Dois em Um (2007)

A teatralidade fragmentada e absurda de Dois em Um

Cícero Pedro Leão

Em Dois em Um (2007), a teatralidade característica de Kira Muratova é desenvolvida, literalmente, em um palco teatral, já que o filme narra a produção e realização de um espetáculo, ainda que os bastidores do fazer teatral não configurem o principal fator dramático. Apresentando novamente duas histórias distintas em uma mesma obra, a cineasta oferece, inicialmente, um lúdico e fascinante exercício metalinguístico, para, depois, “esquecer” o fascínio formalista e entrar em um mundo de erotização absurda. A ligação entre as duas partes é frágil, não tão nuançada como em Síndrome Astênica (1989), mas a radicalização da teatralidade (tanto espacial quanto performática) é presente em toda a obra e acentua dois absurdos: a banalização da morte (na primeira parte, com a indiferença de várias pessoas diante do suicídio de um ator) e a fetichização da mulher (na segunda parte, com a apresentação de uma espécie de triângulo amoroso entre um homem velho, sua filha e outra moça jovem). O aspecto erótico não ocorre devido à exibição explícita da nudez, mas pela presença simbólica do nu feminino em fotografias e réplicas de quadros e esculturas espalhados pelo espaço.

As recorrências dessas obras mostram como tais representações existem durante toda a humanidade (há réplicas de esculturas da pré-história) e partem da perspectiva masculina. Consequentemente, a objetificação do feminino é carnavalizada em uma perspectiva crítica, porém não pela posição incisiva de algum personagem específico contra essas representações, mas principalmente pela naturalização delas em um ambiente absurdo e nada humanizado, como se o interesse secular do homem pela mulher estivesse ligado, conscientemente ou não, a um chauvinismo sádico que, se velado ou camuflado anteriormente, aqui é exposto e extremado.

A primeira parte de Dois em Um, intitulada Stagehand (assistente de palco), inicia com o humilde funcionário de um teatro, Vitia Utkin (Aleksandr Bashirov), realizando o famoso monólogo de Hamlet para uma plateia vazia. Em seguida, logo atrás, ele percebe que um ator havia se enforcado em cima do palco. A polícia é chamada, mas demora para chegar. Posteriormente, com a entrada de outros assistentes, é decidido que se deve preparar o palco para a próxima apresentação, mesmo com o corpo morto em cima do proscênio. A segunda parte, intitulada A Woman of Life, é justamente a peça que será realizada nesse lugar. O espetáculo é sobre um homem velho e poderoso, Andrei Andreevich (Bogdan Stupka), que, diante da recusa de sua filha em ter relações com ele, pede a ela que busque uma moça loira que passeia com o cachorro em frente à sua casa.

Em Stagehand, o que move os personagens não é o impacto da morte do ator, mas a preparação para a peça prestes a acontecer, ainda que a preocupação de Vitia com a polícia sempre venha à tona devido às provocações de outro personagem. Mas, no geral, eles se preocupam mais com aspectos pessoais, burocráticos ou relacionados ao trabalho, como um roubo de uma galinha do teatro, férias, figurinos etc. Ainda que espantados com a morte do companheiro, as pessoas não estão traumatizadas, tanto que, andando por cima ou em volta de seu corpo, eles conseguem trabalhar plenamente. Em alguns momentos, há o uso de planos distanciados semelhantes aos do cinema teatral do início da era muda. Esses planos carregam um tom lúdico devido à lembrança de uma certa teatralidade espacial (cinematográfica) e também porque reúnem vários personagens desnaturalizados, aglomerando, de forma organizada, as suas excentricidades.

