Três Anúncios para um Crime (2017), de Martin McDonagh

Fantasmas

Fábio Feldman

I

Em “Os Demônios”, Dostoiévski, inspirado por eventos reais, narra os planos de ascensão, as ações, estratégias, embates internos e a eventual derrocada de um grupo terrorista. Ainda que seja possível ler a obra enquanto uma arena onde a tipos filosóficos diferentes são dadas condições para que se digladiem; um ataque antimoderno a setores radicais da esquerda oitocentista; um proto-romance modernista, responsável por pavimentar caminhos para os Faulkners e Lobo Antunes do futuro; um proto-thriller, repleto de reviravoltas; um documento premonitório em relação ao nazismo, fascismo e outros sistemas autoritários que assolaram o século passado; ainda que seja possível lê-lo destas e de incontáveis outras formas, “Os Demônios” é, obviamente, um fruto de sua época – e, creio, representa-a com incrível aprumo sociológico. Segue, assim, se revelando como um dos mais belos (e assustadores) retratos da Rússia durante a segunda metade do século XIX. Apesar de suas especificidades, o texto cheira a história, tem sabor de história – e, em muitas passagens, me parece existir quase que exclusivamente em função da história.

Três Anúncios para um Crime (2017) não é nenhum “Os Demônios”, mas meu contato com ele, em parte, me transportou para um mesmo universo referencial: o da Arte Realista desenvolvida por, além de Dostoiévski, autores como Zola, Hugo, Stendhal, Dickens, e diretores como Lang, Lumet, Altman, Renoir e, de modo mais particular, o último Tati. Por mais variadas que sejam suas criações e por mais distintos os efeitos que provoquem, todas, em certa medida, com suas pletoras de personagens, tramas e subtramas, se configuram enquanto extraordinários espelhos das sociedades em que foram engendradas.

A ficcional cidadezinha de Ebbing, percebida sob um ângulo realista, torna-se uma espécie de microcosmo americano. Lá, progressistas, conservadores (com “bons” e “maus” corações), imigrantes, membros de grupos minoritários, caipiras, sobreviventes da guerra do Afeganistão, padres, espancadores de mulheres e uma série de outros tipos coexistem. Qual um pequeno mosaico, Três Anúncios pode ser lido sob chave sociológica: a absurda cidadezinha inexistente, pulsando em algum canto do estado de Missouri, é a América de Trump – violenta, perdida, incrivelmente polarizada. Finalizado seu “prólogo”, é a ela que o filme nos transporta. O som da ária é abafado pelo do carro da protagonista, Mildred Hayes (interpretada por Frances McDormand); a fotografia se torna mais colorida e vibrante, resgatando-nos de um espaço fantasmagórico; e o destino da protagonista é prenunciado em seus olhos.

II

Minha experiência com Três Anúncios, todavia, me sugere também, simultaneamente, dois outros universos referenciais – um deles sendo o das Farsas. Englobando das altercações dos “Ernests” de Wilde às tramoias do Tartufo de Molière; de vários dos escandalosos “Cantos da Cantuária” à vertiginosa “Comédia de Erros” shakespeariana; das trapalhadas de Basil Fawlty às estripulias do Inspetor Clouseau, o mundo da Farsa é um mundo pequeno, geograficamente limitado por barreiras bem definidas, mas extravagante, histriônico, repleto de improbabilidades e jogos. Tudo nele é demais: suas bases, seus arcos, o desenrolar dos destinos de seus caricaturais personagens. E tudo nele é contra: o lar imperfeito dos homens é tornado alvo para a risada revigorante. Como Flaubert e Kiarostami, também carregam seus espelhos – ainda que mais trincados, puídos, talvez roubados de Palácios em Parques de Diversão.

