As ondas: quase um diário, quase uma crônica

Reinaldo Cardenuto


Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:
a – Esfregar pedras na paisagem.
b – Perder a inteligência das coisas para vê-las.
(…)
e – Perguntar distraído: – O que há de você na água?

(Manoel de Barros, sempre)

No romance de ficção científica Nova York 2140, Kim Stanley Robinson imagina um futuro tomado pelas águas. Devido ao descaso com o meio-ambiente, descaso oriundo da essência predatória do capitalismo, o aquecimento global resultou na destruição de regiões costeiras ao redor do mundo. Com a elevação do nível dos oceanos, em parte graças ao degelo das calotas polares, ondas aquáticas de aniquilação provocaram a morte de milhares de seres humanos, cujas cidades litorâneas passam a existir submersas no mar. Atingida em cheio, entre edificações em ruínas e prestes a sucumbir, Nova York precisa reconstruir-se enquanto metrópole, reinventar seu viver num misto de precariedade material, crises ininterruptas e beleza oceânica. A humanidade passa por provações terríveis, deveria ter aprendido com seus erros, mas mantém-se submetida aos ditames predatórios do neoliberalismo. Enquanto muitos se afogam, passam fome ou perdem suas casas tomadas pelo oceano, alguns poucos prosseguem enriquecendo a partir dos mecanismos da especulação financeira.

Lido por mim em janeiro de 2020, o livro de Stanley Robinson, ao descrever um futuro sombrio que se tornou imagem corrente na ficção científica, parecia reverberar o mal-estar em torno dos graves problemas ecológicos enfrentados recentemente pelo Brasil. Os dias dedicados às primeiras linhas do romance, um calhamaço com quase quinhentas páginas, coincidiram com as notícias envolvendo a crise hídrica na cidade do Rio de Janeiro. Enquanto um narrador de Nova York 2140 relatava a catástrofe do futuro, com os oceanos revoltos diluindo existências, a “vida real” expunha o descaso do tempo presente, a contaminação da água que deveria servir para o abastecimento da população carioca. Lá pelo meio do livro, os efeitos de nosso desenvolvimentismo desenfreado ampliaram-se ainda mais. Em Belo Horizonte, resultado de um urbanismo descontrolado à base de interesses espúrios e especulações imobiliárias, as chuvas torrenciais transformavam-se em alagamentos, redemoinhos, ondas de destruição e morte. Livro e vida compunham um painel de nossas crises. Do Rio a Minas Gerais, percurso do ônibus que me levou à 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, as águas estavam contaminadas, matavam, tornaram-se assustadoramente pesadas.

No dia 25 de janeiro, ainda às voltas com a leitura de Nova York 2140, decido acompanhar uma sessão de curtas-metragens no Festival de Tiradentes, parte da mostra paralela “A imaginação como potência”. Eu nada sabia sobre o primeiro filme da programação, A Felicidade Delas (2019), dirigido pela cineasta Carol Rodrigues. Realizado na cidade de São Paulo, aflitivo na representação de violências cotidianas presentes em um país autoritário, o filme apresenta uma situação agônica que ronda, no Brasil atual, aqueles que enfrentam o fascismo e lutam pelo direito à livre existência de seus desejos. Perseguidas pela polícia após participarem da Marcha Mundial das Mulheres, Ivy e Tamirys, duas jovens negras, fogem para o interior de um prédio abandonado, onde buscam algum lugar de refúgio. Acuadas pelas forças policiais, em silêncio enquanto escutam nervosamente os ruídos da violência inevitável que se aproxima, as personagens vêem seus desejos aflorarem em meio à tensão. Na penumbra avermelhada, no aperto entre quatro paredes, ao som sufocante que ecoa a perseguição, as duas cruzam olhares, aproximam respirações, tocam-se suavemente, amam-se. Não há a necessidade de falas, teses ou discursos. A alegoria dos desejos que emergem mesmo diante da pior opressão encontrava-se evidenciada na tela do cinema.

No entanto, quando o amor rebenta, na iminência da agressão policial, Ivy e Tamirys transformam-se repentinamente em água. Não uma água qualquer, não uma água a evaporar-se. Mas sim uma grande e calorosa onda a espalhar-se por São Paulo, a tomar posse dessa cidade historicamente acusada de ser o epicentro do descarte e do desamor. Como um maremoto da paixão, a despeito de tudo e de todos, as duas inundam a megalópole com a quentura de seus desejos e corpos. Após tantas águas contaminadas, sujas, mortais, destrutivas, as águas de A Felicidade Delas restituíam um pouco da crença no cristalino, na redenção pelo mar. Outros filmes da Mostra de Cinema de Tiradentes, com ou sem referências às águas, também traduziriam esse sentimento de afeto, encontro e redenção envolvendo o feminino. São os casos, sobretudo, de Um Dia com Jerusa (2019), de Viviane Ferreira, e de Até o fim (2019), de Ary Rosa e Glenda Nicácio. Entre tantas coisas, a arte é mobilizadora de desejos em meio a projetos arruinados de sociedade.

