Três Histórias (1997)

O animal interior

Letícia Badan

Após sofrer certa censura ao longo dos anos de 1980, a cineasta ucraniana Kira Muratova inicia um projeto cinematográfico que representa assassinatos e os autores dos crimes. Solicita a três amigos, Igor Bozhko, Renata Litvinova (protagonista, inclusive, da segunda trama), e Vera Storozhevaya que redijam histórias sobre crimes, e concebe três contos, numa trilogia do assassinato incólume. O filme é dedicado à memória de Sergei Gerasimov, diretor e roteirista soviético falecido em 1985, com o qual Muratova havia estudado no VGIK (Instituto Gesiramov de Cinematografia), em Moscou. Três Histórias (1997) narra o cotidiano de três cidadãos pacatos, que em princípio não parecem capazes de cometer assassinatos.

A primeira história é Sala de Caldeira n.06. O nome, como apontado pela autora Jane Taubman[i], inspira-se no título do conto “Enfermaria n.06” de Tchekhov. Inicia-se em um zoológico. Ali, somos postos diante de Tikhomirov (Sergei Makovetsky), um homem que, de início, parece se incomodar com os movimentos de um pavão. Animal imitando animal, eis o mote que perpassa as três narrativas.

Os excêntricos personagens do vilarejo observam o protagonista com olhar de riso, enquanto acompanhamos o homem e sua bagagem (um guarda-roupas atado a um carrinho), atravessando as ruas da cidade. Ele adentra o galpão de calefação de um velho amigo dos tempos de escola, Gena (Leonid Kushnir). Trata-se de uma figura ainda mais bizarra que as anteriores – poeta em seu tempo livre, que não desperdiça o horário de descanso e que mergulha em datilografias rápidas e furtivas. São páginas incompletas, postas sobre a mesa desorganizada do espaço ofegante e opressivo, aquecido somente pela chama do fogo que arde constante ao fundo.

Ali, uma atmosfera nova se cria e o cotidiano pacífico de Tikhomirov abre-se para um espaço de fantasia, em que o mundo ébrio de Baco, caracterizado na imagem do Sileno pelo cantor lírico nu que aluga um dos quartos do lugar para sexo, se irradia na embriaguez pouco lúcida. Junto dele, outras duas figuras adentram a cena: dois homossexuais, dentre os quais um insiste em pagar nosso protagonista por uma noite de amor.

Desde o início, no entanto, Tikhomirov tenta revelar para o velho amigo seu segredo mais sombrio. Inquieto, naquele espaço conturbado, ele tenta, de inúmeras formas, confessar que havia assassinado a vizinha – uma jovem exuberante, que insistia em não dar descanso para ele e sua família. A mulher atormentara a submissa esposa, os filhos, invadira até seu local de trabalho e teimava em exibir as curvas sinuosas do corpo despido no apartamento conjunto. Num surto, Tikhomirov não encontrara outra forma de acabar com a perturbação de seu sossego, a não ser assassinando-a. Leva o cadáver, ainda nu, no interior de um guarda-roupas, para ser queimado na caldeira. A fala, embora sintomática, encontra aqui um impedimento. Sua confissão, tortuosa e confusa, é vista por Gena como uma mera pulsão de matar a vizinha. A lembrança dos autores lidos em sala de aula, e de seus heróis (Pechorin de Mikhail Lermontov, Onegin de Alexandre Pushkin), bem como os poemas declamados por Gena, reforçam a importância textual e cultural para o cinema de Muratova. É somente, portanto, pela via da palavra escrita, métier do amigo, que Tikhomirov encontra sua esfera de testemunho, podendo, enfim, confessar o crime que havia cometido.

