As Duas Faces da Felicidade (1965), de Agnès Varda

Tragédia no paraíso ou o mundo feliz dos homens

João Campos

Eu parti de impressões mínimas, muito tênues, quase nada: de fotos de família.

Em detalhe, vê-se um grupo de pessoas, todos estão em torno de uma mesa,

sob uma árvore, eles levantam suas taças e sorriem olhando para a objetiva da câmera.

Olhando a foto, você se diz: é a felicidade!  Apenas impressão.

Olhando melhor, você é atingido por uma inquietação:

todas essas pessoas, não é possível, há 15 pessoas na foto, velhos, mulheres, crianças,

não é possível que eles tenham sido, todos ao mesmo tempo, felizes…

Ou então, o que é a felicidade, já que eles parecem tão felizes?

A aparência de felicidade é também felicidade.

(Agnès Varda em entrevista concedida a Jean-André Fieschi e Claude Ollier, publicada na revista Cahiers du Cinéma nº 165, de abril de 1965[1]).


Agnès Varda iniciou seu trabalho artístico na fotografia, prática que influenciou bastante sua obra cinematográfica. Seus conhecimentos sobre pintura também encontram expressão em sua filmografia, seja como ponto de partida de uma jornada ensaística (Os Catadores e Eu) ou como referência para a composição plástica da obra (As Duas Faces da Felicidade). Estamos diante de uma artista multifacetada, que se desloca do documentário à ficção, do cinema narrativo ao ensaio audiovisual – muitas vezes criando nos interstícios desses registros. Sua obra é, antes de mais nada, locus de reflexão crítica e experimentação formal – e é nessa chave que pensaremos um de seus filmes mais celebrados, As Duas Faces da Felicidade, de 1965.

Se o leitor atento se dedicar ao exame de críticas e outros textos sobre Varda e sua obra, logo notará algumas caracterizações recorrentes que não nos ajudam a entender a força reflexiva e plástica dos filmes da autora belga. Termos como “fragilidade”, “ingenuidade”, “intimização do registro”, “universo afetivo”, “carinho”, “cuidado” são usados de forma recorrente para caracterizar a cineasta. Somado a estas tristes escolhas para falar do cinema de Varda está o famigerado “olhar feminino”[2] que esta mulher aparentemente ostentaria. Nada mais vago do que essas palavras que, apesar de colaborarem para a criação de um fetiche, não contribuem para a construção de um ponto de vista analítico sobre os filmes da cineasta.

Dito isto, procuro neste texto analisar alguns elementos formais de As Duas Faces da Felicidade para, depois, relacioná-los ao mundo apodrecido em que a obra foi criada. Apresento uma leitura concisa e pessoal de um filme que me espantou – obra que muitas vezes foi lida como um drama visualmente deslumbrante sobre a infidelidade. Certamente é um filme belíssimo, com um cromatismo vivaz e cenas intensamente iluminadas que conferem um ar paradisíaco ao universo construído por Varda. No entanto, minha leitura destaca dois aspectos que dão sentidos sombrios a esta plástica da felicidade: a ironia e a brutalidade do filme – ainda que este efeito brutal seja tecido com sutileza.

A princípio, podemos notar a ligação deste filme com os impressionistas. As cenas em que a família de François e Therese realizam piqueniques no campo e descansam em meio à vegetação nos remete a quadros dessa época. Como disse Varda em entrevista concedida a Yvonne Baby em 1965 para o jornal Le Monde:

Pensei nos impressionistas: em seus quadros, há uma vibração da luz e da cor que me parece corresponder exatamente a uma certa definição da felicidade. Aliás, os pintores desta época adaptaram sua técnica à sua temática e, assim, eles mostraram piqueniques, refeições sobre a relva, domingos que se aproximavam de uma noção de felicidade. Eu utilizei a cor, porque a felicidade não pode ser ilustrada em branco e preto.

No entanto, a autora articula essa imagística do passado de forma completamente irônica, subvertendo a imagem da felicidade erigida nos quadros de pintores como Renoir e Monet, ao fazer interagir essa estética com uma perspectiva crítica do mundo. O primeiro elemento que nos fornece uma pista para essa afirmação é a utilização do cromatismo como recurso expressivo. Para além de um naturalismo simples que pasteuriza as cores em sua tentativa de imitar a natureza em cena, As Duas Faces da Felicidade nos apresenta um movimento de constante variação cromática entre as manchas do arco-íris. Amarelo, vermelho, verde e azul são combinados no cenário, figurino e montagem (com os inúmeros fades). Diferentes tons da mesma cor são combinados em cena, configurando uma composição cromática manifestamente exagerada.