Dito isso, acho difícil pensar em Três Anúncios sem associá-lo à obra dos irmãos Coen, não apenas em função da presença de McDormand, mas pelo estilo de humor farsesco que tornou a dupla tão notória. Em certa medida, os Coen são precursores, no âmbito do cinema, do que poderíamos chamar de “Farsa pós-moderna”, na qual não apenas quase ouvimos o riso dos autores por trás das câmeras (a crueldade é um elemento constitutivo e quase fundante de qualquer boa Farsa), mas podemos extrair prazer do contato com realidades ambíguas, amparadas por faux-raccords, enquadramentos irônicos, estranhas intertextualidades, diálogos nonsense e, sobretudo na primeira fase de suas carreiras, flertes com uma estética cartunesca (não seriam episódios do Pernalonga e do Pica-pau, em certa medida, versões contemporâneas de Farsas também?). A um só tempo fãs confessos e dedicados do cinema clássico (onde tudo tem começo, meio e fim) e verdadeiros “demônios de combate” baudelairianos, Joel e Ethan ajudaram a redefinir as regras da Farsa americana, abrindo uma tradição que, posteriormente, viria a atrair figuras do porte de Alexander Payne, Edgar Wright, Aki Kaurismaki e, claramente, Martin McDonagh, diretor de Três Anúncios.

Tal “filiação” se me afigura enquanto óbvia, sobretudo, quando penso em dois pontos do filme: a arquitetura rocambolesca de certos núcleos, nos quais os personagens são gradualmente testados, pressionados e levados a seus limites; e o fato de que tal arquitetura é construída sobre um território absurdo. Como em Fargo (1995) ou Queime Depois de Ler (2007), no interior de um mundo pequeno, geograficamente limitado por barreiras bem definidas, os rumos banais de caricaturas banais são inflados a ponto de resvalarem no ridículo. A protagonista, misto de hippie à la Neil Young e herói de faroeste, começa postando outdoors; termina atirando cocktails molotov na delegacia e planejando o assassinato de um desconhecido. Seu parceiro, um típico clown, sujeito com pavio curto e predisposição para torturar negros, termina, após atirar um inocente da janela, fazendo verdadeiro serviço investigativo – e não chegando a lugar algum. Tudo se torna maior e mais ruidoso com o passar dos dias. Mas como nas farsas coenianas, o desfecho é frustrante, todo sound and fury, signifying nothing.

III

Tal caos é, nas telas, transformado por Joel e Ethan em, ambos, matéria-prima para gags e setpieces monumentais, equivalentes filosóficos de um grande “momento Hitchcockiano”. E é no modo com que lidam com um terceiro universo referencial – o da Tragédia – que McDonagh me parece divergir dos Coen.

Sinto que uma pulsão trágica move boa parte da filmografia dos irmãos (se não toda). Deus, para eles, pode estar mais próximo do enigma de Kierkegaard (“Aceite o mistério!”) do que do cadáver nietzschiano, mas a falta de sentido e os embates com ele estipulados são, via de regra, elementos motivadores da ação. Os arcos dos personagens, desde Gosto de Sangue (1984) e, sobretudo, Arizona Nunca Mais (1987), costumam se encontrar carregados de tragicidade – uma tragicidade moderna, que tende a descambar para o grotesco. Seja para o xerife, seja para o ladrão, seja para o judeu, seja para o ateu, seja para a atriz, o cantor, o gângster, o barbeiro monossilábico ou o dramaturgo autocentrado, a salvação é, provavelmente, uma quimera, e todos hão de ser, eventualmente, confrontados pela face da absurdidade. Diante de tamanha escuridão, surge a saída farsesca: é preciso imaginar Sísifo feliz – e aqueles que o filmam, gargalhando!

