Andrea Ormond
Ainda vou fazer um livro-inventário das reações de amor, ódio, euforia, injúria e desespero aos meus textos sobre Tropa de Elite (2007), Nosso Lar (2010), moneychanchadas, Aquarius (2016) e, nos últimos dias, Baronesa (2018). Só para dar de presente a quem insistir em afirmar que a crítica de cinema perdeu relevância no século XXI.
Cassandras não percebem um fenômeno delicioso: a democratização da opinião, típica do mundo contemporâneo, proporcionou à crítica de cinema um renascimento vigoroso. Mesmo quem trabalha na imprensa tradicional, hoje alcança muito mais leitores do que um crítico de 1990. E o livre transitar de profissionais – entre blogs, revistas, jornais impressos – gera acúmulo de experiências e novas possibilidades, cada vez mais amplas e sofisticadas.
Escrevo sobre cinema desde que me entendo por gente. No início dos anos 90, com 14, 15 anos virei uma consumidora compulsiva de videolocadoras, ao ponto de alugar dez, doze fitas de uma só vez. Tinha sorte de morar em uma cidade e um bairro – Rio de Janeiro, Copacabana – onde as videolocadoras só competiam em quantidade com as farmácias, os puteiros e os botequins.
Assistindo ao documentário CineMagia: A História das Videolocadoras de São Paulo (2017), confirmei a revolução mental que a locação de filmes promoveu na minha geração. Era prenúncio do futuro. Não dependíamos mais de programadores de salas, curadores de mostras – sujeitos sempre a contingências extra-fílmicas –, e isso possibilitou a cada um construir seu próprio repertório. Ninguém imaginava, mas dali a poucos anos, jovens de diversas partes do Brasil criariam blogs e revistas, em parte sobre os títulos que garimpavam nas locadoras. E que formaram memórias afetivas singulares e poderosas. Sábio foi Carlos Reichenbach, homem da velha guarda, quem melhor entendeu o novo fenômeno em tempo real. Reichenbach legitimou, não desdenhou – como tantos – de quem estava chegando, com sonhos nos olhos.
Os sites de torrents e os fóruns de compartilhamento são a linha evolutiva natural da saudosa febre das locadoras. Se o leitor passou dos 40 anos, fez parte da primeira geração a escolher, de modo objetivo, aquilo que lhe interessava dentro do universo dos filmes. A cinefilia perdeu o sentido gregário – leiam “Geração Paissandu”, do crítico carioca Rogério Durst – e ganhou uma conotação esotérica e egoísta. Escrever sobre cinema vem seguindo o Zeitgeist. Antonio Moniz Viana e José Lino Grünewald dialogavam com um cânone muito bem estabelecido. Hoje, o crítico é livre para criar ou destruir quantos cânones desejar.
Se tudo é permitido, se toda norma e todo conhecimento são relativos, o que então diferencia o “bom crítico”? A resposta óbvia seria concluirmos que a epítome acaciana do “bom crítico” – lembrei do O Bom Marido (1978), de Antonio Calmon – em 2018 é aquela que influencia o maior número de pessoas. Notem que a dureza e estupidez da meritocracia contemporânea, medida pela frieza de likes, oculta a miríade de sutilezas da vida. E uma opinião incômoda, polêmica, pode até não ser a mais popular em repercussões efêmeras, para criar – nas brumas dos algoritmos – impressões duradouras.
Em um país pobre e periférico como o Brasil, a questão se complica. Suscetível a estigmas – lembro quando chamavam o Estranho Encontro de “blog de pornochanchadas” –, o crítico e pesquisador de arte termina por capitular a um consenso, a um Grande Outro imaginário que o sustente no meio que escolheu. Se você for mulher, a situação piora. A mulher é como o negro: tem que provar duas, até três vezes qualidades e potenciais que aos homens (brancos) bastam. Ao provar, ainda tem que conviver com o ressentimento de não se encaixar nos papéis pré-moldados pelo arbítrio masculino.
E nada disso são idiossincrasias do cinema. Em qualquer campo do país, o medo do desagrado – e do desagravo, do rechaço público – vem sendo enorme, paralisante. Baseados no inferno da cordialidade, que ferve junto com o politicamente correto, excelentes críticas e críticos tornaram-se estéreis, improdutivos. Tal fenômeno alimenta um ciclo vicioso e hipócrita. Imagino o dia em que nenhum crítico brasileiro marcará, na postagem do Facebook, o nome do diretor sobre quem escreveu um texto elogioso. Autor carente, sem autonomia – parodiando Millôr Fernandes – é armazém de secos e molhados.
