As solidões de Os renegados, um filme que “erra”
Cícero Pedro Leão
Os Renegados (1985), de Agnès Varda, é sobre a jovem errante Mona. No filme, a câmera e a narrativa também são errantes. Não é uma errância descontrolada. Pelo contrário, a obra denota um extremo controle, com sofisticados movimentos e composições. Mas a sua narrativa é permeada por lacunas, como se seguisse os instintos fragmentados de uma rememoração, e não o teor absoluto de uma dramaticidade convencional, que guia o espectador por etapas lógicas e lineares.
Devido a essa errância dramatúrgica e estilística, o filme não apresenta nenhum julgamento claro sobre o modo de vida da personagem principal. Andarilha, Mona não é um símbolo romântico, mas nem a protagonista de uma tragédia decadente. O que ela é ou pode ser, cabe ao espectador decidir.
Trago a questão da memória pois ela é a mais importante para esta obra de Varda, já que temos acesso não somente às andanças de Mona, mas aos relatos, breves ou longos, das pessoas que passaram pelo seu caminho, com todas as digressões, invenções e enternecimentos que podem existir no ato de rememorar.
Consequentemente, Os Renegados é um road movie inconvencional. Seu foco não recai sobre o processo de descobertas de um ser errante a partir de sua vida na estrada, já que o filme não é uma janela aberta para o mundo da protagonista –inicialmente, a conhecemos a partir da lembrança de terceiros e não de maneira linear. Mas vale notar que a ordem entre lembrança e relato nunca é equilibrada: às vezes, o relato aparece primeiro e a lembrança depois; às vezes, ocorre o inverso.
Dito isso, gradativamente, nos é indicado que nem toda a representação em cena parte de relatos ou da lembrança de outros – primeiro porque há momentos que contrastam com relatos (como o caminhoneiro que fala mal da personagem, mas não comenta que ele insinuou favores sexuais); segundo porque alguns relatos são somente breves reflexões, sem um acontecimento específico. Além disso, cada vez mais os acontecimentos em tela se tornam independentes de qualquer relato, existindo por si.
Destas relações, de distância e proximidade, surge um contraste com um comentário narrado logo no começo do filme, na única vez em que ouvimos uma voz narradora:
“Ela tinha morrido de morte natural sem deixar rastro. Imagino se quem a conheceu criança ainda pensa nela. Mas as pessoas que ela tinha conhecido recentemente se lembravam dela. Essas testemunhas ajudaram-me a contar as últimas semanas de seu último inverno. Ela deixou sua marca sobre eles. Eles falavam dela, não sabendo que ela tinha morrido. Não quis dizer a eles. Nem que o nome dela era Mona Bergeron. Eu mesma sei pouco sobre ela mas parece-me que ela veio do mar”
De certa forma, o restante do filme problematiza essa fala, já que alguns personagens sabiam que ela tinha morrido e parte considerável do filme não parte de um relato. Isto ocasiona mais uma quebra de expectativa: inicialmente, parece que o filme será uma espécie de Cidadão Kane da estrada, mas, cada vez mais, a fragmentação polida da narrativa de Welles perde espaço para uma fragmentação mais brutal. O objetivo aqui não é mais demonstrar as diferentes facetas de um indivíduo a partir das lembranças (“enviesadas” ou “seletivas”) de terceiros, mas problematizar a própria questão do deixar marcas, já que as marcas lembradas pelos terceiros de Mona parecem incompletas.
Todavia, como já comentei, não acredito que o cerne de Os Renegados seja o contraste entre lembrança/relato e realidade. É uma questão importante, porém o filme não aprofunda esse paradoxo, principalmente devido à vida própria de alguns relatos. Ao não seguir fórmulas de narrativas sobre lembranças na estrada, o que o filme de Varda lança mão? Um caminho: David Bordwell comenta que, ao não resolver a mistérios importantes da trama, o filme de Varda é marcado por uma incompletude que leva o espectador a pensar como ele iria reagir a uma personalidade como a da protagonista. Nós não somos incentivados a tentar solucionar, por exemplo, o que causou a sua morte. O principal é o impacto que Mona pode causar.
