O Perfume da Senhora de Preto (1974), de Francesco Barilli

As essências do medo

Flávio C. von Sperling

O Perfume da Senhora de Preto (1974) é dos gialli que mais se aproximam da tradição gótica. Embora quando se faça essa associação entre o giallo e o gótico cinematográfico pensemos muito em fitas como Operazione Paura (1966), de Mario Bava, e o semi-díptico de Miraglia (La notte che Evelyn uscì dalla tomba (1971) e o superior La dama rossa uccide sette volte (1972)), que apresentam o gótico em sua superfície – geralmente lançando mão de toda uma iconografia já codificada pelo cinema –, é de uma maneira mais seminal que o gótico opera em O Perfume.

O filme de Francesco Barilli, o primeiro de suas duas obras no filão (sendo a outra Pensione Paura  (1977)) tem como parte de seu arcabouço o gótico que David Punter identifica como “ficção paranoica”, caracterizado pela ênfase na ambivalência da perseguição, pelo arraigamento na expressão psicológica dos conflitos, pela resistência a explicações e verificações convencionais e pela origem interna do “estranho” (o “retorno ao passado”, típico do gótico clássico, manifesta-se aqui de dentro para fora – é intranatural).

Embora essa definição caiba como uma luva no roteiro algo confuso de O Perfume da Senhora de Preto (que na verdade é fruto de um amalgamento de dois argumentos do diretor), todas essas articulações vão se manifestar de maneira visual no filme. Numa articulação tipicamente gótica, a paranoia da personagem é acompanhada pelo desenvolvimento e pela exacerbação das características expressionistas do mundo que a cerca e a oprime. O apartamento de Silvia (Mimsy Farmer), ensolarado e convidativo no começo do filme, gradativamente toma tons mais sinistros, como se fosse inundado aos poucos por um lamaçal. Tudo e todos se transformam em perigo iminente e figuras sinistras à medida que a paranoia de Silvia materializa-se e seus fantasmas do passado tomam forma. Até as personagens aparentemente mais simpáticas, como o vizinho Rossetti (Mario Scaccia) ou o porteiro (Renato Chiantoni), agora lembram serpentes retraídas prestes a disparar o bote.

Esteta austero, Barilli deixa evidente, em seus filmes, sua ligação com as artes plásticas, campo onde é muito mais ativo do que no cinema (o próprio cineasta diz não se considerar diretor, mas pintor). É curioso, em Pensione Paura, por exemplo, como alguns planos do filme nos remetem a quadros impressionistas: o primeiro plano de Rosa (Leonora Fani), remando o barco em meio ao caramanchão inundado, um tanto idílico, tem algo de um Monet ou de um Renoir. O mesmo acontece na cena onde as personagens de Jole Fierro e de Luc Merenda (uma espécie de Harry Lime wannabe) dançam à beira d’água. Essa atmosfera bucólica rapidamente dá lugar a tons mais sinistros, a outras pinturas cinematográficas de Barilli, numa modulação semelhante à que ocorre em O Perfume, porém um pouco mais vacilante.

Além do característico uso dos plongées, Barilli não raro opta por certa frontalidade da câmera, explorando de forma arguta a arquitetura e a profundidade de campo. Os corpos e elementos em cena estão quase sempre circunscritos no quadro, e muitas vezes se movimentam apenas no eixo da profundidade de campo. Vindo até nós, se afastando de nós. A câmera, quando se move, geralmente o faz de maneira lenta, gradativamente nos revelando um novo quadro (e/ou um novo elemento de perigo), enquanto os corpos em tela, em suas movimentações, o reconfiguram. O apuro estético é evidente. O comedimento com que Barilli usa o extracampo de forma dramática só aumenta a potência dos momentos em que ele o faz: geralmente numa situação em que, inesperadamente, a violência ou a ameaça (quase sempre um homem) irrompe do extracampo e viola o quadro, o espaço de segurança (ilusória) reservado à personagem.

Os gialli são quase sempre constituídos de set pieces e momentos narrativos que se intercalam. Estes, muitas vezes, são construídos de maneira mais prosaica e formulaica, em termos de linguagem, tendo por intuito principal levar a narrativa adiante ou explicar questões de caráter textual, enquanto os set pieces (em geral, sequências de violência, sexo ou suspense), despreocupados com a lógica narrativa, são elaborados e orquestrados para serem apreciados à parte, feito os números musicais em filmes do gênero. São os momentos em que os cineastas mostram, de fato, autoralidade, transgressão, empregando com mais afinco sua criatividade e inventividade (cineastas menores costumam, nos set pieces, cair num maelström de maneirismos e afetações). É aqui, no caso dos gialli, que mora o “verdadeiro filme”. Tomando emprestados os termos de Pasolini, os set pieces no giallo seriam o “cinema de poesia”, enquanto os demais momentos, de importância sobretudo narrativa, seriam o “cinema de prosa”. O Perfume da Senhora de Preto apresenta-se, nesse sentido, como um dos filmes mais poéticos (e mais autorais) do filão, pois parece constituído de um único grande set piece, ou de uma sequência ininterrupta deles, com alguns crescendos e alguns momentos mais ralentados, embora nunca estritamente a serviço da narrativa e nunca perdendo consonância com o resto do filme. A própria trilha musical, de Nicola Piovani, parece corroborar com essa ideia. Sem muitas variações, ela não chama atenção para si, evitando explicitar a marcação dos set pieces, como é usual nas trilhas de gialli.

O Perfume é imbuído em uma aura de tensão e de perigo iminente que paira sobre Silvia, um ar saturado que nos remete ao “perfume” do título. A saturação é marcante no filme todo, seja no espaço, nos planos onde parece operar uma espécie de força centrípeta, seja no décor (na saturação das cores ou, por exemplo, no horror vacui dos papéis de parede floridos, dos figurinos, etc). Além desse miasma de violência que ronda Silvia, vale lembrar também que o olfato é conhecido por ser o sentido das memórias involuntárias. Essas memórias, esses fantasmas do passado que se materializam para Silvia e para nós, surgem, geralmente, em superfícies reflexivas ou intermediados por instrumentos e procedimentos do olhar, e parecem ser encarnados a partir destes. A primeira aparição da mãe se dá no espelho. É na vitrine de uma loja que Silvia tem a impressão de ver o vaso que outrora fora de sua mãe (um vaso fálico, com direito a glande rósea, que posteriormente se materializa na casa de Silvia). Quando Silvia vê o estupro de sua mãe, embora veja a cena na cama à sua frente, ele acontece também refletido num espelho ao fundo do quarto. Silvia (e nós, em subjetiva dela) observa(mos) sua mãe pelo buraco da fechadura, antes que Silvia possa matá-la novamente (numa cena que será “espelhada” mais à frente, num dos suicídios mais singulares já filmados, no qual Silvia Criança (Lara Wendel) empurra Silvia Adulta varanda abaixo). O espelho e qualquer intermediador do olhar funciona aqui como um portal de passagem e materialização desses fantasmas e demônios. Não seria nossa tela de cinema também um desses intermediadores do olhar?