A sutil violência
Letícia Badan
Martelos são as armas preferidas de Joe (Joaquin Phoenix). Ele é um homem solitário, calado, enigmático. O conhecemos em um quarto de hotel, enquanto se sufoca com um saco plástico, ritual que repete sempre que precisa fugir da realidade que o cerca. Ele queima uma fotografia de uma criança, e sobre a cama vemos pequenos souvenirs, que imaginamos pertencer àquela jovem misteriosa do retrato. Joe trabalha como um matador de aluguel. Ele resgata jovens sequestradas, a serviço de seu amigo McCleary (John Doman). Certo dia, recebe a proposta de buscar a filha adolescente de um famoso político de Albany. O pai da menina, o senador Albert Votto (Alex Manette), recebera uma mensagem informando que sua filha estava presa em uma casa de prostituição em Manhattan, onde era drogada e violada sexualmente por ricos senhores da cidade. A trama se desenvolve, portanto, num curto espaço de tempo, em torno dos eventos que levam Joe ao resgate de Nina Votto, a repercussão de seus atos e o catastrófico jogo político que ocasiona o sequestro da jovem.
O longa-metragem de Lynne Ramsay, adaptado da novela homônima de Jonathan Ames, nos revela a história desse homem quase anônimo, um ex-fuzileiro naval, antigo agente do FBI, que desertara após um trágico fim de resgate de mulheres usadas para o tráfico sexual. O filme possui uma cadência concomitantemente ágil e compassada. A música, composta por Jonny Greenwood, revela um ritmo constante e obstinado, como o próprio desenvolvimento do protagonista, que nos direciona, sempre certeiro e ininterrupto ao seu trabalho. A música nos deixa permanentemente em alerta, assim como ele, veterano de guerra, aguardando ansioso o próximo passo do inimigo, qualquer indício de ameaça possível. Os rastros que deixa não são aqueles dos resquícios de seu métier, como um trabalho mal finalizado, abandonado às pressas. Seu rastro é o da violência e da dor. Uma dor que o acompanha por onde quer que vá e que acomete todos que o cercam.
Martelos são as armas preferidas de Joe, afinal, ele é filho de seu pai. Na infância, sofrera abusos físicos e psicológicos desse. Um homem que, assim como ele, vivera os horrores da guerra e que ao voltar para seu país, como tantos outros soldados americanos, não encontra mais conforto no cotidiano simples de sua vida. É na arma que o pai usara para as punições ébrias em que Joe identifica o seu próprio artefato de trabalho. Os castigos do pai revertem-se na pena dos terríveis homens cujos caminhos atravessa. Em seu ritual meticuloso, adquire sempre um martelo novo, como um ato de expurgar seus demônios interiores.
A infância problemática, o retorno à casa da mãe (Judith Roberts), esta, involuntariamente fadada à demência, o confinam em um ambiente recluso de sofrimento e traumas, cujo silêncio exterior sempre impera, independentemente do quão ruidosa sua alma possa soar. Ao chegar à residência, sua mãe afirma: “Passou Psicose hoje. Aquilo me assustou, e como me assustou”. Momentos mais tarde, Joe mimetiza a sequência da clássica morte de Marion Crane, retraçando as ações do travestido Norman Bates, cantarolando a trilha de Herrmann, enquanto a mãe luta contra a senilidade no interior do banheiro.
A retomada do ato revela o caráter ambíguo que tange a relação de mãe e filho. Ambos atados aos demônios de seus passados, ecoados por entre as paredes da velha casa, a qual ainda abriga o fantasma do abusivo patriarca. Ao passar diante da porta trancada do antigo quarto do pai, seus passos repetem inconscientemente o pisar leve de um Joe ainda criança, e seu medo de perturbar o humor instável do alcóolatra abusivo. A memória constante dos traumas ressoa como um pesadelo ruim, de sequências fragmentadas, que vêm e voltam à mente, quase como uma tentativa de apagar o pensamento logo assim que se inicia. Aos poucos, o quebra-cabeças de lembranças passa a fazer sentido, e tais quais as verdadeiras razões para o desaparecimento de Nina, se revela no desenrolar da trama.
A novela nos apresenta uma imersão completa em sua personalidade. É ele que nos carrega através do rápido desenvolvimento dos atos, o resgate de Nina (no livro, chamada de Lisa) e a vingança pela morte de seus entes queridos. Nada disso nos é revelado pelo filme de Ramsay. Nele, Joe é como as cidades que o abrigam, um anônimo preso na imensidão soturna da realidade. Exceto pela marcação insistente de suas recordações, seus pensamentos nos são privados e pouco sabemos sobre suas intenções. Fadado ao seu próprio mundo de memórias atordoantes, ele é, como descrito no livro de Ames, “um distúrbio autoimune de sua psique”.
Mas há beleza em meio ao caos. E Você Nunca Esteve Realmente Aqui é primoroso em captar uma dualidade sempre latente, submersa nos mais diversos elementos e personagens. Por um lado, o filme trabalha com as sombras. Os ambientes noturnos, a mentalidade de Joe, seu ofício, tudo se resolve em um jogo sinistro de violência e brutalidade. E, no entanto, um caráter igualmente sutil e cálido perpassa a narrativa. Não vemos uma exploração massiva da violência e, mesmo assim, ela é constantemente aludida.