Esta não me parece ser a inclinação de McDonagh. Ainda que, provavelmente, dialogue formal e filosoficamente com os Coen, creio que sua postura mira mais a de Renoir. Seus heróis trágicos, lutando contra um fado cruel e intransponível (a belíssima cena de Mildred chorando entre os outdoors em chamas é, talvez, a que melhor explicite a natureza impossível de sua jornada), seguem sendo humanos, sangrando e sorrindo do mesmo jeito. Não são poucos os momentos em que McDonagh tenta se aproximar mais de Tolstói do que dos Coen, atingindo resultados variados. A presença de momentos dramáticos e da imposição de um esquema que busca representar a possibilidade de alianças conciliatórias (por vezes absurdas, como deixa claro o desfecho) dentro de um campo fragmentado, traz alguma luz a essa farsa realista de tons trágicos. Acredito, inclusive, ser tal humanismo renoiriano o ponto que mais oferece coesão conteudística a esse estranho filme que é Três Anúncios para um Crime: em um país lacerado, dominado pela ignorância política e circundado pelo horror existencial; em um país de minorias, padres, conservadores, progressistas e etc., captados por uma lente amplificadora, potencialmente tragicômica; nesse país onde não se escapa da morte, das debilidades físicas, da injustiça, do racismo e do preconceito – e onde deus pode ser um animal selvagem, um nada ou um cara gozador que adora brincadeira; nesse país onde todo herói tem um tanto de vilão e vice-versa, nada é mais necessário do que um bocado de compaixão.

IV

De uma perspectiva estrutural, Três Anúncios se me apresenta como, simultaneamente, um típico filme clássico hollywoodiano e uma sequência condensada de esquetes. Não há muito espaço para respiro, todas as cenas são encadeadas com precisão, embaladas num fluxo contínuo. Nesse sentido, lembra também o teatro renascentista, conjunto de obras que quase figuram como antologias de momentos de intensidade entrelaçados de forma firme, ainda que narrativamente frouxa. Há sequências inteiras do filme que me parecem, em termos de enredo, “desnecessárias”: o engraçadíssimo diálogo com o padre, a interação de Mildred com o cervo, a cena em que um copo de suco é ofertada pelo agredido a seu agressor. Ainda assim, suspeito que seria imprudente eliminar cacos que, não apenas oferecem acesso maior às realidades de Ebbing, como expandem o foco realista da obra.

Infelizmente, essa estruturação, dada a amarração de certas sequências, costuma deixar na boca um gosto desnecessário de esquematismo – um bom exemplo sendo o encadeamento entre o flashback no qual somos apresentados à filha de Mildred (imprescindível, a meu ver, para que compreendamos melhor a obsessão da protagonista e a essência de seus tortuosos sentimentos) à chegada do ex-marido. Essa montagem pode remeter a Shakespeare ou a Górki, mas ao público hodierno, acostumado com o imersivo modelo hollywoodiano, pode também ser interpretada como excessivamente didática e, por vezes, grosseira. Outro “problema” diz respeito a certos excessos do roteiro: Willoughby (Woody Harrelson) diz a Mildred que ela “alegadamente” sofreu abusos do ex; a filha repete a mesma frase poucas cenas depois; na sequência, o homem citado aparece e tenta agredir a protagonista…

Estranho como um filme tão “magro”, tão objetivo, tão clássico, pode, ao mesmo tempo, parecer uma frágil colcha de retalhos, atravessada por excessos e caracterizações reiterativas de personagens e situações que, sobretudo a partir do terceiro ato, se revelam classicamente fechados e modernamente abertos. Sinto que, em algum lugar, os pontos fracos da película se mesclam a seus pontos fortes. E o pendor sociológico de Altman, com seu humor seco e característica desesperança, alinhando-se à sanha indecorosa dos enfant terrible que são os Coen, dá à luz uma obra particular, com estilo de filme B, deliciosas gags pythonianas e uma série de outras que, definitivamente, serviriam melhor ao chão da sala de edição; um filme que diz muito de formas diferentes, ora nos remetendo à ternura difícil de obras-primas como A Grande Ilusão (1937), ora despencando em clichês de sitcoms e novelas; um filme sobre três protagonistas que, ao enfrentar o impossível (a morte do outro, a própria morte e condições material e intelectualmente desprivilegiadas), navegam entre a indignação e a galhofa no interior de planos clássicos, precisos, formalmente coerentes. Por vezes, nos arrancando risos, por vezes, lágrimas, por vezes, desconfiança.

É um filme estranho esse Três Anúncios para um Crime. Talvez quase tão estranho quanto o mundo que, com seus espelhos, visa refletir. Um mundo prenhe de futuros assustadores, carregado de uma esperança leve e atormentado por todo tipo de fantasmas.