Varda por Agnès (2019)

Os tempos de Varda

Débora Mano

Escrever sobre Agnès Varda vai na contramão do trabalho que ela realizou toda a sua vida. Assistindo às suas obras e, principalmente, ao seu último filme, Varda por Agnès (2019), a impressão que ela nos passa é a de ser uma mulher de muitas certezas. Varda era absolutamente convicta sobre o que iria criar e a forma como iria criar, o que torna a correlação entre sua vida e suas obras a assinatura sem a qual, acredito, ela não conseguiria encerrar a sua carreira. Por isso, é um desafio falar sobre essa mulher que, tão genialmente – com todas as ressalvas ao uso dessa palavra – escolheu compartilhar com o mundo as impressões de quem melhor poderia definir Varda: ela mesma.

Inspiração, criação e compartilhamento. A obra de Agnès Varda pode ser desenhada a partir dessas três palavras que, segundo a própria cineasta, a motivaram a fazer filmes por tantos anos. Ela nos conta isso sentada em sua cadeira de diretora, no meio do palco de uma grande ópera transformada em sala de cinema, logo nos primeiros minutos de Varda por Agnès. Com a firmeza característica de sua maneira de se expressar, ela nos oferece a possibilidade de acompanhá-la durante toda a sua trajetória enquanto cineasta, fotógrafa e artista visual, à medida que retorna a diversos trabalhos e, gentilmente, compartilha com diferentes plateias – e espectadores – seus modos de pensar e realizar.

Todo o filme se estrutura a partir de relatos de Varda para diferentes audiências, intercalados com cenas de outros filmes seus, fotografias, instalações artísticas e entrevistas feitas em anos anteriores. Apesar disso, não é um filme que se atém à cronologia exata dos acontecimentos. O tempo, para ela, parece ser objeto de extremo cuidado e sutileza, sendo trabalhado com cautela. Isso fica claro, por exemplo, no gesto minucioso de usar os mesmos tons e as mesmas roupas nos relatos concedidos em diferentes ocasiões, mas que contribuem para a continuidade do filme.

Parte do encantamento que Varda provoca em quem entra em contato com seu trabalho se dá pelo fato de ela ser, antes de criadora, espectadora. Com total consciência do espaço que ocupa e do mundo à sua volta, ela redefine o significado de espectadora. Para além de apenas observar pessoas e situações, a sua espectatorialidade passa também pelo processo de registrar e de compartilhar. Nenhuma obra é feita de forma isolada, Varda sempre esteve atenta ao outro, achando em situações aparentemente banais algo digno de ser contado. Citando a própria cineasta, “Nada é banal, se você filmar pessoas com empatia e amor, se você as achar extraordinárias, como eu fiz”.

Partindo das três palavras motivadoras – inspiração, criação e compartilhamento –, o último filme de Varda é um passeio pela mente extraordinária da cineasta. Acredito que fazer esse passeio a partir da relação que ela estabelece com o tempo pode ser algo particularmente fascinante. Um bom exemplo é Tio Yanco (1967), curta-metragem que a diretora realizou durante um dia e meio, entre a sua inspiração e as filmagens, sobre um tio recém descoberto, o que a própria Varda trata como um milagre. Ela sabia imediatamente como filmá-lo e, então, levou seu tempo editando.

Em determinado momento de Varda por Agnès, inclusive, a diretora nos fala sobre a cine-escrita, que “abrange todas as escolhas feitas durante a realização de um filme”, inclusive as escolhas relacionadas à temporalidade. Varda estava interessada em construir sua própria linguagem no cinema e, desde a concepção de seus filmes, a originalidade da cineasta se mostrava decisiva. Embora Tio Yanco possa ter se iniciado de maneira surpreendente, alguns de seus filmes tiveram um planejamento prévio minucioso. 

Aqui, iniciamos o passeio considerando o tempo enquanto medida objetiva de dias, horas, minutos, segundos. É o caso de três grandes filmes da diretora: Cléo de 5 às 7 (1962), Daguerreótipos (1976) e Os Renegados (1985), cada um à sua maneira. Contando detalhes de cada obra, Varda deixa clara a precisão com que conduz seu trabalho. Cléo de 5 às 7 foi elaborado a partir da necessidade de se fazer um filme com baixo orçamento, o que deu origem à ideia de construir a narrativa de forma a acompanhar a personagem principal durante um curto período de tempo. O filme, de uma hora e meia, é estruturado de maneira a ter o seu ápice na exata metade dele. No entanto, além do trabalho desenvolvido com a duração do filme, Varda também teve o desafio de ilustrar o tempo subjetivo, a partir das aflições de Cléo, comuns à época em que o filme se passa.

Daguerreótipos é um registro cotidiano dos habitantes e comerciantes da Rua Daguerre, rua de Paris em que ela viveu durante alguns anos. A câmera, no documentário, se coloca como uma observadora silenciosa: “Nada acontece, ainda que algo aconteça por dentro. É isso. Vídeos e comerciais se movem muito rápido. Mas quando você está na duração, você está realmente dentro”. Já Os Renegados é dividido de maneira precisa entre 13 travellings e períodos de tempo de duração iguais entre cada um. “Eu gostei de montar um enigma do qual apenas eu conhecia o segredo”, conta-nos Varda. No entanto, também nesses filmes podemos pensar o tempo enquanto registro histórico de uma época.

