Nabil Araújo
Para Emílio Maciel
Neste momento tumultuoso, em que a celeridade das mudanças vem sufocando a reflexão e o diálogo, mais que nunca é imperativo investir nas funções judiciosas, corretivas e orientadoras da crítica (Nicolau Sevcenko, “A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa”, 2001).
I
Inevitabilidade da crítica/Crítica da crítica
[…] we might remind criticism is as inevitable as breathing, and that we should be none the worse […] for criticizing our own minds in their work of criticism (T. S. Eliot, “Tradition and individual talent”, 1919)[1]
“A crítica é tão inevitável quanto respirar”, sentencia Eliot; de fato, parece improvável passarmos um dia sequer no qual, seja por palavras a outrem, seja por pensamentos a nós mesmos, não sejamos críticos, sob algum aspecto, a propósito de algo que vemos ou ouvimos, que lemos ou assistimos. Isso não nos deveria impedir, antes pelo contrário, de tentar criticar nossas próprias mentes em seu trabalho de crítica… Crítica da crítica: em que consiste, afinal, o “trabalho de criticar”?
II
Criticar é julgar
O termo kritikós – a partir do grego antigo krités, “juiz”, e krineín, “julgar” – foi usado para designar “juiz de literatura” já no século IV a.C., passando para o latim como criticus (Cf. René Wellek, “Concepts of Criticism” , 1963). Como todo krités, é de se esperar que também o kritikós julgue a partir de kritérion. Se compreendermos, por este termo, com Nicolau Sevcenko (“A corrida para o século XXI”, 2001), “os fundamentos relativos aos valores mais elevados de uma sociedade, em nome e em função dos quais os juízos e as críticas são feitos, os julgamentos são conduzidos e as decisões são tomadas”, precisamos distinguir, quanto a isso, a crítica na Antiguidade, na qual o valor estético não se dissociava do valor moral nem do cognitivo (pense-se na mímesis e na verossimilhança aristotélicas), da crítica na Modernidade, caracterizada justamente pela diferenciação e autonomização das esferas de valor cognitivo, moral e estético (Max Weber).
III
Modernidade crítica
Se coube a Kant a mais bem acabada e a mais influente formulação teórica da autonomia da esfera estética em face da cognitiva e da moral (“Kritik der Urteilskraft” [Crítica da faculdade do juízo], 1790), coube também a ele, e no mesmo gesto, a identificação do juízo de gosto com o “juízo reflexivo”, o qual se dá justamente na ausência de qualquer kritérion a priori (em contraposição ao “juízo determinante”, no qual o kritérion está dado a priori), um julgamento, pois, carente de princípio ou fundamento, de modo a instaurar o que se pode chamar de modernidade crítica:
aquela conjuntura na qual o crítico estético-literário tem reservados a si, e como nunca antes, um domínio e uma jurisdição que lhe seriam próprios e exclusivos, ao mesmo tempo que se vê privado do fundamento necessário à tomada de posse do referido domínio e ao exercício legítimo da referida jurisdição – fundamento esse que, portanto, deve ser doravante buscado, conquistado pelo crítico, e por ele estabelecido, finalmente, de maneira consensual (Nabil Araújo, “Da teoria como resposta: a modernidade crítica e o (ter) lugar da teoria literária”, 2016).
Essa busca pelo fundamento autoinstituidor e autolegitimador da crítica de arte e literatura traduziu-se numa progressiva emergência de pretensas respostas à subjetivação radical da estética no âmbito da modernidade pós-kantiana: respostas que se revelam possíveis mas não compossíveis à busca pelo kritérion estético, isto é, elas não são, como respostas, concomitantemente possíveis, mas mutuamente excludentes, e isso em sua origem mesma: a própria emergência de uma delas como resposta implica justamente a negação das demais como respostas. “Qualquer uma delas, pois, que emerja dessa disputa como ‘a’ resposta há de permanecer assombrada por aquela incompossível possibilidade outra que tivera de negar e recalcar para se instituir e se legitimar como resposta” (Nabil Araújo, “Da teoria como resposta”, 2016). Na medida mesma em que essas possibilidades de respostas incompossíveis se prenunciam agonisticamente no horizonte crítico contemporâneo, necessário se faz redefinir, contemporaneamente, a própria natureza do julgamento implicado pela crítica estética.
