Halloween (2018), de David Gordon Green

Memórias do abismo

Letícia Badan

Passaram-se 40 anos desde a fatídica noite do dia das bruxas que aterrorizou a cidade de Haddonfield, Illinois, mesma distância em relação ao lançamento de Halloween (1978), filme que impulsionou a carreira de John Carpenter. David Gordon Green dirige a sequência dessa obra-prima num mundo que, antagonicamente, dialoga com o universo livre e ameaçador que rondava as pacíficas ruas norte-americanas dos anos 1970.

Green é enfático. Inicia sua versão com a negação, em princípio, de tudo aquilo que foge do universo central criado por John Carpenter e Debra Hill. Vemos, desde a abertura dos créditos, a lembrança da silhueta vívida da faca sobre a abóbora, que retraça sua força para brilhar mais uma vez na luz soturna do dia das bruxas. E, também nela, uma nova silhueta se forma, o perfil de Michael, ressurgindo incólume como o verdadeiro bogeyman. Michael Myers, o psicopata velado, incansável e insaciável, que busca mais uma vez, sem motivo aparente, retomar os passos de seus surtos psicóticos infantis, reencontrando na figura de Laurie Strode uma obsessão. O filme instaura-se como um novo pilar narrativo para esse tipo de trama tão conhecida do cinema de gênero, sustentado pelo embate entre vilão e heroína. Halloween (2018) cria uma nova trajetória, que segue uma via de concepção clara, baseada em um Michael Myers obstinado pela presa permanentemente alheia de seu contato. Assim como também temos uma Laurie obcecada pelo algoz, que havia tomado dela a liberdade de prosseguir com o caminhar seguro de uma vida média americana.

O início do filme nos carrega ao interior de Smith’s Grove, o hospital psiquiátrico em que Myers encontra-se internado desde 1978, juntamente com a dupla de jovens pesquisadores britânicos (grande MacGuffin da versão de 2018), que está ali para realizar um podcast e compreender os motivos que transformaram Michael Myers no assassino que é. Ali, o mundo parece congelado em meados de 1980. O espaço é de um ceticismo científico evidente, imerso em um espectro de sobrenaturalidade quase retirada de um filme de ficção científica, ou mesmo, se quisermos ser mais precisos, semelhante àquela algidez brutal do isolamento humano característico de Enigma de Outro Mundo (1982), do próprio Carpenter. A atmosfera prevalece dentro da loucura de cada indivíduo, imposta nas marcações do piso na área de lazer da instituição. Os equipamentos eletrônicos, com suas luzes de cores esverdeadas, resquícios de uma tecnologia inexistente no mundo livre dos homens sãos, parecem dizer respeito a um mundo de clausura e estagnação.

Assim é Michael Myers, o monstro inquieto que tanto perturba, por tão pouco ter a oferecer sobre sua condição. O mal puro e concentrado, como já dizia Loomis. Como o espaço que o cerca, Myers é alguém que se mostra intimamente vinculado ao passado, que representa o seu motor de destruição. Ele busca, sem fim, o retorno à cidade natal, onde outrora havia assassinado a irmã, além de diversos outros jovens. Dana e Aaron, os jornalistas, caminham em direção ao psicopata acompanhados do psiquiatra Dr. Sartain. Os personagens erguem em sua direção a máscara, numa tentativa de reaver uma memória distante dos eventos ocorridos no passado. A intenção é descobrir algo que revele alguma explicação sobre a crueldade dos homicídios que cometeu.

Vincent Malausa, na edição de outubro dos Cahiers du Cinéma, ao escrever sobre o filme, afirmou: “Myers não tem vícios como Freddy, nem o amor como Jason, ele é um bloco de nada assustador numa leitura totalmente psicológica, moral e ideológica, um simples objeto de estudo (…) revisitado pelo mito da criança selvagem”. Myers fascina justamente por ser um enigma. É como Loomis salienta, e como aqui já pontuamos, ele é pure evil. Nos anos em que foi tratado na instituição psiquiátrica, Loomis jamais conseguiu extrair dele qualquer indício que o enquadrasse nas chaves clássicas dos quadros de distúrbios psiquiátricos. Nesse tempo, Myers passou pelos cuidados de mais de 50 médicos, como Sartain evidencia. Não lhe sobrou nada, nenhum resquício de humanidade. A máscara anônima que recobre o rosto pouco conhecido, cujas feições vimos apenas em lances ao longo dessas quatro décadas de saga, os olhos tomados pela superficialidade abrupta do negro imaterial, descartam dele qualquer sentimento tido como motivador claro de um psicopata – a gana pela carnificina, o ódio, os vícios, amores, motivos como aqueles que Freddy, Jason e tantos outros pesadelos dos slashers possuíam.

Michael parece contaminar aquele que os cerca com sua loucura aparente, sobre a qual, em contrapartida, possui um domínio lúcido, absolutamente controlado. Loomis se mostrava completamente lunático, aterrorizando as crianças que tentavam adentrar a residência Myers no dia das bruxas de 1978, e Sartain não é diferente. Para ele, a melhor forma de compreender Myers é observando-o agir como um animal na natureza, fora da reclusão hospitalar. Arquiteta o plano para sua fuga e age, como ele, assassinando um dos policiais que cruza o seu caminho.