Se Cléo de 5 às 7 foi escrito a partir dos medos compartilhados na década de 1960, como o câncer, e Daguerreótipos a partir do cotidiano vivenciado pela cineasta, Os Renegados surgiu da observação de um movimento crescente entre jovens que viviam de maneira nômade, “sem teto nem lei”. É esse interesse dedicado ao que acontecia à sua volta que revela grande parte do cinema de Varda, algo que fica mais aparente em seus numerosos documentários, mas que também se faz presente nas ficções, sempre tocadas por elementos reais.

Black Panthers (1968), Uma Canta, a Outra Não (1977), Os Catadores e Eu (2000), Amor de Leões (1969), Mur Murs (1980), são exemplos, dentre tantos outros, de filmes que surgem por causa – mas não apesar – dos contextos nos quais Varda se via envolvida, desde o movimento dos Panteras Negras nos anos 1970 até o movimento feminista, já muito forte nos Estados Unidos no final dos anos 1960. Ilustrando o desdobramento da profissão de respigadores para os catadores do início dos anos 2000, passando pelo movimento hippie na Hollywood dos anos 1970, até chegar ao filme da década de 1980 que explora os murais da cidade de Los Angeles, ilustrar o tempo a partir da perspectiva coletiva e fazer disso um registro histórico está entre os maiores feitos da cineasta.

Retornando à ideia de compartilhamento, tão importante para Varda, não podemos ignorar a pessoalidade com que ela constrói sua arte. Ela sabia que olhar para o outro era também uma forma de olhar para si mesma. A Ópera Mouffe (1958) e Documenteur (1981) são exemplos de filmes com aspectos sutis, porém muito presentes, de situações pessoais vividas pela cineasta – o primeiro, a gravidez, e o segundo, o divórcio. Aqui, vemos o tempo para Varda como símbolo de situações marcantes na história da diretora. E talvez seja o filme Jacquot de Nantes (1991), iniciado por uma casualidade imposta pela vida, o principal exemplo disso. O filme, sobre a trajetória de Jacques Demy, surgiu por causa do estado de saúde fragilizado do diretor e marido de Varda. Respeitando a biografia e o trabalho dele, ela acompanha o tempo com sua câmera enquanto constrói uma narrativa que reflete a pessoa que Jacques Demy foi em vida.

Não se limitando a falar apenas dos filmes que fez, Agnès Varda congela a imagem e retorna aos anos 1950 e às câmeras fotográficas. Relembrando a profissão que exerceu em sua primeira vida, como ela mesma nos conta, a artista passa rapidamente pelos registros de diferentes personalidades, ensaios feitos com amigos e fotografias dela mesma. Mas o que mais sobressai nessa passagem é a curiosidade que Varda tinha em relação a novos processos, equipamentos e criações e a capacidade de ressignificar sua própria arte.

Aqui, falo do tempo enquanto reconstrução e reciclagem. O trabalho que Varda fez enquanto artista visual, já mais velha, atravessa as suas criações como fotógrafa e cineasta, seja no jogo entre imagens em movimento e imagens estáticas ou nas instalações artísticas que dialogam com filmes seus, como “Patatutopia”. É o caso também das cabanas de cinema que ela construiu a partir de rolos de filmes, como a instalação que ambientava o seu longa As Duas Faces da Felicidade (1965), ou a obra Quelques Veuves de Noirmoutier (2006), criada para a galeria de Paris, que reúne confidências de viúvas sobre a ausência e a solidão, sentimentos compartilhados pela artista após a perda de Jacques Demy.

Por fim, percebemos o tempo como marca do envelhecimento. Jane B. por Agnès V. (1988) surgiu do encontro da diretora com sua amiga, a atriz Jane Birkin, que achava terrível a perspectiva de estar com quase 40 anos. A decisão de fazer o retrato da atriz se iniciou a partir daí. “Eu sugeri isso, animada, a uma mulher vivaz, o oposto desse tributo a atrizes mortas, que compilam trechos de seus filmes e entrevistas”. O documentário, portanto, é uma encenação repleta de aspectos reais e diálogos com diferentes expressões artísticas.

Quando fez As Praias de Agnès (2008), aos 80 anos de idade, o sentimento de Varda era de urgência pela necessidade de completar algo. Assim ela desenvolveu seu autorretrato, uma história de sua vida a partir da relação que cultivava com as praias. “Se abríssemos pessoas, encontraríamos paisagens. Se nos abríssemos, encontraríamos praias”.

Dona de uma sensibilidade única, Agnès Varda criou um cinema próprio, no qual coloca em igual importância os outros e a si mesma. A escolha de seus autorretratos, As Praias de Agnès e Varda por Agnès, são uma reivindicação da potência existente em contar a sua própria história e resgatar as memórias anexadas a ela. Se, por um lado, um filme não é o desejo de parar o tempo, mas acompanhá-lo, por outro, ela decidiu que a melhor maneira de ser acompanhada era por meio de suas próprias percepções.

Não podemos dizer que Varda por Agnès é o filme de despedida da diretora, mas sim um presente da cineasta para todas que acompanham e se sentem tocadas pelo trabalho dela. Em meio a uma tempestade de areia, ao lado de seu amigo e companheiro de estrada e profissão, o fotógrafo JR, com o qual fez o filme Visage, Villages (2018), Varda decide terminar a conversa conosco, desaparecendo na névoa, deixando-nos com a possibilidade de poder sempre retornar ao universo da artista, que tão extraordinariamente soube ilustrar o mundo em que vivia.