A Fábrica de Nada (2018), de Pedro Pinho

O filme de papel ou a disrupção da história

Larissa Muniz

A imagem cinematográfica, na tentativa de retratar pessoas e eventos, parece estar sempre num limbo entre o espetáculo e a representação genuína (se é que ela existe). De um lado, ela pode incorporar a caracterização superficial dos regimes de visibilidade (a imprensa, a publicidade, o cinema em geral), transformando tragédias em consumo estético. De outro, ela pode, em si mesma, carregar as contradições da própria encenação, expondo a construção artificial imbricada na origem da sétima arte – cutucando, embriagando, fraturando.

É assim que A Fábrica de Nada (2018), assinado por Pedro Pinho, faz do cinema um deslumbre que incomoda por sua intensidade estética, enquanto subverte suas próprias regras de expressão, arquitetando camadas narrativas e formais apenas para destruí-las posteriormente. Nessa construção, o sistema (as instituições e o capitalismo) é pensado como um jogo de ilusões cujas contradições são expostas e, acidentalmente, envolvem o humor e o drama. Assim, a obra se constitui como uma espécie de farsa da linguagem cinematográfica, assumindo as imbricações entre o documental e o ficcional para empurrar suas intenções até o limite e revelar, por meio do afeto e do esplendor da imagem, seu vigor como ferramenta de denúncia e composição sensível da vida e do social.

O caso real de uma fábrica autogerida por operários(as) em Portugal, a FATELEVA, produtora de elevadores, é o substrato para o desenvolvimento desse filme-memória-denúncia-revolução. Para capturar uma espécie de essência do absurdo e do desencanto, em uma situação com aparente capacidade de romper o sistema capitalista, o diretor evoca uma estrutura insana que se questiona constantemente e altera a sua constituição própria, a ponto da incerteza se impregnar na textura do filme e restar apenas uma terna nostalgia. Afinal, se a premissa dessa obra é a revolução, seu desenvolvimento é a inseparável relação entre a revolta e um universo de causalidades e afetações humanas.

O que está em jogo em A Fábrica de Nada é aborrecer as estruturas e lançar um sensível suspiro sobre a incontornável circularidade da história, que inicia levantes para depois suprimi-los e retornar à condição “normal” de poder. O filme oferece saídas não pelos grandes e heroicos atos, mas pelas miudezas que alteram a percepção e iniciam outras rotas de fuga. Por meio de olhares perdidos, relações afetadas e longas caminhadas, o sujeito absorve a água pesada que move a roda do mundo e, mesmo se nada efetivamente mudar, sua subjetividade sai transformada da ilusória empreitada. Por isso, talvez, sequências absurdas e banais sejam tão essenciais para o filme, tais como o súbito plano de um avestruz contra o céu de um campo; os close-ups dos operários apáticos pelo tédio; os trocadilhos infantis entre o operário e o estudioso numa terra de ninguém; a pescaria silenciosa; as conversas tardias sobre o esperma dinamarquês; a face da mulher corada pelo orgasmo. Em suma, toda e nenhuma relação com a greve, a ocupação e a revolução.

A própria estrutura da obra brinca com a ambiguidade da revolta, misturando os agentes da greve com os observadores da mesma. A encenação de personagens operárias (algumas realmente trabalharam na FATELEVA) que ocupam a fábrica de elevadores é misturada com uma narração aparentemente sem corpo que, mais tarde, é revelada como parte de uma conversa entre intelectuais acerca do capitalismo e seu destino insustentável ou inovação eterna. Algumas cenas são assumidamente ficcionais, enquanto outras possuem uma suposição documental, com uma câmera que acompanha a ação e se movimenta entre as personagens de maneira naturalista, destacando suas expressões individuais e sua formação como grupo.

Na articulação entre factualidade/simulação, pouco importa distinguir sob qual lógica o filme está se construindo, porque tudo é assumido como mutuamente documental ou ficcional. As personagens encenam uma situação “real” do passado, tendo que carregar nas interpretações toda a euforia e desamparo de tal responsabilidade histórica. Já as figuras intelectuais, tratadas como deuses do olimpo, que observam do alto a sociedade medíocre, fazem o diagnóstico do mundo sem participar efetivamente da realidade, intocáveis pela podridão desse sistema do qual tanto falam, mantendo uma conversa de jantar, carregada de teor político e pretensões de ação mas, ainda assim, um simples bate-papo.