IV
Julgamento inaugural e crítica
Le concept de critique, en tant qu’il implique la décision sous la forme de jugement et la question au sujet du droit de juger, a ainsi un rapport essentiel, en lui-même, à la sphère du droit (Jacques Derrida, “Force de loi: le fondement mystique de l’autorité”, 1994).[2]
O conceito de crítica implica a decisão sob a forma de julgamento (bem como a questão a respeito o direito de julgar) – e, nessa medida, guarda uma relação essencial com a esfera do direito. Derrida recupera aí o laço fundamental, desfeito em Kant, entre o kritikós e o krités, ambos voltados, afinal, a krínein à luz de kritérion. Se só pode julgar seguindo uma regra de direito ou uma lei geral, um juiz [krités/kritikós] deve não obstante “assumi-la, aprová-la, confirmar seu valor, por um ato de interpretação reinstaurador, como se, no limite, a lei não existisse anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso”.Este “julgamento inaugural” deve, pois, “ser conforme a uma lei pré-existente, mas a interpretação reinstauradora, reinventiva e livremente decisória do juiz responsável requer que sua ‘justiça’ não consista somente na conformidade, na atividade conservadora e reprodutiva do julgamento”(Cf. Jacques Derrida, “Force de loi”, 1994).Se não se confunde, pois, com o juízo determinante, no qual “se aplica tranquilamente uma boa regra a um caso particular, a um exemplo corretamente subsumido”, o julgamento que Derrida então denomina inaugural também não se confundiria com o juízo reflexivo, posto que, nele, tudo se passa apenas como se a lei não existisse anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso, e não, de fato, numa ausência efetiva e absoluta de toda e qualquer lei ou regra, já que ele “deve ser conforme a uma lei pré-existente”, já que, nele, a decisão “deve seguir uma regra de direito ou uma lei geral”. Aqui se faz necessário retomar o que Derrida afirma acerca do indecidível como a urgência mesma de uma decisão impossível a partir “[d]a oscilação ou [d]a tensão entre duas decisões”; a partir “[d]a oscilação entre duas significações ou duas regras contraditórias e muito determinadas, mas igualmente imperativas”(Cf. Jacques Derrida, “Force de loi”, 1994). Ora, trata-se, aí, como se vê, não de uma ausência absoluta de regras (juízo reflexivo), e sim, ao contrário, de uma potencial abundância delas; na medida, contudo, em que as regras em questão seriam igualmente imperativas, e, a um só tempo, contraditórias entre si, elas se apresentam, no momento do julgamento, como igualmente possíveis, mas não compossíveis, isto é, não possíveis ao mesmo tempo. Daí que uma decisão seja requerida não apenas em face do objeto do julgamento (“bom” ou “mau”, “culpado” ou “inocente”, etc.), mas também, e concomitantemente, em relação à própria regra que permitiria, enfim, o julgamento do referido objeto como “isto” ou “aquilo”. Daí que a regra emerja, em cada caso, como o efeito de uma decisão impossível – em contraste com a mera aplicação de uma regra a priori a um caso particular –, decisão esta que, ao largo da pretensa “tranquilidade” que acompanha o juízo determinante, permanecerá, como tal, assombrada pelo indecidível. Projeta-se no horizonte crítico contemporâneo a mesma oscilação entre regras contraditórias e muito determinadas, mas igualmente imperativas, que Derrida divisa quando trata do indecidível, mas também a mesma urgência de uma decisão impossível em face dessa oscilação, a mesma urgência, em suma, de um julgamento inaugural, na forma de uma dupla decisão no indecidível, sem o qual, na verdade, não há verdadeiro ato crítico:
a decisão em jogo no ato crítico diz respeito não apenas ao juízo de gosto perante a obra lida, mas também, e de um só golpe, ao princípio teórico à luz do qual o referido juízo de gosto se faz possível – princípio teórico esse que, por isso mesmo, não se encontra, em nenhuma medida, dado a priori e pronto para ser aplicado, mas que deve ser obtido no próprio ato crítico, o que se quer, então, chamar de ato crítico confundindo-se, na verdade, em larga medida, com essa obtenção de princípio. Essa obtenção – enfatize-se – traduz-se numa determinada escolha, numa determinada decisão, aquela entre possibilidades diversas e divergentes de princípios teóricos para o juízo de gosto inerente à prática crítica, uma decisão em ato, pois, para a qual, bem entendido, não há nem pode haver nenhuma garantia externa ao próprio ato crítico como ato de escolha, dupla (Nabil Araújo, “Por uma pedagogia literária do ‘como se’”, 2017).
