Os Visitantes da Noite (1942), de Marcel Carné

Uma fábula de amor e guerra

Douglas König de Oliveira

“Uma bela viagem. E o Diabo paga a passagem.”

Dois trovadores surgem com seus cavalos em um terreno rochoso, sem nenhum caminho à vista ou conforto na jornada.  Algumas breves tomadas depois, todas com transições gráficas, chegam a uma estrada que conduz a um imponente castelo branco. Num texto inicial somos alertados sobre a natureza do casal, enviado pelo diabo para trazer desesperança aos seres humanos. São recebidos em uma corte na véspera das núpcias da filha do barão com outro nobre, e se juntam aos demais artistas convocados a se apresentar. Tendo mostrado já seus poderes extraordinários ao ressuscitar um urso, eles adentram a fortificação. Lá, dedicam aos noivos duas canções, que atraem fortemente a audiência.

Marcel Carné utiliza muitas trucagens, à maneira de Méliès, para ilustrar o caráter fantástico das criaturas e o desequilíbrio que as ações mágicas vão gerar.  Logo de início, os trovadores escolhem seus alvos: Gilles (Alain Cuny) seduzirá a noiva, Anne (Marie Déa), enquanto Dominique (Arletty), até então disfarçada como irmão de Gilles, investirá tanto em Renaud (Marcel Herrand), o noivo, quanto no barão Hugues (Fernand Ledoux), o pai da noiva, levando a um conflito mortal entre os dois.

Toda essa primeira parte é conduzida de forma bastante lenta, com o senso de deslumbre e mistério da situação sendo enfatizado através do ritmo e dos recursos visuais, além de uma elaborada cenografia. Após paralisarem o tempo em uma dança de salão com diversos convidados (lembrando um trecho semelhante de O Ano Passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais), os trovadores conduzem suas vítimas para fora do espaço da festa, indo para o jardim do castelo. Lá, a estratégia de sedução continua de forma mais franca, cada qual recolhendo juras de amor seus alvos.

A sequência que se segue é a mais enigmática do filme. Já nos aposentos destinados às atrações da festa, enquanto Gilles e Dominique discutem seus destinos, três anões deformados, com suas cabeças envoltas em sacos de pano, cantam algo sobre o pacto diabólico estabelecido pela dupla de protagonistas:

”Gilles e Dominique,

Dominique e Gilles.

O diabo é generoso com seus filhos

quando são muito obedientes.

Lembrem-se, lembrem-se.

O que está escrito, está escrito.

Vocês assinaram com ele.

Gilles e Dominique,

Dominique e Gilles.

Que aparentavam amar.

Lembrem-se, lembrem-se.

Devem continuar a sua sina.

seduzir, corromper e arruinar,

e abandonar à desesperança

aqueles que os escutarão.”

Descobrimos então que os dois eram um casal e que, depois de conflitos não exatamente claros, fizeram um pacto com o diabo, que lhes conferiu essa missão. Gilles parece ainda resistir à sua sina, enquanto Dominique vê apenas a continuidade do que viviam antes. Na continuidade do seu plano, Dominique seduz tanto o barão quanto seu futuro genro, enquanto Gilles se envolve com Anna de forma inesperada, nutrindo um sentimento verdadeiro. Nisso, perde o seu objetivo, motivando a interferência direta de outro personagem, o diabo em pessoa (Jules Berry), que aparece na forma de um nobre que pede abrigo no castelo em sua viagem.

É nesse momento que o filme perde sua atmosfera e passa a se basear no palavrório do novo personagem. O roteiro de Jacques Prévert e Pierre Larouche assume as rédeas do drama, enquanto a invenção visual de Marcel Carné fica em segundo plano. A ênfase no roteiro é característica comum a muitos filmes do realismo poético francês, com diálogos elaborados e extensos. O personagem do diabo torna todos os conflitos explícitos e, com sua caracterização um tanto caricata e efusiva, destoa muito da composição dos personagens Gilles e Dominique, sombrios e melancólicos.

Os planos malignos seguem, em parte, bem-sucedidos, com o barão ferindo mortalmente Renaud em duelo e sendo desonrado pela traição da filha com Gilles, consequentemente preso numa masmorra. O barão se desgraça completamente, parte sem rumo de seu castelo com Dominique, em fidelidade a ela e por vergonha do seu assassinato. O diabo tenta seduzir Anne, trocando pelo seu amor a libertação do pacto assinado por Gilles. Anne aceita, mas o sentimento dela e Gilles resiste a essa articulação do diabo que, ao final, os transforma em duas estátuas de pedra no jardim onde se encontravam. Ainda assim, seus corações seguem pulsando em uníssono.

Em sua segunda parte, o filme se inscreve no enredo de redenção pelo amor, e parece muito inferior ao tratamento da primeira. Talvez por querer dar um sentido claro ao personagem do diabo, numa sugestão direta da situação politica vivida na França, invadida e dominada por tropas alemãs na época da produção do filme, a sutileza e a ambiguidade dos personagens Gilles e Dominique foi suplantada pela encarnação unidimensional do mal, numa identificação com o invasor e agente da desesperança em seu próprio país. O enredo fantástico não pareceu ser o veículo ideal para tal intento, mesmo o filme tendo se mostrado popular (um dos grandes êxitos de Marcel Carné, como a obra seguinte, O Boulevard do Crime (1945)) à margem de tal crítica, só captada pela audiência especializada. Caberia à geração de cineastas influenciados pela primeira fase do realismo poético francês atingir frontalmente e sem alegorias os horrores dos territórios invadidos, como em Roma Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, marco do neorrealismo Italiano.