Mas o filme exibe uma dualidade que reconfigura os aspectos formais do slasher clássico. O longa de 1978, com o enfoque claro no cotidiano de Laurie, transmuta-se em uma alternância clara de focos, em que tanto a presa, quando o predador, possuem identidades importantes. Como Michael, Laurie parece igualmente atada a seu passado. Os grilhões que o mantém aprisionado ao hospital, refletem-se aqui em um mundo de clausura e distanciamento social. Ele, preso na instituição psiquiátrica, com as cercas metálicas que encerram a propriedade do manicômio. Ela, reclusa em uma casa afastada da civilização, espaço envelhecido tanto quanto ela, cercado de armas, de elementos de um passado que hoje pouco parecem lhe pertencer, como o pôster com o autorretrato de James Ensor, que decorava a parede do quarto adolescente.

A casa, toda em madeira, de iluminação sempre tênue, abriga uma vegetação exterior de crescimento desenfreado, que, de forma parelha a Michael, se estabelece como uma fortaleza. Se a branquidão asséptica do hospital desmaterializa qualquer senso de humanidade em seu espaço, o universo habitado por Laurie é sempre outonal, soterrado pelas folhas decompostas das árvores e, portanto, para ela, todo dia é halloween. Ali, armadilhas são postas em locais estratégicos, e o espaço de clausura, criado inicialmente sob o indício de manter viva a chama do trauma ainda presente, transforma-se em uma evidente força de vingança que corrói, como o fogo, tudo aquilo que o cerca. Nada mais prevalece, além da gana por destruir, enfim, aquele monstro tão terrível. São universos completamente opostos e, no entanto, ambos se completam. Isso é pontuado por Aaron, o autor do podcast, em certo momento do filme:

“Será possível que um monstro tenha criado o outro? E embora as barras de ferro e os arames farpados que separem ambos sejam fortes e afiados, as linhas metafísicas são embaçadas e fracas. Ambos existem em isolamento, restringidos pelo próprio medo e ódio que nutrem um pelo outro”

Eis que em meio ao recomeço de David Gordon Green, um contrabando aparece. Embora o filme deixe claro que abdica de todos os elementos narrativos e históricos posteriores à versão de 1978, ele insere elementos que aludem constantemente às produções que antecedem o filme de 2018. É evidente que estamos diante de uma produção que se quer valer do registro afetivo dos fãs e, nesse sentido, os easter eggs do novo Halloween estão todos ali presentes.

Em dado momento, relembramos a clássica fantasia de fantasma que recobre o corpo de Myers no filme de Carpenter. Aqui, ela se faz presente no cadáver de uma garota, uma de suas vítimas adolescentes. Outro signo reconstituído por Gordon Green é a personagem da senhora com o roupão cor de rosa de Halloween II – O Pesadelo Continua (Rick Rosenthal, 1981), que se distrai com a notícia televisiva da fuga de Myers e deixa de lado o sanduíche recém-preparado.

É fato que o remake de 2018 reúne memórias. E o jogo de imagens e referências ultrapassa a simples recriação visual de situações e momentos clássicos da trajetória “halloweeniana”. Laurie e Michael são ambos reflexos daquilo que vivenciaram em todas ou quase todas as versões que seguiram o filme original. Ele, como um ato mecânico, mimetiza as mortes dos antigos ataques. Crava, na parede, o jovem adolescente com a faca ainda cintilando sobre o peito, como fizera em 1978, com o amigo de Laurie pendurado de forma parelha sobre a porta do armário da cozinha. Os personagens jornalistas nos fazem recordar a sequência de Halloween H20 (Steve Minner, 1996), quando mãe e filha dividem o banheiro rodoviário com Michael num posto de gasolina. Laurie, com os atos inconscientes de autodestruição, a reclusão, o refúgio na munição, o alcoolismo, o abandono da filha, traz ecos de um passado oculto, preso nesse abismo da memória.

Halloween 2018 é carregado de passado, e como tal, mesmo que tente, não consegue negar suas raízes e sua trajetória. Fica, como Laurie e Michael, que carregam respectivamente em face e máscara, as marcas do tempo e da idade, dos traumas e de todas as cicatrizes vividas na memória amnésica de quatro décadas, sobre a qual a ação do tempo inevitavelmente vem marcar o seu peso. É um grande filme, que condensa com maestria o tráfico sinuoso pelo qual se deve valer uma sequência. Trafega entre os meandros da narrativa de forma inteligente, esbarrando em indícios, memórias e fragmentos que se instauram aparentemente sem importância, e que consolidam uma criação elucidativa, um olhar atual sobre temas que ficaram em imersão por décadas. É justamente nisso que se estabelece a força de Halloween. E mesmo ao fundo, diante da imensidão negra, é possível ouvir o eco da respiração ofegante que tanto nos assombra.