Acontece, porém, que o Brasil atual, em suas perversidades, parece naufragar as expectativas de futuro. Residir no Brasil, hoje, é viver uma incansável ressaca da felicidade. É como um abrupto e exaustivo movimento das marés. Quando a praia se apresenta viável para o banho, criando um sentimento de que a democracia irá emergir das águas, logo depois algo de ruim acontece para nos recordar que as ondas também podem ser traiçoeiras e afogar anseios. Ainda no dia 25 de janeiro, após sair da sessão de A Felicidade Delas e com o pesado volume de Nova York 2140 na mochila, alguém recorda uma das piores tragédias de 2019. Exatamente um ano antes, não muito distante da cidade de Tiradentes, a barragem de Brumadinho rompeu-se, resultando em um dos maiores desastres ecológicos do país. A onda cristalina e desejante de A Felicidade Delas sobrepunha-se a outra onda, assassina, de rejeitos de mineração, de um lodo mortal proveniente da ganância desenvolvimentista do ramo industrial. As ondas chocavam-se. Enquanto a onda na tela reagia à violência com amor, a outra onda, de lama, dos rejeitos retirados das entranhas da terra, resultou na morte de quase trezentas pessoas. Uma lama criminosa e sem punição. Dizem: é preciso desejar, desejar, desejar. Mas não é fácil.

Três dias depois, 28 de janeiro, as ondas entrechocavam-se com mais força. Nas poucas horas vagas da Mostra de Cinema de Tiradentes, prosseguia a leitura de Nova York 2140. E o livro, já em sua parte final, anuncia um terrível furacão a destruir ainda mais a cidade submersa no mar. De Belo Horizonte, vinham notícias terríveis: prosseguiam as chuvas, as mortes, as crateras que engolem seres humanos. Em Tiradentes, a potência dos discursos e dos filmes, potência criativa e real de atores sociais historicamente silenciados em um país autoritário, convivia inevitavelmente com a catástrofe cotidiana que cerca o país. Arte e vida não se desligam, não vivem em separado. A confusão mental entre potência das telas e impotência da nação, confusão minha e que talvez seja partilhada por outros, confusão entre ações e inações, tornava-se ainda mais pungente no dia 28 de janeiro. E foi durante à noite, nessa mesma data, que a Mostra de Tiradentes exibiu o curta-metragem Egum (2019), de Yuri Costa.

Pelo que me recordo, não há alusões às águas no filme Egum. A onda de opressão que atravessa o filme, uma onda que remete às heranças escravocratas presentes até hoje na constituição autoritária do Brasil, refere-se, como metáfora, ao movimento destrutivo que aniquila as populações pobres e negras em nosso país. Composto por planos fechados e angustiantes, com uma câmera a tremer de modo quase ininterruptivo, Egum apresenta, a partir de três breves atos, uma situação de extrema violência na qual uma família em colapso, com pai entregue às bebidas e mãe acamada, vê-se assediada por um estranho casal que ali aparece para tudo retirar-lhe. Aqueles que acossam, alegoria de uma branquitude dominadora com seus discursos empresariais e religiosos totalitários, batem à porta, com sorrisos forçados, para extrair da família negra sua cultura, seus poucos pertences, seus integrantes, seu existir. A onda de dominação que atravessa o curta-metragem do início ao fim, situação que reporta a séculos de escravidão e racismo, rebenta no filme como sufocamento contra o qual os oprimidos não conseguem reagir. A despeito das tentativas do filho, guardião de uma potência própria aos que retornam à casa de origem após anos de aprendizado no mundo, a inundação promovida pelos opressores não consegue ser contida. No terceiro ato de Egum, ponto de culminância da onda invasiva, nada mais resta para segurar a violência que se avizinha. A porta da casa, escancarada, deixa entrar um mar de corpos violadores, uma massa terrífica que torna-se proprietária das vidas, dos espaços e das culturas negras. Estupendo como alegoria de nossa condição autoritária, sem oferecer pausas fílmicas para o respiro, dias depois Egum seria agraciado pelo júri de Tiradentes com o prêmio de melhor filme da Mostra Foco.

