
Ao ar, livre
Pedro Veras
Foi no dia 21 de junho de 1961. Será? Quanto ao ano podemos ter certeza. Agnès Varda comemorava 33 anos de idade, 4 curtas, 1 longa-metragem e filmava aquela que se tornaria uma de suas obras mais potentes e duradouras. O abalo que Cléo das 5 às 7 causou na história do cinema moderno fez ressoar ondas que rebatem até este nosso 2020. São 59 anos. E é justamente o tempo um dos eixos mais importantes do filme. Pensar nele é uma das habilidades que parecem ter sido roubadas pelo sistema em que vivemos. Há pressa e o tempo que nos interessa é aquele prático, calculável, em minutos ou horas. Quase material. Uma cultura dominante – e dominadora – se impõe em nossos modos de vida e nos faz perder de vista suas magias e possibilidades. Um tempo enquanto ideia de futuro, abstração, infinitude.
Contudo, há obras de arte que, vez ou outra, despertam para nos lembrar de tal magia. Em Cléo das 5 às 7, Varda coloca o tempo em relação tanto com a vida (pela narrativa), quanto com o próprio cinema (pela forma). Dividida em 13 capítulos, a fita acompanha uma hora e meia do fim de tarde da cantora pop Cléo Victoire (Corinne Marchand), no primeiro dia do verão de 1961. Cléo aguarda ansiosamente pelo resultado de um exame de biópsia – que será liberado às 18h30. É durante essa última hora e meia que ela enfrentará todo tipo de pensamento, reflexão, fantasma ou ilusão a respeito de sua vida e morte. Um prato cheio para uma pensadora das imagens interessada em explorar temas como o empoderamento feminino, os padrões de beleza, a guerra e, sobretudo, a liberdade. Cléo das 5 às 7 instaura uma espécie de limbo entre o aprisionamento (físico, emocional, social e simbólico) e a liberdade mais plena, que (talvez) seja alcançada por uma tomada de consciência. Ambas essas extremidades do limbo se manifestam na personalidade de Cléo, derivando assim outras duas personagens que guiam as metades do filme – “Cléo primeira” e “Cléo segunda”.
As primeiras imagens de Cléo das 5 às 7 não são em preto-e-branco, como todas as demais até o fim do filme, mas bastante coloridas: um plano fechado no qual duas mãos surgem em close embaralhando cartas de tarô sobre uma mesa. Uma voz se manifesta, “Corte senhorita”. Uma nova mão surge no enquadramento e corta o baralho. Mas o “corte” não ocorre apenas na diegese no filme, há o corte da imagem para o plano seguinte, mais aberto, que revela novos objetos sobre a mesa. Corte das cartas, corte das imagens – um dos vários jogos visuais que Varda concebe em tom sarcástico, característico de seu estilo. Cléo das 5 às 7 frustra os procedimentos formais de um cinema tradicional e acomodado – brincando com a continuidade de imagens e sons, por meio de jump-cuts, dessincronizações, quebras da quarta parede etc. A liberdade em Cléo das 5 às 7 permite que o mágico e o místico predominem em vários momentos, como este. As personagens do filme – e seus papéis na vida da protagonista – são todas apresentadas pela cartomante, de forma imaginária, simbolizadas pelas imagens do tarô. É como se o argumento inteiro do filme fosse dado nesta conversa, onde temos início, meio e fim desvelados. Já embebido pelo preto-e-branco, que prevalecerá até o fim, a sessão termina com Madame Irma (Loye Payen) confirmando para uma desesperada Cléo que ela de fato possui câncer.

Começa a sequência de capítulos cronometrados, que acompanham o tempo real das ações internas do filme. Junção do tempo mensurado em minutos com aquele mensurado em sensações. O primeiro capítulo – “Cléo de 17h05 a 17h08” – dura não apenas três minutos na vida da personagem destacada, mas também três minutos no relógio de quem assiste ao filme, efeito garantido pela cuidadosa montagem. Desesperançosa, Cléo se detém por um instante diante de um espelho que faz seu reflexo cair em uma mise-en-abyme, metáfora visual para as confusões mental e emocional da personagem que geram um labirinto, que culminam na sua própria imagem. “Ser feia, eis a morte! Enquanto eu for bela, serei viva, e 10 vezes mais do que os outros” ela diz a si mesma. Essa se torna uma espécie de “epítome” da “Cléo primeira”, infantilizada, guiada pelos padrões sociais, crente na beleza superficial e plástica como verdadeiro antídoto para a morte.
O espelho se torna um motivo recorrente para a “Cléo primeira”, surgindo como metáfora do enclausuramento da cantora e não como mero lembrete de sua vaidade. Não é sua pele, seu cabelo ou o rímel que ela contempla quando observa seu reflexo, mas sua alma atormentada, à qual ela insiste em escapar via futilidades. Em uma cafeteria qualquer, Cléo se encontra com Angèle (Dominique Davray), figura estranha, maternal, que se presta a governanta ou “tutora” de Cléo, mas que na realidade a mantém dentro dos padrões, cumprindo a vigília mais íntima, infiltrando-se na vida domiciliar da cantora.
