Motivos Tchekhovianos (2002)

Mergulho na vida

Maria Ines Dieuzeide

Num pátio lamacento, um homem corre atrás de um cabritinho, espantando patos e galinhas cacarejantes. Corta para um segundo homem sentado à mesa, ao ar livre, comendo pedaços de carne com as mãos. Uma voz fora de campo murmura frases soltas. Corta para um menino, de pé, com o cabrito no colo. O homem que come sorri levemente, a voz continua seus murmúrios. O garoto começa a caminhar, a câmera o acompanha e nos revela toda a mesa, que reúne três trabalhadores. Corta para um segundo garoto, em primeiríssimo plano, que tem a cabeça coberta com um plástico e a expressão muito séria. A voz segue murmurando palavras e o menino abre um sorriso engraçado. Um plano aberto nos mostra que o primeiro homem interage com o garoto, e o que acompanhamos é uma disputa infantilizada entre os dois sobre a construção de um celeiro ou uma loja. Já não vemos a mesa de refeição, mas os dois outros trabalhadores aplainando grandes tábuas de madeira entre os animais. A discussão continua, com as mesmas frases repetidas: “é um celeiro!”; “faremos uma loja!”. O primeiro menino reaparece, também envolto num grande plástico, saltando ao redor do homem e gritando palavras desconexas. As vozes se embaralham e se confundem com o cacarejar das aves. Uma tempestade começa, e o homem canta e dança até cair no chão. Corta para um super close num rosto masculino – vemos boca e barba. A câmera sobe lentamente, revelando-nos olhos por detrás de uns óculos. Este homem pisca lentamente, e o corte nos mostra agora o close de um porco que movimenta o focinho, emitindo roucos grunhidos. O homem resmunga sobre o tempo e o gasto de dinheiro com os trabalhadores, o porco responde com seu som grave e o homem se afasta.

Este é o curto prólogo de Motivos Tchekhovianos, filme de 2002 de Kira Muratova. Não terminaremos de saber se o que se constrói é um celeiro ou uma loja, nem teremos mais notícias desses trabalhadores. Só veremos o homem barbado, enredado numa relação familiar conflitiva, atravessada pelo dinheiro. Mas observaremos também uma longa cerimônia de casamento entre personagens absolutamente desconhecidos. Diante desse filme, não me parece possível escrever se não for por meio de fragmentos.

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Motivos Tchekhovianos é a reunião de duas obras de Anton Chekhov: o conto “Difficult People” (1886) e a peça de um único ato “Tatiana Repina” (1889). Muratova incrusta a segunda na primeira, dividindo o filme em duas partes, cujo elo é a presença quase infiltrada – e logo esquecida pelo filme – do filho mais velho da família retratada na primeira parte. O jovem, ao abandonar a casa paterna, consegue carona para a cidade com um dos convidados do casamento, e é esta cerimônia que acompanharemos durante longos 50 minutos.

Não nos contentemos, entretanto, com a desconexão entre as histórias. Vejamos melhor: depois do prólogo nonsense, participaremos do jantar da família do homem barbado, composta pelo casal, um jovem estudante, uma filha adolescente e três garotos mais novos (os dois que vimos no pátio e um bebê). Os sete personagens estão dispostos na metade de uma mesa ovalada, arranjados para que a câmera possa enquadrar o conjunto todo de frente, ainda que eles se apertem e se acotovelem durante a refeição. O jovem filho precisa partir para a cidade, pra retomar os estudos, e pede dinheiro ao pai, o que desencadeia uma violenta discussão entre o casal e o estudante. A tensão da relação familiar é reforçada pelo amontoamento físico dos personagens à mesa. Depois de muitos gritos pontuados por breves interrupções de calmaria, o rapaz resolve ir embora, prevendo morrer de fome no caminho.

É aí, na estrada, que ele pega carona com um homem bem vestido que se perdeu no caminho da igreja, onde será celebrado um rico e tradicional casamento. O homem promete levar o rapaz à estação, se ele esperar o fim da cerimônia. Com os convidados, acompanharemos os longos ritos religiosos, enclausurados na nave da igreja apinhada de gente. Esquecemos da presença do jovem e só o reencontraremos no fim, quando ele acorda de um cochilo na igreja quase vazia e retorna à casa paterna, apenas para discutir e se despedir mais uma vez.