V
Crítica e democracia
The creation of democratic forms of individuality is a question of identification with democratic values and this is a complex process that takes place through a diversity of practices, discourses and languages games. […] As Derrida stresses, without taking a rigorous account of undecidability, it is impossible to think the concepts of political decision and ethical responsibility (Chantal Mouffe, “Deconstruction, Pragmatism and Democracy”, 1996).[3]
Como julgamento inaugural, dupla decisão no indecidível,julgamento atravessado, enquanto performance aporética, justamente pela indecidibilidade à luz da qual se torna possível pensar os conceitos de decisão política e de responsabilidade ética, o ato crítico apresenta-se como uma das práticas, discursos e jogos de linguagem capazes de proporcionar, sobretudo na atual conjuntura de desafeição pela democracia, aquela identificação com valores democráticos que, segundo Mouffe, se encontra na base da criação de formas democráticas de individualidade. Daí a urgência de uma nova pedagogia estética, voltada para o desenvolvimento de uma competência crítica aporética a serviço do debate ético-político numa esfera pública democrática.
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[1] “[…] poderíamos lembrar que a crítica é tão inevitável quanto respirar, e que não deveríamos estar de modo algum em piores condições […] por criticarmos nossas próprias mentes em seu trabalho de crítica.”
[2] “O conceito de crítica, na medida em que implica a decisão sob a forma de julgamento e a questão a respeito do direito de julgar, tem assim uma relação essencial, em si mesmo, com a esfera do direito.”
[3] “A criação de formas democráticas de individualidade é uma questão de identificação com valores democráticos, e este é um processo complexo que tem lugar através de uma diversidade de práticas, discursos e jogos de linguagem. […]Como Derrida enfatiza, sem levar em rigorosa conta a indecidibilidade, é impossível pensar os conceitos de decisão política e de responsabilidade ética.”
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Bibliografia
ARAÚJO, Nabil. Da teoria como resposta: a modernidade crítica e o (ter) lugar da teoria literária. In: CECHINEL, André (Org.). O lugar da teoria literária. Florianópolis: EdUFSC; Criciúma: Ediunesc, 2016. p. 179-215.
ARAÚJO, Nabil. Por uma pedagogia literária do “como se”. In: CECHINEL, André; SALES, Cristiano (Org.). O que significa ensinar literatura? Florianópolis: EdUFSC; Criciúma: Ediunesc, 2017. p. 31-57.
DERRIDA, Jacques. Force de loi: le fondement mystique de l’autorité. Paris: Galilée, 1994.
ELIOT, T. S. Tradition and individual talent [1919]. In: ______. Selected prose of T. S. Eliot. Harcourt: San Diego/New York/London, 1975.
KANT, Immanuel. Kritik der Urteilskraft. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1974 [1790].
MOUFFE, Chantal. Deconstruction, Pragmatism and the politics of democracy. In: ______ (Org.). Deconstruction and Pragmatism. Routledge: London/New York, 1996. p. 1-12.
SEVCENKO, Nicolau.A corrida para o século XXI:no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
WELLEK, René. Concepts of criticism. New Haven/London: Yale University Press, 1963.
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Sobre o autor:
Graduado em Letras, mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Nabil Araújo é professor de Teoria da Literatura na graduação e na pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Líder do grupo de pesquisa interinstitucional Retorno à Poética: imagologia, referenciação, genericidade. Organizou A crítica literária e a função da teoria: reflexão em quatro tempos (2016) e Imagens em discurso: efeitos de real, efeitos de verdade (no prelo), coorganizou Variações sobre o romance (2016), Variações sobre o romance II (2018) e Imagens de Fausto: história, mito, literatura (2017).