É a excessiva superstição de Angèle que leva as duas a evitarem um táxi dirigido por um homem – graças à placa do carro que “daria azar” – e a pegarem um táxi conduzido por uma mulher. “É um trabalho duro para uma mulher, não?”, pergunta Angèle, “Mas eu gosto mesmo assim”, responde a taxista, que completa “Medo da noite? Por quê? Não sou do tipo medrosa”. O passeio em uma tarde de Paris a bordo do táxi da motorista é um passeio sob a perspectiva de uma mulher – da diretora Varda, da taxista e das passageiras – que se manifesta pelo espelho (mais uma vez) retrovisor do carro, onde estão refletidos os olhos da taxista, enquanto vemos a cidade através do pára-brisa. A modernidade do cinema de Varda se faz sentir pela dissonância – novo choque para o olhar conformado com os ilusionismos do cinema dominante – entre a boca fechada da taxista refletida no retrovisor e sua voz na banda sonora. O que importa não é a sincronia imagem/som, mas a força do relato ouvido em articulação com a cidade vista.

Nessa sequência, Varda insere um importante comentário político em sintonia com os anseios de sua geração. No rádio do carro, duas notícias parecem reforçar o contraste entre as duas partes do filme, e consequentemente as duas “Cléos”. Na primeira, fala-se do lançamento de um novo shampoo à base de whisky para mulheres norte-americanas, capaz de revitalizar os fios capilares. Em seguida, uma notícia a respeito de novas manifestações de muçulmanos ocorridas na guerra de independência da Argélia, que resultaram em 20 pessoas mortas e 60 feridas. A estação de rádio noticia que o Comandante Georges Robin[1] havia sido condenado a 6 anos de prisão por traição à pátria. Isso representa uma espécie de “vitória anti-colonialista” para aquelas e aqueles que, ideologicamente, aderiram à luta pela independência da Argélia, principalmente à FLN (Frente de Libertação Nacional). Varda faz não apenas um uso político da imagem cinematográfica, mas torna o cinema o próprio meio de comunicação da Revolução, como que “dando notícias” sobre a situação na Argélia (a Guerra acabaria em 1962, um ano após a filmagem de Cléo das 5 às 7). Há ainda uma notícia sobre a importante paralização de fazendeiros e agricultores da região da Bretanha, conhecida como “Revolta dos camponeses de junho de 1961”[2]. Varda faz política pelas imagens e consegue tornar política a matéria-prima do cinema (imagem + som), não apenas noticiando fatos da crônica política francesa, como fazendo-nos imergir em uma crítica que só é possível pela leitura das imagens e dos sons em conjunto. Cinema como veículo.
Em sua casa, um cenário exageradamente decorado com incontáveis relógios – o tempo, sempre ele –, Cléo receberá visitas de duas figuras masculinas importantes em sua vida: seu amante, José (José Luis de Vilallonga), e seu parceiro profissional, o compositor Bob (Michel Legrand, que também assina a trilha musical de Cléo das 5 às 7). O primeiro, um homem mais velho e paternalista, com interesses pela beleza plástica e jovial de Cléo, sua “Cleópatra”, e que procura mantê-la aprisionada a padrões de beleza retrógrados e opressores. “Sua beleza é sua saúde” diz ele à protagonista. O segundo, jovem que dissimula compreender as aflições de sua amiga, mas que, na realidade, não tarda em ofensivamente tachar Cléo de “vaidosa e carente”. O machismo não tem idade, o músico apenas atualiza a insensibilidade do amante. Ainda assim, o filme extrai uma potência de recusa e resistência por parte da cantora, quando, em um dos seus planos mais célebres, Cléo entoa um canto supremo, enquanto encara a câmera. Ali testemunhamos o poder de seu talento. De um plano de conjunto, onde vemos todas as personagens envolvidas na sequência, a câmera se move e aproxima-se de Cléo e, à medida que a música ganha em dramaticidade, a imagem vai se fechando até que o torso e rosto de Cléo preencham todo o enquadramento, sobre um fundo escuro. Na trilha musical passamos a ouvir outros instrumentos que não só o piano diegético, carregando o filme para outra dimensão (a interior, mental, de Cléo?) que foge das amarras lógicas de uma representação naturalista. Uma lágrima nasce e corre em seu rosto, sem cortes. Quanto tempo dura uma canção? Quanto tempo dura um plano cinematográfico? O que delimita o seu início e o seu corte?