Ofélia é a segunda narrativa. É a mais longa das histórias, totalizando 54 minutos de duração. Ofa (Renata Litvinova) é uma enfermeira que trabalha em uma maternidade local. Seu exemplar de A Besta Humana, de Zola, é visto repousando sobre a mesa da recepção. Jovial, com uma aparência que destaca a fragilidade vivaz, carrega uma aura introspectiva, silente e enigmática. Envolve-se com o médico do hospital e manipula o homem, que sustenta por ela uma obsessão incontrolável. Ofa detesta pessoas, sobretudo crianças, e revela se afeiçoar apenas pelos animais. Seu nome advém da filha de Polônio, Ofélia, em Hamlet, cuja morte considera a mais sublime jamais escrita.

Ofa é obcecada por uma paciente do hospital, Thania. Como órfã, projeta nela seus medos e traumas, já que a mulher havia abandonado o bebê recém-nascido. Após receber alta, a enferma é seguida por nossa protagonista. Em meio aos terrenos baldios, os parques e jardins locais, Ofa a segue e analisa todos os seus atos instintivos e humanos, como um animal estudando sua presa. Observa-a urinar em meio a um edifício abandonado e mimetiza o ato fisiológico. A sagacidade de Ofa aparenta se adequar àquela de sua vítima. Age debilmente como ela, frívola, inocente, mas carregando sempre, ao fundo, uma maldade impassível. Estrangula-a com a meia-calça, símbolo também de feminilidade, que imediatamente torna a vestir após finalizar o ato. Abandona o corpo e, em seguida, se entrega com o médico aos prazeres de uma noite de amores.

Sua motivação parece, enfim, encontrar algum propósito quando, no hospital, recebe a chave dos arquivos locais e, com ela, a possibilidade de olhar as antigas fichas de pacientes. Encontra o registro daquela que, possivelmente, é sua mãe biológica. E eis que o tom se metamorfoseia por completo. A incongruência de Ofa dá cada vez mais espaço para uma certeza fria. Os espaços límpidos, alvos e assépticos se transmutam em vias obscuras, cuja ornamentação fractal, presente na fachada do edifício da mãe, com seus ritmos e padrões angulosos, confirma sua aspereza de mulher fatal. Como uma dama do cinema noir, com a vestimenta sempre impecável, o vermelho vivo manchando cuidadosamente o filtro do cigarro sobre os lábios carnudos, ela observa, pelo reflexo de um espelho de bolso, a semelhança distante no semblante da mãe.

Persegue-a, no dia seguinte, pela cidade. Caminham, uma atrás da outra, até o píer. Ofa se senta ao lado dela. Exibem ambas os mesmos traços visuais – o batom vermelho, o louro platinado sobre a cabeça e o vestido carmesim. Entre os dedos, segura uma edição de Hamlet, que tem na capa a Ofélia de John Everett Millais. Mãe e filha dividem seus pensamentos sobre a morte de Ofélia, cujas roupas, encharcadas pelo peso das águas, a levaram a ceder, em meio aos botões-de-ouro, urtigas e margaridas, à morte lamacenta[ii]. O fim de sua mãe não poderia ser diferente. Ofa, atira-a às águas e se regozija com a imagem do gigantesco vestido avermelhado inflando na superfície aquática.

A terceira e última história, A menina e a morte, ecoa aspectos da duplicidade entre vida e morte. Muratova encerra sua trama com um relato também corriqueiro. Um idoso, cadeirante (Oleg Tabakov), ocupa-se de cuidar de uma garotinha, Lilia Murlykina, enquanto a mãe está fora ganhando seu sustento. O tema se desenvolve em torno do diálogo do velho e da garota. Ele, inocente, é devorado gradativamente pela malicia dela. Tenta, em vão, ensiná-la os aspectos mais sociais de interação humana – do cabelo penteado ao jogo de xadrez –, enquanto ela os desconstrói um a um com seus atos pantagruelescos – o despir das roupas, a proximidade com os animais, a normalidade dos ruídos corpóreos –, todos vistos por ele como falta de educação e civilidade. Numa discussão, a jovem resolve envenenar o chá do idoso com os restos de veneno de rato, minuciosamente coletado das ratoeiras dispostas pela casa. Até o torrão de açúcar envenenado entra como aditivo da bebida, cujo gosto amargo é tido por ele como um indício de sua inconteste senilidade, culpa da já insalubre vesícula biliar.

