Um diálogo improvável
Daniel Rodriguez
Ilha dos Cachorros (2018) marca o retorno de Wes Anderson ao universo das animações em stop-motion, que já havia visitado em O Fantástico Sr. Raposo (2009). Fazendo-se valer de um formato majoritariamente direcionado ao público infantil, tendo em mente a amplitude de possibilidades estéticas e imagéticas que o mesmo oferta, Anderson escreve e assopra vida em seu microcosmo canino. A comunicação é elemento fundamental na estruturação do filme, partindo do próprio título original – Isle of Dogs –, que possui sons homófonos à pronúncia de I Love Dogs. Mais que apenas um jogo de palavras, o grande diferencial do filme reside no entrelace da linguagem falada e escrita com a imagem e a plot.
A trama concebida por um time criativo de quatro pessoas, incluindo o próprio Anderson, é segmentada em capítulos, incluindo um prólogo e mais de uma sequência de flashbacks. Apesar disso, utiliza-se muito claramente da estrutura clássica de três atos. No prólogo e no primeiro capítulo, constrói-se um Japão fictício caracterizado por uma relação extremamente polarizada entre humanos e cães, relação esta que resulta em um banimento permanente de todos os cachorros para uma ilha-lixão. O conflito surge quando um garoto de 12 anos se ergue contra tal decisão, partindo ao resgate do próprio cão. Essa atitude termina por elevá-lo à posição de personagem mítico, o garoto-samurai, cuja lenda nos é narrada ainda no prólogo.
Se o enredo me parece estruturalmente convencional e bem segmentado, a linguagem narrativa segue um caminho bem mais complexo e sui generis, pontuada por diversas peculiaridades. Entre prólogo e capítulo 1, Anderson apresenta um disclaimer que endereça ao público a questão do idioma falado. Segundo a nota, os personagens humanos são fiéis à sua língua materna, ainda que suas falas sejam acompanhadas de tradução simultânea, quando possível. O idioma canino – subentendido como latido – é representado pelo inglês.
Animações têm, por excelência, uma qualidade muito própria das artes plásticas, que é a possibilidade de representar seres, cenários e formas limitados apenas à imaginação de seu criador e não aos contornos do real. Desse modo, torna-se plausível e inteiramente aceitável a personificação completa de animais, objetos inanimados ou até mesmo de conceitos puramente abstratos. Em Ilha dos Cachorros, os animais do título são capazes de se organizar e discutir seu papel social. Cães falantes são particularmente comuns no cinema de fantasia e ficção, mas há uma certa subversão aqui. Se os humanos – quase todos japoneses – falam apenas em sua língua materna, o público não fluente só os consegue entender por intermédio de terceiros.
Diferentemente, os cães, ao falarem inglês, são colocados em um nível de proximidade muito maior ao nosso, por serem quase que exclusivamente os únicos capazes de se fazer entender, sem a necessidade de intermediários. Por vezes a comunicação entre humanos e cães se mostra penosa na mesma medida em que um falante japonês sem conhecimento algum do inglês tentando se comunicar eficientemente com um americano que não fala japonês. Assim, sempre que um discurso em japonês tem início, a assimilação dessas falas tanto para os cães, quanto para o espectador fica em uma suspensão momentânea.
A existência desse gap de compreensão entre emissor e receptor é constantemente incorporada dentro da composição dos planos, o que nos é especialmente evidente nas cenas com o antagonista, o prefeito Kobayashi, que costuma aparecer somente em pronunciamentos oficiais, nos quais uma intérprete traduz suas falas para o inglês. A intérprete aparece como personagem em cena, dentro de quadros muito bem arquitetados e que, em alguns momentos, utilizam-se de profundidade de campo para colocá-la nesse ponto de intermédio, cobrindo o gap linguístico. Momentos como este ainda são particularmente dotados de uma dramaticidade maior, graças ao elenco de vozes.
A animação com bonecos ainda permite um controle total e absoluto da mise-en-scène, em um nível dificilmente possível de ser alcançado em escala real. Anderson é capaz de posicionar, milimetricamente, cada peça que compõe os cenários, criando quadros rigidamente geométricos e de simetria arquitetônica. Igualmente, os personagens também são posicionados e movidos inteiramente dentro de quadro com uma precisão dificilmente reproduzida por atores reais, quiçá por animais.
Dentro do âmbito da animação, Anderson se permite ainda uma outra subversão sutil, na forma das imagens de arquivo e reportagens, recorrentes no filme. Sempre que uma televisão ou um monitor surge em algum plano, exibindo uma gravação ou imagem ao vivo, essa segunda instância é gerada com animação desenhada e bidimensional, processo mais simplório que o stop-motion, criando diferentes camadas. Diante das lentes do cinematógrafo Tristan Oliver, configura-se um mundo de animação tridimensional, ao passo que os objetos postos perante as câmeras dentro desse cosmo, também se configuram como uma forma de animação diferente, nunca representando a realidade de forma fidedigna.
Ilha dos Cachorros se desenrola em arcos muito bem delineados, constituindo uma história tradicional e sem muitos riscos, que funciona como carta de amor ao melhor amigo do homem. Não obstante, o faz com uma sofisticação estética e um domínio do cinema de animação tão grandes que só podem ser associados a um cineasta como Wes Anderson.