O Amor dos Leões (1969)

Em busca do sol

Thomas Lopes Whyte

O Amor dos Leões (1969) é fruto das inquietações políticas que varreram o mundo ao final dos anos 60. As manifestações francesas de 1968, a ofensiva Tet lançada por norte-vietnamitas e vietcongues, o fechamento do regime no Brasil e as lutas norte-americanas por igualdade e direitos civis são alguns dos movimentos que absorveram parte cada vez maior da atenção de artistas. Com a popularização da televisão e o desenvolvimento, no início da década, de tecnologias mais portáteis para a tomada de imagens, foi possível aproximar universos tão distintos como um arrozal bombardeado nos arredores de Saigon e uma casa de classe média no interior do Nebraska. Os conflitos, em pleno período de desenvolvimento da linguagem publicitária televisiva, tornam-se também espetáculos imersivos, organizadores de imaginários que agem cada vez mais como catalisadores de neuroses.

É nesse ambiente de saturação das imagens e da multiplicação de signos e suas dimensões políticas que Varda se lança às investigações de um território tão fascinante quanto a Los Angeles de 1969. Ao contrário dos europeus exilados da escola de Frankfurt, que adotaram uma postura de repulsa em relação a cidade, ela dedica um olhar mais afetuoso ao seu objeto. Vale lembrar que, enquanto Godard participava dos movimentos franceses em maio do ano anterior, a diretora preferiu voar aos Estados Unidos para documentar os protestos dos Panteras Negras, de caráter notadamente mais feminista e revolucionário. Contraditoriamente, se os Estados Unidos, com seu macartismo embolorado, poderiam parecer vulgares aos olhos de uma Europa que mal acabara de perder suas principais colônias no Sul, eram também um país que deixava os manifestantes franceses, com seus terninhos bem cortados, parecendo um bando de aristocratas saídos de um clube de caça.

A partir de um intrincado dispositivo de filmagem, Varda tenta sucessivas aproximações em direção ao coração desse torvelinho cultural. Enquanto focaliza um trio de artistas praticantes do amor livre, a diretora ambiciona criar um retrato – bastante solto, é verdade – das distensões políticas norte-americanas. Por um lado, há o esfacelamento das utopias, e por outro, um universo suave e quase nostálgico, irradiado a partir das interações do trio principal de personagens. Às sequências jornalísticas saídas da televisão e do jornal, contrapõem-se os jovens, em longos planos entre lençóis, banhados por luzes suaves, filtradas pela cortina. E como agente capaz de organizar essas duas vertentes, Shirley Clarke é evocada e tomada aqui quase como um avatar de Agnes, apesar de sua aparição no próprio filme.

Mas qual é a Hollywood habitada por esses Leões que se amam? Ainda que não aponte o caminho que a nova Hollywood iria traçar de 69 em diante, o filme faz coro aos que anunciavam a década de 1960 como o sepultamento da Hollywood dos anos dourados. O período entre os assassinatos de John e Robert Kennedy (evento abordado no filme) prefigura o momento de transição radical, que até então não havia sido acompanhado pelo cinema, ao menos em sua versão industrial norte-americana. Mas se o filme de Agnes permite uma certa inclinação ao porvir, ele ainda se faz sobre uma forma museográfica, apoiando-se reiteradas vezes sobre evocações suscitadas pela memorabília hollywoodiana.

Essa versão ambígua do éden de Hollywood, no entanto, é construída sobre a inversão operada por uma estética vardariana aplicada ao Kitsch californiano. É como se um tipo de véu fosse jogado sobre as palmeiras de plástico e piscinas ameboides, transformando a própria natureza da matéria descartável e sintética em lírica. O mundo pop de cores saturadas e do apelo publicitário é mergulhado, por vezes, em uma luz “mole”, um tipo de éter em meio a qual o movimento deixa seus rastros, prolongando as ações como afirmação da imprecisão do fazer artístico. Varda opera, a seu modo, uma alquimia capaz de criar um terceiro elemento a partir da síntese entre quadros de artistas tão contrastantes como Degas e Ed Ruscha.