Contudo, mais presentes são os movimentos de câmera que dinamizam a imagem e fascinam pela fluidez. Sem se distanciar completamente da ação principal, a câmera ainda consegue flutuar sobre o espaço teatral, registrando e narrando, pois o movimento harmonioso acentua o aspecto fantasioso e absurdo já presente na dramaturgia e na encenação. Um plano comum nessa parte é o plongée, mostrando, em câmera alta, quem está sobre o palco. A escolha não parece gratuita ou somente formal, porque ela cria uma espécie de rima com a posição de vários personagens que se inclinam para olhar, por cima, o corpo do ator morto no chão. A câmera alta do filme não segue a perspectiva desses personagens, mas após assistirmos tantas vezes os atores olhando para o chão, a recorrência da câmera alta parece colocar o espectador na mesma posição dessas pessoas que, constantemente, olham algo morto. É como se a posição dos atores fornecesse um tom fúnebre ao ato de olhar por cima, seja por eles mesmos ou pela câmera (que até chega a avistar o corpo  nessa posição elevada). Dessa forma, a plangência da imagem indica a lembrança ou até o prenúncio da morte, pois a segunda morte do filme acontece justamente com a arremessada de um martelo a partir de um andaime que está na parte superior do palco (quando ocorre esse assassinato, a câmera alta aqui sim toma a perspectiva de um personagem).

A transição entre a primeira e a segunda parte tem uma dimensão metalinguística interessante. Os policiais chegam, os espectadores vão para os seus acentos e a peça começa. No entanto, quem dá início ao espetáculo é um mestre de cerimônias que surge a partir de uma entrada do lado plateia. Em um tom grandiloquente, durante sua apresentação, ele indica que nevava no tempo da peça. Nesse momento, flocos artificias de neve começam a cair sobre o seu corpo, que ainda está no espaço inferior da plateia. Ao cair um pouco de neve nos espectadores, é possível ver alguns sorrindo espontaneamente quando eles são atingidos. Ainda que instantânea, a reação dessas pessoas, por ser marcante, fornece à neve um aspecto defasado, denunciando o tom construído da própria peça (e do filme) – condição que é inerente ao fazer teatral. Metaforicamente, devido ao impacto dessas reações, a neve que surge posteriormente, principalmente a partir de aberturas de portas e janelas, relembram ao público (do filme) que o que está na tela é uma representação. Essa lembrança é “necessária”, pois o ambiente teatral aos poucos some, já que a interferência do mundo dos palcos não permanece.

A interação entre o mundo dos palcos e o do drama representado ocorre principalmente no meio do filme. Nela, o mestre de cerimônia aponta para a casa de Andrei Andreevich (onde se passa toda peça), mostrando uma pequena edificação, que ainda está sobre o palco, com duas aberturas para janelas, pelas quais é possível ver os atores. No entanto, quando a câmera filma o que acontece com os personagens atrás das janelas, ela já se desliga do palco da primeira parte e do mestre de cerimônias, filmando literalmente o interior de um quarto. A intercalação entre os planos do mundo teatral e do mundo dos personagens é realizada de forma tão transparente que demoramos alguns instantes para perceber essa divisão. A dinâmica pirandelliana, ao estilo das interações de “Seis personagens à procura de um autor”, é fascinante, mas se no clássico do dramaturgo italiano ela é a mola propulsora de toda obra, aqui ela é descartada para que o mundo do drama de Andrei ganhe vida por si só. Mas, ao ganhar uma vida independente, o drama aciona uma releitura (posterior) da primeira parte, que se torna mais artificial ainda, pois claramente os interiores de Andrei não foram construídos anteriormente e em cima de um palco. É como se o labor intenso daqueles assistentes, em Stagehand, fosse irreal ou sem sentido, inserindo um tom de alienação àquela movimentação.

Mas vale notar que a produção da peça não é algo que totaliza as nuances dos personagens da primeira parte. Mesmo que eles se entreguem às suas funções e banalizem a morte, suas lembranças e comentários estão distantes da narrativa principal. Ou seja, não há psicologia: não iremos saber porque o ator se suicidou e nem porque os seus companheiros decidiram continuar a montagem do cenário. As personalidades dos personagens não são construídas dramaticamente, mas são apresentadas de forma fragmentada, nos mostrando relances de um mundo que está mais no registro da fantasia do que da naturalidade, considerando que essa fantasia não é ingênua e nem isenta de crueldade.