Um complemento a esse comentário: os personagens em volta de Mona não comentam somente sobre os encontros com a andarilha. Eles têm uma vida além da reação, e acompanhamos parte dela. Eles falam sobre relacionamentos, sobre a profissão e, às vezes, sobre Mona, de maneira negativa ou positiva. Assim, além de demonstrar as nossas reações a alguém como Mona, o filme também demonstra como essas reações estão intrinsecamente ligadas às caóticas reflexões de cada indivíduo, que, no caso do filme de Varda, variam bastante, pois a protagonista encontrou desde acadêmicos, trabalhadores do campo, operários até outros vagabundos.
A relação destes com a câmera varia bastante. Alguns personagens conversam com policiais (como se o relato fosse parte de uma investigação), outros estão em um ambiente doméstico, não reconhecendo a presença da câmera. Há também relatos de pessoas andarilhas, como Mona, que, quase por acaso, se lembram da moça em frente à câmera, para logo em seguida voltarem à vida normal.
Todas essas reflexões são sobre um ser que o espectador sabe que morreu. Tal contraste entre a realidade final de Mona e os diferentes sentimentos transmitidos pelos relatos (alguns mais banais, outros mais intensos) é potente. A força da obra reside também em tal contraste, já que ela não trata da solução racional de algum mistério ou de explicação biográfica da motivação de Mona para o seu estilo de vida.
A potência entre o contraste dos personagens cria uma sensação de solidão, que é presente em Mona e nos indivíduos à sua volta, seja quando alguns se afundam nos próprios afazeres, não dando importância para a existência intensa da protagonista, ou quando se desestabilizam diante de vida tão pouco convencional.
Yolanda é a personagem da sociedade em que essa condição solitária é mais cristalina. Namorada de um homem delinquente, várias vezes ela reclama de sua vida conjugal em meio às lembranças de Mona. “Estar sozinha é duro. Mas ser um casal solitário não é melhor. Me sinto sozinha nos braços de Paolo.” Ela é a personagem que mais olha diretamente para a câmera enquanto reflete, ainda que esteja na presença de outros personagens. Precisando mais da companhia de amigos, Yolanda é completamente diferente de Mona, mas ambas não deixam de ser solitárias, ainda que Yolanda sinta uma solidão diferente, uma solidão populada e social, que, de tão intensa, parece lhe fornecer a capacidade de encarar a lente, mesmo quando os outros personagens em cena não reconhecem o fazer fílmico.
Yolanda ainda se destaca por ser uma das únicas personagens que reconhece a sua solidão em meio à sociedade. Mona procura uma solidão distante de qualquer convenção doméstica e social, em busca de uma liberdade própria. Partindo do contraste entre essas diferentes condições, o filme lança várias questões: será a solidão uma condição inevitável? A liberdade total existe? Quais as consequências da busca por essa liberdade? A solidão pode matar alguém? Se a solidão total é obrigatória para essa liberdade total, vale a pena o sacrifício?
Os Renegados não oferece uma resposta clara para esses questionamentos. Ainda que um pastor afirme que amigos estradeiros de Mona estão mortos “porque a solidão acabou com eles”, o filme de Varda não segue esse julgamento. Primeiramente, como já comentado, a obra não representa a solidão como uma via de mão única: ela pode existir tanto na estrada quanto em sociedade. E essas solidões não existem somente com a ausência de terceiros; paradoxalmente, elas são formadas pelo contato, agressivo ou não, com outros corpos: Yolanda se sente solitária com seu próprio namorado, Mona conhece várias pessoas e chega a ter relações sexuais com algumas.
O aspecto dialógico dessas solidões diz muito sobre uma condição de gênero, já que Varda nunca apaga as dificuldades e particularidades da suposta vida livre e independente da mulher Mona. As relações com os homens parecem comuns para a protagonista, seja com aqueles que ela gosta e conhece há alguns dias, ou com um chefe sem personalidade, que a abusará no meio da natureza. No entanto, nenhuma dessas relações totaliza Mona, pois ela se move por uma força própria, e nunca é definida totalmente a partir da relação com um ou outro personagem.