Os quadros impressionistas que retratavam cenas vivamente coloridas em dias ensolarados no campo se transformam, na mise en scène da obra, em cenas em que as cores se tornam recursos para causar estranhamento, o que confere ares surrealistas ao filme. Nós estranhamos a improvável e ilimitada felicidade da família e este processo de distanciamento começa com o excesso de cores. Nesse sentido, Varda deforma a realidade a partir de sua apropriação singular da estética impressionista, nos mostrando uma felicidade aberrante, um pequeno mundo paradisíaco que, no entanto, está fadado à ruína pela ação do homem, o carpinteiro François.

As Duas Faces da Felicidade expõe com sutileza o cinismo dos homens em relação às mulheres. Uma sequência nos permite pensar melhor essa questão. O casal François e Thérèse está conversando em sua pacata moradia. Eles estão no banheiro. O homem se barbeia e sua esposa o pergunta quem ele prefere como mulher. François está lavando seu rosto e, antes de o secar com uma toalha azul, responde: você. Um corte nos conduz subitamente a um primeiro plano de um armário no ambiente de trabalho do carpinteiro. Uma série de imagens de cantoras e atrizes famosas estão coladas na porta do móvel, exibindo seus corpos seminus numa espécie de pequeno atlas de fetiche. São corpos gloriosos, mas objetificados por trabalhadores que, em sua vida cotidiana, sonham em possuí-los: o que provavelmente nunca acontecerá. A porta do armário é aberta por um trabalhador anônimo e a cena é encerrada. A montagem desses dois planos efetua um distanciamento em relação às palavras de François, um homem que, em sua casa, faz juras de amor à esposa e, no trabalho, compartilha a paixão pelas imagens de mulheres impossíveis. Essa inclinação, que nesse momento está apenas sugerida, se concretizará em sua paixão por Émilie.

Podemos dizer que este filme combina alguns procedimentos recorrentes da Nouvelle Vague francesa com uma perspectiva crítico-feminista da sociedade. A profusão de planos-sequência, a movimentação da câmera, os ângulos abertos, as filmagens em locações, a utilização de falsos raccords e a manipulação das cores como na contramão de um naturalismo raso são articulados para descortinar as entranhas da felicidade conjugal heterossexual – pequeno mundo caricatural criado pela autora para, ao final da projeção, ser implodido pela luxúria do homem. Esses recursos são mobilizados para além da narração de uma história sobre a infidelidade masculina, instaurando uma profunda reflexão sobre o mundo corroído (apesar da impressão radiosa de felicidade) pela dominação dos homens, universo em que a vontade masculina atropela a vida das mulheres.

Durante quase toda a projeção somos conduzidos pelos caminhos de uma vida conjugal perfeita – de uma perfeição manifestamente exagerada, como mencionei. A predileção de Agnès Varda por personagens errantes ou outsiders dá espaço para a figuração de um casal perfeitamente estabelecido entre o trabalho e a vida familiar. A trilha sonora parece orquestrar harmoniosamente essa vida alegre no campo. Uma coleção ou inventário de gestos é mostrado na mise en scène de forma fragmentária, descrevendo a vida cotidiana em andamento em planos rápidos em que, para citar dois exemplos, a mulher trabalha em casa em sua máquina de costura e o homem, diante de outra máquina, realiza seu trabalho de carpinteiro. Tudo vai bem. François se apaixona subitamente por Émilie e isso parece não abalar a ordem das coisas – e nem a plasticidade do paraíso.

O romance de François e Émilie conduz o homem a um estado excessivo de regozijo. Observando o estranho êxtase do marido, Thérèse o questiona sobre os motivos dessa afetação exagerada. Num gesto cínico, François repete o que havia dito em cena anterior a Émilie: “felicidade acumulada”. Em sua perspectiva, as duas mulheres se completavam, não para benefício mútuo, mas para servir ao seu prazer. No desenrolar da conversa, François confessa seu amor extra-conjugal e, para o espanto dos espectadores de inclinações mais puritanas, sua esposa termina por aceitar o fato consumado, não sem hesitar. Nada parece abalar a vida paradisíaca desta família.