O canto parece trazer à tona o espírito inquieto de Cléo. Ela não pode mais esconder sua vida interior, tão abalada pela possibilidade do câncer, da morte. Revoltada, ela se troca por trás de uma cortina preta, que, em determinado plano, cobre por completo a imagem. Num gesto triunfante a cantora “desvela” o enquadramento, abrindo a cortina de supetão e revelando seu novo figurino, completamente preto. Nasce a “Cléo segunda”. O filme é construído para que os contrastes entre as duas faces de Cléo fiquem evidentes dali em diante, não só em sua figura, mas na forma do filme. Varda transpõe essa liberdade que Cléo almeja para as filmagens na rua, posicionando a câmera agora diante da personagem, frontalmente, contrastando com a perspectiva voyeurística, observadora, de antes. A experiência da protagonista muda quando ela agora efetivamente olha para o Outro, encara a vida alheia, anda pelas ruas parisienses e se depara com as várias passantes, cujos rostos agora figuram em vários planos do filme. Em Cléo das 5 às 7 essas figuras são frequentemente capturadas, sobretudo para reforçar o “contato com o mundo externo”. Cléo deixa de ser observada para se tornar observadora, atrás de seus óculos escuros.

Apequenada diante da opressão da vida urbana, ela recorre à amiga, Dorothée (Dorothée Blanck), modelo que posa para escultores em um ateliê de artes. A colega surge como um respiro de liberdade, não se importando em desnudar-se publicamente, afirma sentir-se “feliz, não orgulhosa” com o próprio corpo ao ser questionada pela insegura Cléo. Após mais uma volta de táxi, Cléo vai ao Parque Montsouris para caminhar sozinha e espairecer. É lá onde Cléo conhecerá o intrigante Antoine (Antoine Bourseiller), um soldado em licença que voltará para seu posto na Argélia no dia seguinte. O comentário político de Varda a respeito da Guerra da Argélia vem metamorfoseado na personagem de Antoine. Seu conceito de morte não é aquele, ainda que cruel, mais “confortável”, da morte por doença. Para ele a morte era aquela “morte por nada”, a mais deprimente de todas, comum nas guerras. É um soldado avesso à guerra. O terror externo (guerra, colonialismo) se encontra com o interno de Cléo. A morte é o que os une. Juntos, cantora e soldado rumam até o hospital para saberem o resultado da biópsia, ação que preenche todo o último capítulo do filme – “Cléo e Antoine de 18h15 a 18h30”.
Varda mantém sua crônica da vida banal com uma imagem penetrante. Ao decidirem ir ao hospital para receberem o exame com o resultado em mãos, Antoine e Cléo pegam o ônibus (ao contrário dos sucessivos táxis e caronas de carro que Cléo pegara ao longo do filme). O ônibus é esse microcosmo da cidade, excelente observatório da vida privada (e alheia). Enquanto passageiras e passageiros observam um recém-nascido atravessar a rua dentro de uma incubadora carregada por dois enfermeiros, ouvimos na faixa sonora algumas mulheres figurantes conversando, e uma delas lembra que seu filho esteve dentro de uma por dois meses e tudo que ela pôde fazer era olhá-lo. É o gancho para que Antoine continue a contar mais histórias a Cléo. “Nascimento”. É a demonstração frágil e efêmera do que a vida é diante da morte. A vida é regrada pelo tempo (a duração de Cléo nos lembra) mas a morte, é eterna. A notícia dada pelo médico de que ela de fato está doente, contudo, já não surte os mesmos efeitos apocalípticos do início do filme, Cléo agora encara vida e morte de outra forma, mais livre e pessoal.
Por que “Cléo das 5 às 7”, se paramos de acompanhá-la às 18h30? Porque Varda priva nosso olhar observador, quiçá julgador, dos melhores 30 minutos do dia de Cléo, durante os quais provavelmente ela sairá com Antoine. São dela. Essa privação do olhar rompe com a expectativa gerada já pelo título da fita. A liberdade do filme não se rende às exigências de uma “arte com fim” (em ambos os sentidos) e termina em aberto. E é sobre essa liberdade, da mulher, da artista, da câmera, do tempo, do movimento e do cinema, que Cléo das 5 às 7 consegue abordar de forma tão poderosa. Há por fim a liberdade da morte também, que passa a ser encarada sem idealizações feitas por pessoas que (obviamente) nunca a experimentaram. Ela existe, ponto. Lidemos com ela. Há filmes que não envelhecem nem bem nem mal, simplesmente não envelhecem. O vigor de Cléo das 5 às 7 morrerá apenas no dia em que o cinema também morrer. Talvez, num fim de tarde, por volta das 7, ou nunca.
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[1] Militar ligado ao “Putsch de Argel”, uma tentativa fracassada de militares nacionalistas-extremistas franceses que tentaram derrubar o presidente Charles De Gaulle, que iniciava negociações com a Argélia, por não aceitarem que a França perdesse o controle colonial.
[2] Os agricultores manifestavam contra a qualidade de vida no interior, a estagnação dos baixos preços de produtos agrícolas e o crescente endividamentos no campesinato, além das demandas de produção cada vez maiores por conta do aumento das “cosmópolis” francesas, inversamente proporcional ao número de pessoas trabalhando no campo.