Nessa imbricação, passado, presente e futuro tornam-se permeáveis à decisão espontânea do agora, o qual carrega a expectativa de afetar todo um sistema de exploração humana, enquanto, simultaneamente, está imobilizado e melancólico pela impossibilidade de agir. É como se a revolução fosse uma personagem invisível, cuja presença é tanto uma assombração quanto uma inspiração necessária. A princípio, seu espírito é transformado no próprio ato de filmar, dirigir e manipular a cena, pela interferência da figura que sempre filmou, dirigiu e manipulou a história e o cinema – a personagem de Danièle Incalcaterra, o intelectual, homem, com um interesse genuíno pela causa que nunca tocará verdadeiramente. Depois, essa mesma revolução é ressignificada pelas pessoas que sofrem mais diretamente os efeitos do sistema capitalista teorizado, como as únicas intérpretes com possibilidades concretas de estremecer suas bases.

Nesse sentido, a narrativa ironiza o papel do teórico e artista que transforma o povo em obra de arte, como uma tentativa de capturar a energia dos movimentos sociais para fingir vivê-la na própria pele, por meio da construção estética e do gozo em manipular suas personagens revolucionárias. É, assim, que o filme novamente zomba de si mesmo, expondo suas falhas incontornáveis sem, no entanto, deixar de buscar um lugar para a arte na transformação de qualquer coisa no mundo.

Por isso, talvez o ponto culminante da narrativa seja uma cena musical, tão absurda quanto coerente, numa narrativa cujas premissas iniciais não antecipam uma apresentação de tal gênero (bastante hollywoodiano). A única forma das personagens operárias lidar com uma notícia que significaria o sucesso da autogestão seria cantar ridiculamente. Entretanto, após o quase-final da performance, a personagem do intelectual se revela também um diretor, que avalia a cena e sugere alterações. É o ápice da sétima arte como espetáculo, no qual o final pressupõe uma resolução feliz. Contudo, em A Fábrica de Nada, isso ecoa como um grito do cinema que, assumindo-se como imagem em construção, nega o gozo completo do show ilusionista, quebrando com a suposta espontaneidade da cena e expondo o dispositivo, a câmera.

Tal interpretação resume o movimento instável do filme de centralizar a ficção para, depois,  jogá-la às margens, evocando a eterna dialética patrão e empregado, cinema-espetáculo e cinema-verdade, racionalidade e sensibilidade, opressão e revolução. O filme não dá respostas para nenhum dos lados, permitindo-se caminhar entre os dois, difundindo, misturando, bagunçando e transformando as fronteiras bem estabelecidas numa miscelânea metalinguística da imagem cinematográfica, da revolução e do ser humano enquanto sujeito social.

É a mulher, Carla, esposa do protagonista, José, que parece centralizar uma possível saída à espiral da história. De modo geral, seu papel pode ser considerado ambíguo. Com seu prazer, temos um dos primeiros planos da narrativa, assim como esse mesmo deleite nos conduz a uma das sequências finais. Nessas cenas, assume-se a linguagem do espetáculo, e a imagem é transformada numa pura admiração da beleza da mulher cinematográfica – com as bochechas coradas de sexo, o olhar decepcionado ao marido gentil e distraído. Carla é uma fiel esposa que não se intromete na greve do marido e vive suas frustrações pela ausência do homem com a amiga, enquanto trabalha como manicure e cuida do filho. Essa mulher, não envolvida na revolução da autogestão, é, de certa forma, a-histórica: o mundo está se transformando e ela se mantém à parte das mudanças.

Entretanto, tal a-historicidade, inicialmente redutora a uma representação complexa da figura feminina, é ressignificada no contexto de um filme desiludido com a história. Carla está às margens da ação, fora do jogo documental com os intelectuais ou a revolução dos operários, traçando seus próprios caminhos, e se recusando, talvez, à permanência do insistente mito de Sísifo, o qual empurra a pedra esperando que ela não desça novamente. A personagem, ao final, recusa sutilmente o homem, indicando desejo de sair daquele meio do nada, onde a revolução supostamente aconteceu e aconteceria novamente.

Entre tantas desorientações e possibilidades de linhas de fuga, a história, as personagens e o próprio filme são a fábrica que, no fim, desmorona como se feita de papel.