O terror que ronda o país, essa violência estrutural que nos (de)forma, encontra-se assustadoramente presente tanto em Egum quanto em A Felicidade Delas. No primeiro filme, a experiência sensorial é de amarga derrota, de impotência. A onda que atravessa o filme, onda-lama, onda da contaminação, traduz o movimento dos dominadores em seus processos destrutivos. No segundo curta-metragem, a despeito da violência, o amor livre restitui a crença na felicidade. A onda, nesse caso, é potência, é água cristalina, manifesta a permanência do desejo a despeito de tudo. Tal desencontro ondular nada surpreende, ainda que amplie a exasperação contemporânea entre potência e impotência. A arte, em sua pluralidade, é raio-x dos nossos fracassos e também é manifestação de nossas vontades. Existe, sem dúvida, para nos retirar continuamente do lugar de segurança. Desorienta sem necessariamente orientar. Claro que esse movimento de choque, de confronto ondular, não advém sem uma boa dose de amargor. Afinal, o que nos falta para o salto adiante, para superar a violência presente em Egum e efetivar, na vida real, esse maremoto transformador sugerido em A Felicidade Delas?

No dia seguinte, 29 de janeiro, vou embora de Tiradentes. Lamento a impossibilidade de permanecer na cidade até o encerramento do Festival. No ônibus de retorno ao Rio de Janeiro, retomo a leitura de Nova York 2140. Nas páginas derradeiras de seu livro, Stanley Robinson surpreende seu leitor com uma grande reviravolta narrativa. Após uma situação que leva a cidade submersa ao pior de seus colapsos, a solidariedade dos humilhados e humanistas impulsiona uma onda coletiva de reação contra a elite do capitalismo. Na ficção científica, escrita imaginativa acerca do futuro, por vezes descrições sombrias da humanidade convivem com desejos de projetar ações coletivas que irrompem como tentativas de nos salvar da catástrofe. Inevitavelmente, sob o efeito de Nova York 2140, penso nos paradoxos provocados pelo desencontro entre as ondas de Egum e de A Felicidades Delas. Penso, sobretudo, no contemporâneo. Diante do fascismo crescente que ronda o Brasil, e que nos deforma há tempos, muito antes do extremismo de direita ocupar a centralidade do poder, por que não emerge uma resistência plural e efetiva que reponha alguma crença possível de futuro na nação? Por que não se materializa uma força coletiva, de oposição concreta, ao estado das coisas? Face a tantas potencialidades reais, sobretudo de atores sociais que o país escanteou historicamente, é possível imaginar um caminho que saia da fragmentação e resulte na união? Entre as curvas da estrada, fecho o livro de Stanley Robinson. Talvez o anseio da solidariedade plural seja a face de um romantismo que ainda me povoa. Tal desejo, talvez, tenha migrado da luta política para as especulações da ficção científica. Difícil dizer.

Chegando em Niterói, onde vivo, decido caminhar pela orla. O clima é quente, a maré está baixa. Cercada por pedras, entre ondas suaves, uma tartaruga se debate em meio ao lixo que flutua na Baía da Guanabara. Solitária, ela tenta, sem sucesso, livrar-se da armadilha. Talvez consiga retornar à amplidão do mar apenas na maré cheia. Talvez eu pudesse ajudá-la, mas desisto da ideia. Penso que somos como aquela tartaruga, mas a metáfora, pobre demais, me chateia. Volto a caminhar, incomodado. Nesse momento, cavoucando a memória, ecoam livremente as palavras provocativas da escritora Helena Vieira, naquela que foi uma das falas mais instigantes da Mostra de Cinema de Tiradentes. Ao relembrar o nosso esgotamento atual e a nossa incapacidade de projetar futuros, alertando para a desesperança de uma nação Brasil que se constituiu na morte, ela sugere que assumamos a imaginação, que inventemos um novo mundo. Invenção que não tem receitas fechadas, mas parte de um lugar de desorientação: é preciso compreender que nossas fórmulas políticas fracassaram, aceitar a derrota daquilo que um dia povoou nossas crenças utópicas de futuro, para que a partir desse movimento de deformação surjam novas potencialidades de transformação. São palavras que me confundem, que me viram do avesso. Não sei se reproduzo com fidelidade o que Helena falou ou se traduzo ao meu modo. É quando penso, pela primeira vez, em escrever esse texto estranho, meio diário e meio crônica, como sintoma das minhas confusões. Estou confuso. Quem não está? Mas apesar da confusão, não há pausa no pensar. Nem no desejar.