Cerrar os olhos, como quem range os dentes
Hannah Serrat
A violência da monotonia alcança-nos sob estilhaços em Síndrome Astênica (1989), de Kira Muratova. Lançados entre a fúria de quem esbraveja e a indiferença de quem adormece em meio ao caos, apanhamos disjunções. As controvérsias e os excessos de um mundo dilacerado (não em dois, mas em múltiplos pedaços) tornam-se matéria sensível desse filme desconcertante – um dos mais importantes da cineasta ucraniana e também, reconhecidamente, do cinema soviético.
Organizado em duas partes, Síndrome Astênica não constrói oposições binárias, mas interseções, contaminações, entremeios. Na primeira parte, em preto e branco (ou em tons de sépia), acompanhamos o luto de uma mulher que sofre a perda do marido. Após quase 40 minutos, percebemos tratar-se de um filme dentro do filme. Quer dizer, vemos, em cores, espectadores assistirem ao filme e a atriz ser convidada ao palco para comentar a realização. Quase todos os espectadores deixam o teatro, reclamando da sessão e sem dar qualquer atenção à atriz, enquanto um homem dorme profundamente. Na segunda parte do filme, acompanhamos então Nicolai (Sergei Popov), este homem narcoléptico que aparecerá, na cena seguinte, caído, em sono profundo, no meio da estação de metrô. Ainda que o argumento e a forma do filme aparentemente dividam-se em dois, como em trabalhos posteriores de Muratova, trata-se antes de fazer com que as relações se multipliquem, que uma parte permeie a outra sem cessar.
No primeiro plano da primeira parte do filme, uma boneca, sem olhos e sem roupa aparece deitada em meio a flores e bolhas de sabão. Ouvimos risadas, senhoras, crianças. Em um canteiro de obras, um homem comenta com um operário sobre seus hábitos: gostava de comer pequenos lanches durante as pausas de seu trabalho nos correios. O operário, com quem ele insiste em falar, não o escuta e ri, apenas ri. O homem continua a falar sem ser ouvido. Outros trabalhadores amarram um chocalho no rabo de um gato – o que parecia ter ocasionado as risadas. O gato foge, se desfaz do chocalho, livre. Do canteiro de obras, passamos ao cemitério. A terra remexida, no entanto, parece a mesma. Ali, construíam-se residências; aqui, enterram-se pessoas. O filme, de antemão, desnorteia-nos. A boneca do primeiro plano adiantava a aparição dos corpos no interior dos caixões. Diante de um homem sendo velado, uma mulher, Natasha (Olga Antonova), chora alto, em desespero. Depois, exausta, abandona o velório. Incapaz de fazer o luto de seu marido, Natasha irrita-se com o mundo, bate nas pessoas, leva um homem em situação de rua para seu apartamento, deita-se com ele, desespera-se.
O que parecem ser as principais questões do filme anunciam-se desde o início: a incomunicabilidade entre os sujeitos (entre aquele que tenta falar, aquele que ri, aquela que grita, aqueles que se silenciam) e a incompreensão entre os mundos (entre quem amarra um gato, o gato que foge – lembrando da belíssima e triste cena dos cachorros no canil na segunda parte do filme, as crianças, as bonecas, as idosas, os adultos). Nas duas partes do filme, sob diferentes formas, as fraturas entre as vidas, a desrazão, a instabilidade e o desequilíbrio entre elas são retratadas por Muratova de maneira singular. Mais do que acompanharmos dois personagens, em suas crises individuais e existenciais, somos levados a compreender (ou nos perder em meio a) variações de uma coletividade instável, rarefeita, desordenada, enquanto a URSS colapsava. A letargia e a apatia de seus personagens intensifica, assim, a dificuldade de pensar a vida coletiva, enquanto a utopia comunitária parecia já não produzir mais lastro.
Filmar com liberdade (sobretudo, com liberdade) o caos e a solidão: árdua tarefa empreendida por Muratova. Sem qualquer compromisso com algum tipo de realismo naturalista, ainda que se interesse pela vida das pessoas, nas ruas e nos espaços públicos, mas também no interior das casas, dos apartamentos e das salas de aula, Síndrome Astênica perturba nossa percepção, nossa escuta, nosso olhar. Entre o sono e a raiva, somos levados a apreender absurdos, a apanhar fios soltos, a escutar palavras demais. Operando excessos, as imagens e os sons de Síndrome Astênica nos serpenteiam, recolocam-nos em movimento. Frente à letargia do mundo, como voltar a fechar os olhos? Como gritar? Ou ainda: como fechar os olhos como quem grita em silêncio?