Dentre as lembranças de Joe, uma imagem salta aos olhos. Um pé anônimo acaricia gentilmente a superfície granulosa da areia. Uma memória sobre a qual não temos informação alguma. Seria apenas uma lembrança boa, em meio aos tão desastrosos eventos que circunscrevem a trajetória de Joe? Evidentemente que não. Ramsay é traiçoeira em nos lançar uma imagem de tamanha sensibilidade. Descobrimos, apenas mais tarde, que se trata de uma civil, uma garota executada tragicamente pelas mãos de uma outra criança, por conta de uma barra de chocolates, entregue por Joe. O movimentar do pé, antes reconfortante, não passa, na realidade, de um ato involuntário de uma jovem agonizando à beira da morte. Não há escapatória para o horror que invade o seu cotidiano. E mesmo os seus mais afetuosos e bondosos atos serão revertidos em punições. Mas assim como “o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”[i], como já nos informava Hugo, o papel de Ramsay é o de embaralhar noções antagônicas. Crueldade e benevolência, inocência e malícia, violência e placidez. São essas as chaves que nos são ditadas. Um outro feixe de memória intercala-se àquele da garota. Uma música soa baixo ao fundo, enquanto vemos dois fuzileiros americanos enlaçarem seus corpos em uma dança guiada pela suave melodia.
Trata-se de um jogo complexo que suscita uma relação ambivalente entre campos opostos. Crianças brincam com armas, enquanto soldados dançam. Embora um assassino, Joe é levado pelas mais nobres emoções: salvar essas jovens garotas, corrompidas pela aspereza do mundo. E certo aspecto de inocência infantil se reflete na personalidade do protagonista, que nos é exibido em seus mais diversos momentos de fragilidade, repetindo o ritual de autodestruição que se firmara quando criança: o sufocamento. Na mãe, nutre uma afeição singela, um carinho complacente, que compreende também o lugar dela em seu mundo de submissão à figura paternal.
Assim, é interessante a relação entre Joe e Nina. Adulto e criança, homem e mulher. Assassino e vítima e ao mesmo tempo ambos são todos os seus inversos. Para escapar dos estupros constantes, a garota se submerge num ciclo vicioso e hipnótico de contagem numérica. De maneira semelhante, ele, quando criança, contava, preso no closet da residência, enquanto o pai agredia a mãe. Contar era, como para Nina, sua forma de escapar dos horrores da vida, de fugir da brutal realidade que o cercava. É por meio da sequência conjunta de contagem, de Nina e do jovem Joe, que adentramos o seu universo. Em meio à água, ambas as vozes se sobrepõem. Seus mundos são similares. Ambos vítimas e reflexo dos erros de seus pais e da perversidade que os cercam.
A frase que dá nome ao filme provém de uma música, cantarolada pelo taxista de Cincinnati, que dirige Joe até o aeroporto local, após a finalização de um de seus resgates. YOU – WERE – NEVER – REALLY – HERE aparecem e se dissipam, palavra após palavra, na sequência de créditos iniciais. A música é emudecida pela trilha sonora. No livro de Ames, contudo, a frase é sussurrada por uma voz interior, enquanto Joe tenta cometer suicídio:
“Ele se sentiu diminuindo, uma sombra ao redor de sua mente, e ouviu uma voz dizer, Está tudo bem, você pode ir, você nunca esteve realmente aqui. (…) Depois disso, a história jamais envolveria deixar um corpo para trás, deixar uma bagunça para trás. Isso era vergonhoso. Quando chegasse a hora de ser removido, é isso que seria – um apagamento completo. E o mar o teria. Ele não ligaria para mais um pedaço de lixo.”[ii]
Assim, “você nunca esteve realmente aqui”, por mais contraditório que pareça, é aquilo que o impede de tirar a própria vida. Essa ideia de apagamento se reitera em todos os aspectos do filme. Desde o início, através do uso do fade in/fade out na sequência de títulos, até o final, quando somos postos diante da mesa vazia da lanchonete, aquela mesma que recorda as cadeiras desocupadas da cozinha de sua mãe. No filme de Lynne Ramsay, a presença de Joe sempre dá lugar a enquadramentos vazios e não-lugares. Ele é um homem que vive nas sombras, com suas identidades falsas, as diversas armadilhas de segurança que utiliza para se certificar da invisibilidade, a busca incessante pelas inúmeras jovens desaparecidas e, enfim, a memória destruída da mãe, portadora de demência. Um a um, os conhecidos de Joe vão se apagando, fazendo dissipar todo e qualquer resquício de identidade que lhe resta.
Mas Joe finalmente encontra sua redenção ao conhecer Nina. Vê na figura dela uma semelhança com seu passado, e mesmo quando se imagina abandonado pela jovem, acaba em prantos, como uma criança esquecida pelos pais em um restaurante qualquer. Como a voz que ecoa pelas bordas de sua mente, ela é a salvação para seu esvanecimento completo. Se na novela é através do sussurrar que Joe encontra seu retorno à vida, no filme é por conta da contagem de Nina que tal renascimento se concretiza. Abandonado nas profundezas das águas juntamente com o cadáver de sua mãe, Joe escuta a voz da jovem garota, e juntos retornam à superfície. Assim, os mundos antagônicos encontram em si uma união.
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¹HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime – prefácio de Cromwell. Tradução e notas de Célia Berettini. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 25.
²AMES, Jonathan. You were never really here. Nova York: Vintage Books, 2018, p. 7. Tradução da autora.