O ato final da obra produz o efeito que anunciei no início deste ensaio. Varda inscreve uma ruptura trágica na narrativa, nos mostrando as entranhas do mundo paradisíaco tecido no filme – a tragédia se infiltra no paraíso. A confissão de François é realizada num encontro sob a relva, tal qual uma cena impressionista. O casal adormece depois desta conversa aparentemente harmônica. A única pista para o conflito é a hesitação de Thérèse em sua resposta. O marido acorda e percebe que sua mulher desapareceu. Ele sai em sua busca com os filhos nos braços. Nessa perambulação pelo Éden, encontra sua esposa morta. Causa da morte: afogamento. Seria suicídio? Varda prefere deixar a motivação em suspenso, apesar de oferecer pistas para que tiremos nossas conclusões.

Não importa a razão da morte de Thérèse. A brutalidade que anunciei no início do texto se concretiza, como efeito, no final da obra. Depois do enterro de sua esposa, François procura Émilie para a convidar a tomar o lugar de Thérèse. Afinal, no universo construído por Varda, um homem precisa de uma mulher, pois não pode criar as crianças sozinho. Para pontuar o tempo passando de maneira harmoniosa, Varda coloca em cena novamente aquela seriação do cotidiano que mencionei antes, mostrados em planos fugidios, formando uma constelação de gestos triviais da vida do novo casal. A mulher busca as crianças na escola. O casal se beija na cama. Uma mão posiciona os travesseiros. A mulher prepara as crianças para dormir. O despertador é ajustado. A roupa dos infantes é passada a ferro. O homem se barbeia com um sorriso no rosto e depois o vemos trabalhar na carpintaria. Enfim, tomamos conhecimento de um cotidiano tão harmonioso quanto a vida entre François e Thérèse. Os vivos estão felizes.

A cena final é estarrecedora. Vemos a nova família chegar a partir de um travelling para a direita. Eles estão num carro azul, atravessando o bosque em pleno outono. A paisagem é amarelada, as folhas cobrem o chão. François estaciona o carro e eles descem. O casal veste suéteres idênticos em cor mostarda, enquanto as crianças estão de vermelho, como se suas vestimentas se misturassem à paisagem. O cromatismo de seus corpos vibram com a coloração do bosque outonal como se eles estivessem em completa harmonia com o ambiente. A câmera continua em seu movimento em plano médio, nos mostrando a família feliz em sua coreografia dentro do paraíso. Eles estão sorrindo. François toca numa árvore para depois encontrar Émilie. Todos dão as mãos e seguem em caminhada para o fundo do quadro. Ironicamente, a felicidade prevalecerá. A história que será contada aos filhos é uma narrativa de harmonia, na qual os conflitos são varridos para debaixo do tapete. Os caminhos da felicidade são tortuosos mas, ao fim e ao cabo, todos – ou melhor, quase todos – ficarão bem. Este plano final tem a força crítica de desestabilizar o espectador e nos reconduzir a um cotidiano de violências mudas. A cena final concretiza a crítica irônica da obra, colaborando para a construção de uma atenção às relações violentas de um mundo em que os homens impõem seus desejos às mulheres, muitas vezes em detrimento de suas vontades e ideias.

As Duas Faces da Felicidade é um drama irônico sobre o relacionamento num mundo caracterizado pelo machismo. Esta é uma obra que apresenta um realismo deformado pelo uso reflexivo de recursos estéticos, afirmando-se como um dos frutos maduros do cinema moderno. Varda tece com sutileza uma crítica ao mundo masculino em que vivemos, dominado por homens cínicos e pela aparência de uma felicidade que apresenta a imagem da família heterossexual como seu emblema. Essa crítica é tecida pelas mãos hábeis de uma cineasta que sabe pensar através dos detalhes formais de seus filmes. Ao final da projeção, somos reconduzidos brutalmente ao mundo apodrecido que, 50 anos depois do lançamento desta obra-prima, continua a se recriar – apesar das transformações levadas adiante por mulheres como Agnès Varda. Thérèse morreu, mas a vida continua. Tudo vai bem no mundo dos homens.


___________________________________

[1] Os dois trechos de entrevistas apresentados aqui foram coletados do catálogo da retrospectiva “Agnès Varda: o movimento perpétuo do olhar”, de 2006.

[2] Gostaria de agradecer a Nayla Guerra por sugerir a recorrência deste termo na caracterização da estética de Agnès Varda – e por ter me emprestado uma importante referência para a redação deste texto.