Os personagens do casamento são todos desconhecidos para nós. Entre sussurros, fofocas e risadas dos convidados e bocejos inconvenientes dos noivos, a cerimônia monocórdica é perturbada pela presença misteriosa de uma mulher envolta num véu preto, que circula sorrateira entre os presentes. Vez ou outra, escutamos largos e altos soluços no fora de campo, que assombram o noivo – para ele, tomado de culpa, essa presença é o fantasma de uma mulher abandonada que se suicidou na véspera do casamento que acompanhamos. Aqui, nesse longo ato incrustado na história do conflito familiar, acentuam-se as tensões do convívio social e a sensação de asfixia e absurdidade que acomete o espectador – estas, sim, talvez o mais profundo elo entre as duas narrativas.

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Asfixia, eu repito: essa é a palavra que me ocorre para tentar descrever o filme. Motivos Tchekhovianos parece jogar com um mergulho muito aproximado na vida – ou nos espaços – dos personagens. Essa aproximação, entretanto, nos distancia imediatamente, ao fazer ressaltar o absurdo das relações sociais. Sua particular comicidade está calcada na mecanização dos corpos em cena, que repetem até a exaustação falas desconexas ou lamurientas, vistos por meio de planos muito próximos que destacam, na fotografia contrastada em preto e branco, rostos sufocados por camadas exageradas de maquiagem.

Os gestos entediantes do sacerdote, que repete cada rito sempre três vezes, parecem condensar o grande aprisionamento que é a vida em família: o enfrentamento de pai e filho se dá também em três momentos (dois na primeira parte e um no final). Essas cenas serão assistidas pela mãe e pelos irmãos, que pouco interferem, mas que pontuam as discussões com uma presença (sonora ou visual) também mecanizada, às vezes com movimentos e falas repetitivos, às vezes com uma postura congelada e observativa, como que imersos em transe – um alheamento reforçado pela figura do bebê que dorme na mesa, em meio à gritaria, e que, no final, interpõe seu corpinho brincante entre os sérios personagens de pai e filho, que não resolvem suas diferenças.

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Há, como sugeri, a asfixia dos corpos mecanizados e a asfixia dos espaços apertados, dos enquadramentos sempre cheios de gente ou de animais (não ignoremos a montagem que coloca lado a lado pessoas e bichos, enclausurando as vidas no celeiro lamacento e apertado). E há também uma certa asfixia sonora: o filme elabora um desenho de som que sobrepõe continuamente vozes em diferentes tons, mescladas com ruídos da tempestade, cacarejos, roncos e mugidos de animais, imergindo-nos num ambiente quase ensurdecedor, de cuja confusão só queremos escapar.

É interessante destacar o modo como os sons em off vão pontuando as cenas, marcando-as com uma presença não identificada e perturbadora: já vimos isso no prólogo, quando uma voz fora de campo desfia frases desconexas – é possível associá-la ao primeiro trabalhador, mas o filme nunca confirma (ou não se interessa em confirmar) essa associação. As vozes estridentes das crianças acompanham e marcam a refeição com a tensão prestes a explodir no convívio familiar. Da mesma forma, a “assombração” durante o casamento ganha corpo pelo som, que está descolado da mulher que circula com seu lenço preto – sua presença chama atenção dos convidados e do noivo, mas este só se assusta com os fortes soluços fora de campo.

Mas é também pelo som que o filme elabora passagens e interrupções: em meio à grande discussão durante o jantar, a filha adolescente liga a televisão e tudo fica em suspenso enquanto vemos e ouvimos um balé na tela, que permite um respiro na vida da mãe atormentada. Mais adiante, quando o filho enraivecido se prepara para ir embora, o som ambiente é encoberto por outra música, de entonação solene, que embala o movimento coreografado dos trabalhadores aplainando a madeira (o único momento em que eles reaparecem), logo substituídos por planos dos porcos, patos e galinhas ocupados em comer e ciscar. Assim que a música termina, o que toma a banda sonora é o cacarejar cotidiano das aves, como se a excepcionalidade desse momento, trazida pelos instrumentos, fosse rapidamente imbricada na continuidade modorrenta dos dias comuns. Essa mesma música, agora entoada pelo próprio noivo, embala a saída do casal da igreja – um breve momento em que a cerimônia se veste de encantamento, para logo ser desacreditada (mais uma vez) por um diálogo algo absurdo entre dois sacerdotes que não acreditam na igreja.

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É, enfim, o silêncio o que marca o fim do filme. Retornando à casa e discutindo mais uma vez com o pai, o jovem se encerra só em seu quarto. Agora ouvimos apenas o miado suave do gato, que se deita junto com o rapaz. Em seguida, o som monótono de um relógio marca a hora da nova partida. Depois de se despedir da mãe e dos irmãos, pai e filho trocam poucas palavras e permanecem parados, em silêncio, para que possamos sair do filme sem redenção, mas em suspensão.