O terceiro conto mescla sutileza e violência. É talvez a mais voraz de todas as Três Histórias. A maneira pelo qual se inicia – um filhote de gato preto devorando a carcaça de uma galinha de ventre aberto – condensa a dualidade que incorpora a narrativa. A oposição entre idade e jovialidade, refletida na figura da garota e do velho e vista em modo metafórico no gato e na galinha – flácida, depenada e morta – sinaliza o rigor febril que perpassa a relação agressiva entre a velhice e a juventude.

A menina, com pouco menos de uma década de vida, é capaz de assassinar o idoso com requintes de crueldade. A coleta do veneno é interpelada em cena com um jogo de peões, que observa rodopiarem enquanto espera, pacientemente, o efeito do medicamento fatal. O senhor, que deveria ser o símbolo da maturidade, a voz de autoridade do lugar, é posto em situação oposta. Lesado pela idade avançada, impossibilitado de cuidar de fato da menina, é obrigado a se ver sob seus cuidados. Os gatos traduzem o caráter ambíguo da juventude. O espírito voraz, pueril e instintivo da menina condensa essa duplicidade, ao mesmo tempo fria e inocente, inerente à qualidade humana.

A narrativa imaginativa, permeada no submundo civil de cada personagem, conflui o texto, sempre muito expressivo, rítmico e ininterrupto, ao tratamento visual denso e sistemático da câmera, que se projeta sobre cada cena como um voyeur embriagado com o caminho fugidio dos eventos ficcionais. A música concede um protagonismo aos espaços, que surgem com seus próprios sons, naqueles locais humanos e urbanos, gerando uma atmosfera que aproxima os espectadores e as desconhecidas trajetórias postas em tela.

Degolação, estrangulamento, afogamento e envenenamento são os modelos mortais que condizem com as criações macabras dos contos de Muratova. Seus personagens simples, humanos e, ao mesmo tempo, desprovidos de empatia, povoam suas histórias, trilhadas na tecedura fina das diferentes fachadas decorativas, assimétricas e irregulares da crueldade humana.

A narrativa é fantástica, mas o tratamento visual da câmera é realista. A fotografia e a abordagem dos espaços arrematam a construção psicológica dos personagens, atados a seus universos solitários. Tikhomirov, com o sobretudo, o chapéu e cachecol, encontra-se enclausurado no ambiente ríspido, obscuro e sufocante da sala de caldeira. Ofa, com sua vestimenta sedutora, a pele muito alva, os cabelos igualmente louros, reflete-se na paisagem e em seu entorno, tão claro e ofuscante quanto ela. Não apenas as histórias versam sobre caminhos e intenções diversas de crimes passionais, como caracterizam um tratamento completamente díspar dos atos, convergindo aspectos narrativos, visuais e temáticos num ciclo de início e fim abruptos, sempre certeiros e enfáticos.

Três Histórias é uma análise rigorosa do caráter instintivo da crueldade humana, um filme que revela crimes sem penalidades. A câmera distante, que pouco perturba a ação, parece querer nos dizer, como num documentário sobre natureza, enquanto observamos o predador devorar a caça, que só nos resta esperar. E por isso mesmo o filme não insere o aspecto moral das punições. São estudos de caso, visões de mundos anônimos, onde o crime ocorre como um dia normal de caça, já que animal interior precisa se alimentar.

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[i] TAUBMAN, Jane B. “Crimes Without Punishment: Three Stories [1997]” IN Kira Muratova. Nova York: St Martin’s Press 2005. p. 78

[ii] SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millôr Fernandes. São Paulo: L&PM, 2004. p. 116