Entrevista com Jonathan Rosenbaum

Por Fábio Feldman

“Não posso responder isso”. Foi assim que Jonathan Rosenbaum rebateu minha pergunta acerca do que caracteriza o texto crítico. Meticuloso, o entrevistado sabe que a essência de seu labor não pode ser resumida no interior de uma mera resposta.

Tendo, ao longo de quase cinco décadas, publicado textos em revistas como Sight & Sound, Film Comment e Cahiers du Cinéma, e lançado mais de quinze livros, Rosenbaum se firmou enquanto referência mundial, influenciando gerações de escritores e conquistando o respeito de diversos artistas (“Ele é um dos melhores; não temos autores como ele na França de hoje” disse, certa vez, Jean-Luc Godard).

Em entrevista exclusiva à Rocinante, Rosenbaum, entre outras coisas, se pronuncia sobre o papel do crítico na sociedade, divide várias de suas influências, menciona estratégias que marcam seu particularíssimo estilo de prosa e reflete acerca do estado da crítica e do cinema contemporâneos.

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O que, essencialmente, caracteriza o texto crítico? E o que o diferencia de outros gêneros discursivos?

Não posso responder isso.

Qual você acredita ser o papel do crítico na sociedade? Quando escreve, você possui um objetivo específico em mente?

Bem, basicamente, meu papel é auxiliar em discussões públicas. Já meu objetivo é ser lido e considerado por pessoas que gostam de ler e considerar o que eu escrevo.

Em sua opinião, o que separa um grande crítico de um crítico medíocre? Uma vez que estamos falando sobre um gênero textual ligado a obras de natureza subjetiva, como podemos atestar a legitimidade ou ilegitimidade de qualquer interpretação?

Um grande crítico altera o modo como pensamos, observamos e ouvimos. Um crítico medíocre apenas diz o que devemos ver. Eu não acredito que legitimidade seja um valor legítimo. Prefiro considerar precisão, interesse, aptidão e provocação.

Algo que lhe separa de muitos críticos americanos é sua tendência a escrever de modo menos parafrásico e mais ensaístico. Você poderia dividir conosco algumas de suas influências?

Duas de minhas maiores influências ou modelos críticos são Manny Farber e Erich Auerbach. Em termos de escrita, eu destacaria, sem ordem específica, Faulkner, Proust, Mailer, Pynchon, Godard, Sontag e Edmund Wilson.

Acho interessante o fato de, além de Farber e Auerbach, você mencionar tantos romancistas. Sabemos que muitos críticos, ao longo dos séculos, conceberam suas obras como manifestações artísticas. Não tenho certeza sobre a opinião de Farber acerca do assunto, mas ele, certamente, escreveu com o vigor esperado de grandes autores de ficção. Você possui uma opinião sobre isso? Pensando em sua própria prática, acredita que o texto crítico se relaciona de algum modo com o artístico?

Farber concluiu o que considero seu último grande texto crítico – uma entrevista de 45 páginas na qual ele, Patricia Patterson e o entrevistador Richard Thompson trabalharam como se fosse um ensaio, e que fechou a versão expandida de 1998 de “Negative Space” – da seguinte forma:

“Eu trabalho com pinturas, mas não mais do que com crítica. Dou boas risadas de artistas que ridicularizam os críticos como parasitas ou artistas fracassados – que piada horrível. Não posso imaginar uma forma de arte mais perfeita, uma carreira mais perfeita do que a de um crítico. Não consigo imaginar nada mais valioso a se fazer, e sempre senti isso.”

Não apenas concordo totalmente com Farber, como duvido que teria permanecido exercendo a função de crítico por tanto tempo se não me considerasse um artista. Eu escrevi três romances (nenhum publicado), assim como muitos contos (uns poucos deles podem ser encontrados em meu website), e diria que há tantas decisões artísticas, estilísticas e formais em minhas melhores críticas quanto em minha ficção.

No momento, estou preparando duas coletâneas que serão publicadas como volumes complementares em 2018 e 2019 – “Cinematic encounters: Interviews and dialogues” nesse Novembro e “Cinematic encounters: Portraits and polemics” em 2019 – e são concebidos como dípticos, assim como foram meus primeiros livros, “Moving places: a life at the movies” e “Placing movies: the practice of film criticism”, sendo o primeiro deles explicitamente literário.

Ambos esses “dípticos” foram construídos dialeticamente, com efeitos de rima e “diálogos” implícitos. Além disso, em “Placing movies”, discuto algumas das estratégias artísticas empregadas em ensaios neles incluídos – como a combinação do número de itens inseridos em listas de filmes e notas de rodapé num ensaio sobre misturas de documentário e ficção desenvolvidas por Orson Welles; ou o modo como uso citações sem fonte relativas a mapas para introduzir seções em um ensaio sobre Raul Ruiz. Mais recentemente, para citar outro exemplo, escrevi um ensaio sobre Paterson (2016), de Jim Jarmusch, imitando a estrutura em sete partes do filme, que representa os dias de uma semana.

A meu ver, a crítica pode ser considerada uma forma de ficção envolvendo a construção artificial de um universo imaginário, no qual várias interações são examinadas, analisadas, ponderadas e discutidas.