Thom Andersen, em sua obra-prima Los Angeles Plays Itself (2003), nos lembra que L.A., mais do que qualquer outro aglomerado urbano, é o resultado do encontro de uma dupla história. Sendo a cidade que mais vezes representou a si mesma no cinema, sua síntese repousa em uma torrente confusa, formada por ficção e realidade, com alguma vantagem talvez para a primeira vertente. Ao lado da história antimítica e de formação social, escrita nos anos 30 por intelectuais ligados aos movimentos sindicais, e das guerras pelo acesso à terra narradas pelo Los Angeles Times e Chinatown (1974), pululam histórias tão fascinantes quanto contraditórias, forjadas a partir de uma mistura de literatura Noir e distopias militaristas. Não é por acaso, que desse caldo derivem fenômenos culturais tão distintos quanto a cientologia e o Gangsta Rap do NWA.

Nesse sentido, talvez o gesto observacional empreendido por Varda tenha sido incapaz de se desvencilhar da camada superficial das miragens projetadas pela própria Hollywood. As ideias imprecisas sobre fama, arte e política, em um contexto tão fractal quanto o da costa Leste, acabam funcionando como uma armadilha, ao induzir a atenção e os olhares em direção ao brilho de suas estrelas, que apesar de fascinantes, muitas vezes repetem o já desgastado arquétipo do artista pequeno-burguês blasé. O gesto abrangente que tenta capturar o ethos da geração Hippie a partir de um registro lírico transforma-se, acidentalmente, em uma cópia dessaturada de seus objetos reais. E, talvez por não assumir totalmente a postura de quem prefere um olhar mais generalista, o resultado dessa “representação total” acabe sendo menos brilhante do que a própria ilusão do sonho ingênuo californiano apresentada em seu estado puro.

Se o grande sistema de estúdios e seus artistas, ainda sufocados pelo peso de tradições, pouco tinham a dizer sobre o ano de 1969, qual teria sido o resultado de um filme semelhante se ele houvesse sido filmado de fato, nas ruas de L.A.? Em Mur Murs, filme de 1981, a diretora retoma o tema Angelino, mas a partir da exploração de manifestações culturais pontuais. Assim como Brassai, que fotografou os grafittis parisienses durante os anos 30, Varda mapeia os grandes murais espalhados pelas ruas do imenso subúrbio. E é somente a partir dos depoimentos dos próprios artistas que nos é dada a possibilidade de perfurar, parcialmente, a superfície sublinhada por Andersen. Ainda que à primeira vista possa parecer um mero catálogo ou um compêndio de arte urbana, o formato adotado aqui ganha relevo a partir da transformação profunda operada pela película sobre o objeto mural. Sendo as pinturas reflexos indissociáveis das comunidades que as deram origem, é principalmente a partir do binômio som/imagem que nos é permitido acessar suas bases históricas e eliminar o fetichismo que tende a subalternizar as manifestações populares de arte e cultura. Realizados em um período anterior à popularização do hip-hop, esses afrescos modernos revelam parte de uma heráldica urbana complexa e amplamente ignorada até então. Filmado durante a abertura da cidade para as “benesses” do mercado de arte global, Mur Murs é uma pequena joia arqueológica que abre caminhos fecundos para outras interpretações de uma capital historicamente violenta como L.A.. Os barrios da região centro sul, os muros do comércio local e as muretas de Venice Beach, contam uma história artística antiga, de uma longa linhagem que, com alguma dose de imaginação, poderia nos levar aos célebres painéis de David Alfaro Siqueiros.

Mas, talvez, O Amor dos Leões seja menos um retrato sobre uma sociedade específica e mais sobre os atropelos da própria história e a dificuldade de se situar artisticamente em um mundo delirante, no qual os eventos se acumulam em ritmo cada vez mais alucinado. Parte do que vemos na tela é, em certa medida, a “derrota” de Shirley Clark e, por que não, da própria Varda. Perdidas entre solicitações confusas de estúdio e um mundo disforme, elas acabam fazendo um filme que fala mais sobre o processo de filmar do que, propriamente, daquilo que poderia se descobrir. Tomado dessa forma, e ao contrário de seus outros filmes californianos, o longa é um retrato da apreensão da autora, diante de um mundo cada vez mais refratário às simplificações das grandes narrativas.

Em determinado momento do longa, Shirley tenta, sem sucesso, encontrar caminhos que a permitam realizar suas tomadas, mas, diante da confusão vaga e irreversível, só lhe resta desabar sobre o sofá e aceitar a impossibilidade de uma tradução. Extrair de Hollywood e Los Angeles um objeto coerente e controlável é tarefa impossível, e talvez seja por isso, e não pelo acaso, que a cidade tenha se transformado no cenário que cineastas mais gostam de destruir; o grande epicentro dos filmes catástrofe.