Faço essa ressalva porque mesmo na segunda parte, A Woman of Life, que é mais concentrada na relação entre três personagens, o drama de Andrei também não é totalizante. Se a reação do público for de indiferença, choque, confusão ou vislumbre, ela não será devido à busca de Andrei pela mulher de sua vida. Pelo contrário, o filme é impactante justamente por inserir nessa busca uma série de recursos que distanciam o espectador do drama e o colocam sempre em choque com elementos absurdos. Primeiramente, os próprios espaços internos da casa de Andrei já chamam a atenção pela presença intensa do nu feminino. Contudo, não se trata de um nu “comum”, mas com “requintes de sofisticação”, já que ele espalha por sua casa quadros e estátuas de mulheres nuas com o suposto selo da arte. Mas o espanto com essa decoração é rápido, devido ao grande número de obras, e o seu tom solene perde espaço com o escancaramento da sordidez do personagem masculino. Outra forma de distanciamento é desenvolvida no trabalho com certas dualidades, como se alguns elementos do filme tivessem duas formas, sendo que uma delas geralmente é fruto da mente de algum personagem. Andrei, por exemplo, fica fascinando pela moça que caminha na frente da sua casa. Ela é Alisa, que será buscada por Masha (Natal’ia Buz’ko), a filha de Andreevich. No entanto, ainda no momento de transição da primeira para a segunda parte do filme, a Alisa que Andrei enxerga e que está no palco teatral é uma menina loira, mas, posteriormente, já dentro de sua casa, ela é uma mulher interpretada por Renata Litvinova. A personalidade histriônica da personagem de Renata só reforça o estranhamento; nunca sabemos se Alisa era uma menina ou uma mulher, mas só o fato de Andrei se interessar por uma criança, já demonstra o seu lado grotesco.

Outras dualidades: Andrei fala que sua cama é preta-preta, mas Alisa afirma a todo momento que ela é somente branca (algo confirmado na imagem) – esse contraste das cores é retomado várias vezes durante o filme; quando Vitia monta em um cavalo cenográfico, ouvimos o relincho (extradiegético) de um cavalo. Ou seja, diferentes registros de fantasias são sempre colocados em conflito na mesma imagem. Existe o tom lúdico geral, mas também existem as fantasias de cada personagem, que às vezes são conflitantes com a percepção de outros personagens (Alisa vê que a cama de Andrei é branca e não preta, como ele afirma) ou com os espectadores (nós sabemos que quem estava andando na frente da casa de Andrei era uma menina; nós sabemos que o relincho ouvido na cavalgada de Vitia não vem do cavalo cenográfico que ele monta). Tal atrito de fantasias fornece ao filme um aspecto lúdico, mas que não segue necessariamente a grande visão de um determinado autor, porém dá mais vazão às subjetividades de personagens de personalidades distintas, porém sem nunca deixá-los cair na empatia interiorizada. Os seus delírios são tão exacerbados que a própria comunicação entre eles não é linear ou racional. Aqui, a impossibilidade da comunicação (uma das marcas da contemporaneidade) não resulta em um vazio sepulcral, mas em um caos delirante. Sobre essa dificuldade presente no filme, Helena Tomasson afirma:

“Diálogos e monólogos, assim como os refrões no filme, são estruturados de forma a mostrar a comunicação frágil ou a falta de comunicação entre as pessoas. Provavelmente este é um dos significados de todo o filme. Quase todos os atores, enquanto atuam nos papéis, não se comunicam; eles não ouvem um ao outro; eles não respondem às perguntas e cada um deles existe em seu próprio mundo” (2012, p. 31, tradução nossa[1])

