ensino médio. No prólogo brevíssimo, sentado ao fundo de uma sala decorada por quadros cristãos, também eles vazios de sentido, Daniel esboça desenhos algo fantásticos nas margens da história que se esforça para pôr no papel – um romance retomando a tragédia dos estudantes Jean e Fabiana, ocorrida dois anos antes, agora já quase esquecida.

Às voltas com frustrações familiares, desorientação juvenil e conflitos de fé, e tocado pela vocação literária, Daniel, contrariando o curso do cotidiano da cidade e da escola, toma para si a missão de não esquecê-los. Por que Jean se mata? Onde está Fabiana? São essas lacunas que Daniel busca responder, valendo-se da imaginação e da fabulação artística de seus próprios conflitos afetivos.

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Do prólogo, saltamos para um primeiro capítulo ambíguo, que, a princípio, pode ser percebido pelo espectador como flashback, representando os últimos dias de Jean e Fabiana. O segundo capítulo, contudo, desestabiliza essa primeira impressão: diálogos e acontecimentos-chaves das vidas de Jean e Fabiana se repetem no cotidiano de Daniel e Alanis, sugerindo que aquele primeiro capítulo constitui não um flashback, mas a reconstituição imaginária do relacionamento de Jean e Fabiana, inspirada na experiência pessoal de Daniel e Alanis. Daniel, protorromancista, vale-se do símbolo do trágico casal de namorados para refletir sobre seus próprios medos, ressentimentos e angústias. Alanis reconhece isso, sente-se pessoalmente investida no romance do namorado e assim procura intervir constantemente no enredo da história de Jean e Fabiana.

Partindo dessa premissa, por todo o filme, as tramas dos dois casais se entrelaçam num jogo de simetrias que colocam o espectador em um clássico estado de suspense metanarrativo, hesitando temporariamente em atribuir os eventos à dimensão diegética da história ou à ficção imaginada por Daniel. O eixo dessa tensão – muito bem conduzida – envolve essa ambiguidade fundamental: por um lado, Jean e Fabiana, na dimensão ficcional do jovem romancista, são duplos metafóricos da experiência de Daniel e Alanis; por outro, Daniel e Alanis também são duplos de Jean e Fabiana, posto que são um casal de estudantes da mesma idade, frequentando a mesma escola, andando pelas mesmas ruas, sofrendo, hipoteticamente, de angústias similares, que podem ou não levar a destinos igualmente desoladores.

No terceiro capítulo, essa ambiguidade se dilui e nos achamos de fato dentro do universo imaginário do romance de Daniel, que se coloca agora como parte da história, interagindo com Fabiana, no papel de jovem que recebe por transplante o coração suicida de Jean. Aqui, Daniel imagina para Fabiana um desfecho inquietante e amargo. Todo esse capítulo constitui o ponto alto do filme, tanto pela condução cinematográfica competente como pela atuação emocionante de Nayara Tavares, numa longa sequência de desamparo e violência extrema que choca o espectador.

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Embora se possa atestar a qualidade cinematográfica de Dias Vazios – na belíssima composição de seus planos – e a engenhosidade invulgar de seu roteiro, é possível também fazer algumas ressalvas nada desprezíveis. O filme se passa na segunda metade dos anos 2000 – o conservador e pouco carismático Bento XVI é o Papa Emérito, ainda não existem os smartphones, nem a compulsão das redes sociais. Esse sentido histórico, contudo, quase não é aproveitado. A vida escolar, na verdade, pouco transparece. Há algo artificial e demasiadamente conveniente nessa escola católica em que adolescentes angustiados se revoltam contra Deus, desafiam freiras e contemplam o suicídio.

O mesmo se pode dizer do relacionamento dos adolescentes com os pais. Com exceção da freira que coordena a escola e de uma empregada doméstica que funciona como substituta parental, os adultos não dão as caras – são figuras ausentes representadas literalmente pela ausência, estratégia que, embora não destituída de valor simbólico, não deixa de reduzir o conflito familiar a um mero pretexto pelo qual se pretende conceder estofo à angústia dos personagens.

Assim, é possível dizer que, tendo em vista a argúcia metanarrativa do roteiro, menos negligência imaginativa na armação dos conflitos e motivações – sem meias palavras: menos clichês de angústia adolescente – tornaria a empreitada, por certo, exponencialmente mais difícil para os realizadores, mas também mais profunda, mais artística – e mais instigante para o espectador. Não obstante, o filme sustenta-se como excelente estreia, consagrando-se como destaque da mais recente edição do Festival de Tiradentes.