Longe da crítica-maternagem, pensar nos filmes torna-se um exercício leve e lúdico. Creio que vaticínios de que “a crítica de cinema está morrendo” são, na realidade, manifestos neuróticos diante da vigilância incondicional a que somos submetidos. A verdade é que, bons ou ruins, os filmes de Roberto Santucci ou Como se Tornar o Pior Aluno da Escola (2017), por exemplo, fornecem ao analista um projeto tão rico de observações quanto Aquarius. Cabe ao crítico colocar a imaginação para funcionar, levantar pontes e saídas, em vez de emular um distanciamento, quase nojinho, que em 1973, no Caderno B do Jornal do Brasil, já pareceria vazio e artificioso.
Gosto também da ideia de que o bom texto sobre cinema é aquele que transcende o exercício meramente contextual e analítico, reinventando-se na tradição ligada à crônica literária. Um posicionamento bastante vantajoso para animar debates mornos em quartas-feiras chuvosas, e que provavelmente forjou-se a partir da minha vivência como alguém que estudou Letras e Direito, e construiu uma formação autodidata no tema. Percebo que meu repertório – aquele das videolocadoras –, aliado ao constante aprendizado, seriam inúteis se, na prática, não me dedicasse a escrever o melhor possível. Leitor gosta de sedução, enredo. Sem enredo, não se compõe nem bula de remédio.
Ah, o prazer da escrita! Tenho saudade da época em que, estudante de Direito na PUC-RJ, conciliava a faculdade com a feitura obsessiva do blog. A maior saudade é dos entrevistados que se foram: José Louzeiro, aos 73 anos, contava histórias com uma vitalidade impressionante. Alberto Salvá, muito doente, concedeu um depoimento tão rico e generoso, que ainda utilizo como fonte de consulta e inspiração. Pedro Camargo, em um reencontro emocionante na PUC deserta, pleno janeiro de férias. Quando mudei para São Paulo, gostava de telefonar para Mauro Alice ou visitá-lo em seu apartamento térreo na Brasílio Machado. Falávamos sobre Khouri, o ofício do montador, cinema silencioso, e Mauro me repreendia por colocar adoçante no chá: “Estraga o sabor delicado!” Até hoje não adoço quase nenhuma bebida por causa dele. Espero que, de onde estiver, saiba que aprendi.
Embora não deixe de utilizar com moderação, detesto termos como “cinema paulista” – o cinema feito em São Paulo é maior que provincianismos – “cinema marginal” – “marginais” sempre existiram, continuam a existir – e até o onipresente “cinema novo” – do mundo para a afetação de Ipanema. O cinema brasileiro representa um denominador comum de nossas culturas, que não necessita de muletas ou rótulos. Certas elites o maltratam não é à toa. Povo que se enxerga no espelho ganha poder.
Para finalizar, as questões que me motivam desde que publiquei um primeiro texto, no distante setembro de 2005: se a Internet nos ofereceu tanta liberdade e janelas para a circulação de reflexões, por que não produzir textos saborosos, resgatar personagens subestimadas, descobrir novos paradigmas? No fundo, escrevo exatamente o que gostaria de ter lido da pena de outros críticos quando era adolescente, o que me traria imensa alegria e conforto intelectual e espiritual.
______________________________
Sobre a autora:
Formada em Letras e Direito pela PUC-Rio, Andrea Ormond é escritora, além de curadora e crítica de cinema. Autora da trilogia de livros “Ensaios de Cinema Brasileiro – Dos Filmes Silenciosos ao Século XXI”. Mantém desde 2005 o blog Estranho Encontro, exclusivamente sobre cinema brasileiro. Colabora na Folha de São Paulo e na revista Cinética, tendo participado das revistas Filme Cultura, Rolling Stone, Teorema e dezenas de coletâneas e catálogos de mostras. Na ficção publicou os livros “Longa Carta Para Mila” (2006) e “Rainha” (2017). Curadora da Curta Circuito – Mostra de Cinema Permanente em Minas Gerais e do Cineclube Franco-Germânico no Rio de Janeiro.