Nós geralmente associamos neorrealismo e muitos outros movimentos que surgiram durante as décadas de 50 e 60 ao nascimento do cinema moderno. Foi também durante esse período que críticos como Bazin e os Jovens Turcos, com seus modos específicos e individuais, guiaram a crítica cinematográfica rumo a novos espaços. Quão grande foi o impacto dos Cahiers du Cinéma (e das ideias básicas defendidas pelo grupo) sobre o jovem Jonathan Rosenbaum? E o que você acha do fato de tantos novos movimentos (como a Nouvelle vague, a Nūberu Bāgu e o Cinema Novo, apenas para citar alguns) terem sido liderados por críticos?

Os Cahiers du Cinéma, ao lado de vários críticos americanos e ingleses (como Agee, Durgnat, Farber, Kael, Dwight Macdonald, Sarris e Robin Wood), exerceram um enorme impacto sobre mim, embora, talvez, apenas Agee e Farber tenham se aproximado da crítica com intenções artísticas explícitas. (Por outro lado, devo notar que Robin Wood também escreveu romances – um dos quais foi publicado postumamente e é bastante poderoso.)

O fato de certas “novas ondas” terem sido lideradas por críticos e ex-críticos me parece um desenvolvimento natural e lógico. Em relação a mim mesmo, entretanto, nunca fui muito tentado a fazer filmes, pois valorizo a liberdade dos escritores de possuir os frutos de seu trabalho e os meios materiais para desenvolvê-lo. Cineastas, geralmente, precisam implorar por dinheiro ou pegar emprestado, o que prefiro sempre evitar. Ao mesmo tempo, reconheço plenamente que dependo de outros para publicação e apoio.

Você desenvolveu amizades com grandes diretores ao longo dos anos. O que aprendeu com eles? Seu contato direto com tais artistas influenciou seu trabalho como crítico?

Aprendo coisas diferentes com pessoas diferentes. Com Samuel Fuller, aprendi que uma pessoa pode ser extremamente pessimista e ainda aproveitar a vida ao máximo. Com Jacques Tati, como cineasta, aprendi a lidar com a sobrecarga sensória nas cidades ao aprender a olhar para as coisas diferentemente. Godard me ensinou muito quando disse em uma entrevista: “Gostaria de ser considerado como um avião, não um aeroporto”.

Qual é sua opinião sobre a crítica online? Existem vozes emergentes que lhe interessam?

Tenho diferentes opiniões sobre diferentes escritores. E sim, existem diversas vozes interessantes – e nem todas são emergentes. Valorizo muito autores como Adrian Martin, Chris Fujiwara, James Naremore, Janet Bergstrom, Girish Shambu, Nicole Brenez, Ignatiy Vishnevetsky e Murielle Joudet.

No fim de “Easy Riders, Raging Bulls”, seu livro sobre a Nova Hollywood, Peter Biskind, provocativamente, atesta que o declínio do período foi iniciado quando listas de bilheteria passaram a ser publicadas. A audiência começou a se interessar menos por originalidade, pelas opiniões dos críticos e até pelo boca a boca, e mais por resultados comerciais, conectando-os à qualidade. Cortemos para 2018: Hollywood continua nos servindo blockbusters ridiculamente caros (e lucrativos) e sites como Rotten Tomatoes e Box Office Mojo se tornaram fontes de orientação para muitos frequentadores de cinema. Qual é sua opinião sobre tal fenômeno?

Meu impulso é culpar os “planejadores culturais” mais do que à audiência, que, frequentemente, pelas mãos dos estúdios e corporações, sofre lavagem cerebral, sendo levada a evitar muitas das opções que poderia ter. Dito isso, Biskind me parece ser mais um desses planejadores culturais, não alguém cujos escritos visam expandir o leque de escolhas dos espectadores. “Easy Riders, Raging Bulls” é, sobretudo, um livro de fofocas que tende a condenar cineastas ou por usarem drogas ou por serem caretas e não usarem drogas. Sua reputação, como a de David Thomson, é amplamente baseada em dizer às pessoas o que elas acreditam já saber e, então, congratulá-las por seu discernimento. É por isso que, em seu livro sobre Warren Beatty, ele assevera que Beatty dirigiu mais grandes filmes do que Orson Welles, e em seu extremamente longo tratamento de Ishtar (1987), nunca reconhece a dimensão política do filme, que ridiculariza a estupidez dos Estados Unidos no Oriente Médio – embora Biskind se considere um esquerdista, orgulhoso por, certa vez, ter sido comparado por Beatty a Leon Trótski. E por que ele subestima ou ignora o lado político de Ishtar? Aparentemente, porque não quer ameaçar as opiniões de executivos de Hollywood.

Finalmente, algum conselho para jovens homens e mulheres que queiram se tornar críticos de cinema?

Acredite no que você está escrevendo mais do que no efeito que terá sobre sua carreira. Tente contribuir com algo que não está sendo oferecido por ninguém. Certifique-se de ler textos de outros – e não apenas textos críticos. E, acima de tudo, tente ser não apenas um “especialista” que escreve sobre filmes num vácuo, mas alguém que escreve sobre o mundo e o que o cinema tem a dizer ou fazer nesse mundo.