O fim de sua vida é trágico e solitário. Ela passa por situações tensas, como um abuso, a fome e o frio intenso. Mas, ainda assim, a trajetória da personagem não é uma jornada decadente. O foco de Os Renegados, de certa forma, não é a deterioração de Mona. Ainda que ela passe por vários problemas, a sua personalidade não dá espaço para uma vulnerabilidade absurda. Nós a assistimos tendo dores, mas não a vemos sofrer. As angústias acometem mais a algumas das pessoas que ela encontra no caminho, como a pesquisadora que se arrepende de a ter abandonado.
Mona não se arrepende. Às vezes, ela joga fora qualquer possibilidade de estabilidade, seja quando um pastor lhe oferece um pequeno pedaço de terra ou quando uma mulher lhe oferece abrigo e carinho. Quando o acolhimento aumenta, Mona se torna mais ríspida. E quando ela dá sinais de que pode ceder, é abandonada.
Essa estranha espécie de autonomia não significa, necessariamente, felicidade (poucas vezes vemos Mona sorrindo). Tal condição gera mais uma energia solitária que, em nenhum momento, é julgada pela narrativa de Varda. O final da personagem é estarrecedor, porém, mais sufocante é o vazio em volta dela.
Não é necessariamente um vazio dela, já que Mona é cheia de si. Trata-se de um vazio exterior, como se a sua existência não tivesse imprimido um relato sólido para a posteridade. Ao final do filme, sabemos tão pouco sobre ela. Quando escreve na poeira do espelho de uma casa abandonada, um amigo chega a comentar: “Não deixe marcas”. Mas isso é algo ruim?
A “errância narrativa” do filme, ao mostrar fragmentos de outras pessoas, mesmo quando Mona não está por perto, aumenta a transparência e fragilidade das marcas da protagonista no mundo onde caminhou. Estilisticamente, Os Renegados acompanha esse desencanto e quebra de expectativa. Um movimento recorrente no filme é o travelling lateral, bastante usado para acompanhar os passos de alguém, se tornando um elemento comum em road movies. No entanto, os travellings do filme de Varda, quando acompanham Mona, geralmente não identificam onde ela estava e nem para onde foi; são fragmentos de uma caminhada sem rumo para o espectador.
Também há momentos em que a câmera não acompanha a movimentação do corpo, apenas sua fixidez. Por vezes, ainda o ultrapassa. Nessas cenas, ela vai de um lugar a outro, até parar em alguma informação nova relevante (como caixas caídas ou uma parede nova). É como se a câmera acompanhasse a errância da narrativa e da personagem, representando graus de independência de Mora, mas somente com o objetivo de errar mais ainda. A suposta falta de sentido de um movimento de câmera, de um relato, de uma caminhada, parece reforçar a intensidade da personagem, assim como as perdas de suas marcas.
Mas retorno a uma questão: será que não deixar marcas é realmente um problema? Mona não parece se importar com esse questionamento. Tal indiferença não é colocado como algo superior, principalmente porque Mona não discursa muito sobre a sua condição. Ela rebate quando é questionada (“champanhe na estrada é melhor”, “comi por uns dez anos, estou farta”). Mas, se distanciando de um herói à la Thoreau ou Kerouac, ela não comenta muito sobre a sua situação, as suas angústias ou tristezas. Ela, “simplesmente”, vive.
Julgar se essa vida é superior ou inferior às outras não é uma questão importante. Tornar Mona um modelo de intransigência é uma leitura romantizada. Ela é paralela ao verbo de Rimbaud, não ao Rimbaud idolatrado, mas ao poeta sem passado e sem o futuro que escreveu: “Nos caminhos, em noites de inverno, sem pousada, sem roupa, sem comida, uma voz me estreitava o coração gelado: ‘Fraqueza ou força: aqui estás, é a força. Não sabe aonde vais nem por que vais, mas entra em toda parte, aberto a tudo. Não te matarão mais do que se já fosses cadáver.’”
A liberdade proveniente desse tipo de poesia não está concentrada em nenhum espectro de fácil definição. É o que presenciamos em Os Renegados de Varda.