Muitos personagens que vivem nesses mundos internos de Dois em Um apresentam uma performance distanciada, principalmente a partir da satirização corporal, como ocorre em vários filmes de Kira. Ainda que Andrei inicie com um tom solene, gradativamente ele é satirizado, gritando muito em alguns momentos e se jogando no chão em outros. Alisa, por sua vez, quando entra na casa de Andrei, é a personagem mais artificial de A Woman of Life, com uma risada aguda e alta que se repete até o final do filme. A artificialidade da encenação de ambos cria uma espécie de estranha harmonia entre os dois, apesar da distância que Alisa toma no final. Os dois protagonizam uma cena marcante, quando Andrei liga uma canção de ópera em sua vitrola e começa a “interpretar” a faixa, enquanto Alisa vai ao seu lado para entrar na “apresentação”. Desajeitados, desafinados e exagerados, eles entregam um mini-espetáculo que sugere como têm autoconsciência de suas condições teatrais: ambos sabem que “vivem” em uma representação (social, teatral e/ou cinematográfica). Já para nós, o momento também demonstra que o teatro da vida desses personagens é cômico e ridículo. O momento é um ponto alto de várias pequenas performances que ocorrem durante filme (como o monólogo de Vitia ou a dança estilo robô de Masha) mas que não estão ligadas diretamente aos dramas principais do filme, de modo a distanciarem o espectador, ainda que fascinem pelo estilo inventivo.

Mais nuançada é a performance de Masha. Ela também tem seus momentos de distanciamento cômico, mas, no geral, o seu estilo é mais ameno. Ao lado de Alisa e Andrei, o tom neutro da personagem demonstra um deslocamento. Mas, para além do incômodo com o pai abusador, o seu deslocamento é mais amplo. Masha vive na casa de Andrei, que é repleta de representações de mulheres nuas. Mesmo que ela se incomode com os abusos do pai, ainda assim permanece em sua casa, e até realiza alguns de seus pedidos (como buscar Alisa). Pensando essa residência como uma alegoria para a materialização do interesse problemático e antigo do homem sobre o corpo feminino, Masha aparenta ser uma mulher que não consegue escapar completamente desse mundo, no qual a objetificação do corpo está em toda parte. Em relação ao deslocamento de Masha, o seu corpo mais retraído ganha destaque diante do contraste com os exageros de Alisa e Andrei, principalmente nos planos “teatrais”, que aqui também são presentes.

A questão a se pensar é como combater esse mundo fetichista e misógino. Dois em Um não apresenta respostas para o desafio. Masha e Alisa até conseguem fugir de Andrei, e fora de sua casa vários corpos livres comemoram o ano novo, indicando um possível momento de liberdade. No entanto, Andrei consegue alcançá-las no final. Assim, não há um grande sopro de esperança para Masha, mas Kira não submete o seu filme à uma narrativa linear, com conflitos claramente resolvidos: durante toda obra, várias questões não são finalizadas e não seria o desfecho que colocaria fim a essa abertura. Além disso, o próprio poder de Andrei, apesar do personagem ser bem ridicularizado, nunca corre um sério risco de ameça; sabemos que ele é sórdido, mas mesmo assim o filme não apresenta algum personagem que consiga suplantar a sua sordidez ou aniquilá-la. Talvez apostar em uma personagem assim colocaria o filme em uma linha dramática linear que Kira está bem distante. Mais do que apresentar soluções especificas para o absurdo da contemporaneidade, principalmente em relação à representação feminina e à dificuldade de comunicação, o importante aqui parece ser chocar – um choque com significado e poesia -, como se uma forma de combate fosse justamente a exposição das paranoias e hipocrisias das figuras opressoras. Ora, Kira não sai do mundo de onde Andrei tem e exerce o máximo de poder: a sua casa. Lá, ele aprisiona a filha e abriga todas as obras e acessórios que almeja. Contudo, a representação que o filme faz desse mundo não respeita as determinações ideológicas da figura que o comanda, ocasionando em uma narrativa incerta que, ao se fragmentar, já fragiliza o poder dominante.

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[1]  “Dialogues and monologues, as well as refrains in the film are structured in a way to show the broken communication, or lack of communication between people. Probably this is one of the meanings of the whole film. Almost all actors  while playing the roles do not speak to each other; they do not listen to each other; they do not answer the questions and each of them exists in their own world.”