
Rebeca Francoff
Depois de dois anos seguindo o protocolo de isolamento social, o Fest Aruanda retomou suas atividades de forma híbrida. As sessões presenciais foram atravessadas por fortes emoções numa sala de cinema do Manaíra Shopping, em João Pessoa/PB. Foi possível ouvir comentários acalorados da plateia logo após as sessões, o que mostra o impacto sensível que só uma projeção em espaço físico pode proporcionar. Diversos filmes também foram exibidos na plataforma Aruanda Play, enquanto os debates eram transmitidos em tempo real no canal do festival no Youtube.
Se em algum momento durante a pandemia chegamos a acreditar que o cinema seria extinto por conta do streaming, ouso dizer que isso está longe de acontecer. A sessão de encerramento com o documentário biográfico Ney – À Flor da Pele (2020), de Felipe Nepomuceno, causou o maior alvoroço, talvez mobilizado pela presença de seu biografado, o cantor Ney Matogrosso. As demais sessões também tiveram ocupação considerável, provando que o povo ainda prefere a vivência coletiva da sala escura, apesar dos vários atrativos da sala de estar.
Assisti à maioria dos curtas e longas apresentados pelo festival. No entanto, neste balanço proponho uma delimitação em torno de seis obras, todas de longa-metragem, exibidas na mostra Sob o Céu Nordestino e na competitiva Nacional. São elas: Miami-Cuba (2021), de Caroline Oliveira; Fendas (2019), de Carlos Segundo; A Praia do Fim do Mundo (2021), de Petrus Cariry; Capitu e o Capítulo (2021), de Júlio Bressane; A Felicidade das Coisas (2021), de Thais Fujinaga; e Salamandra (2021), de Alex Carvalho. Escolhi esse caminho motivada por Miami-Cuba, que teve sua estreia no Fest Aruanda e se constrói a partir de um método com o qual tenho familiaridade: a cartografia.
Desde os minutos iniciais, o filme estabelece conexões com o livro “Cartografia Sentimental”, de Suely Rolnik, uma vez que desenha um mapa de afetos entre pessoas e espaços. Não me lembro de ter visto outro filme que fale sobre a cartografia de forma tão direta. É evidente que a cineasta Agnès Varda realizou obras que se assemelham a essa vertente, tais como Os Catadores e Eu (2000) e Visages, Villages (2017), mas nenhuma delas coloca o método no núcleo de suas preocupações como ocorre em Miami-Cuba. O longa de Caroline Oliveira apresenta um olhar sobre o Centro Histórico de João Pessoa e as figuras que o habitam e por lá transitam. É também estabelecido um contraponto à parte mais turística da cidade, tomada por arranha-céus e pela exploração comercial à beira-mar. Por conta disso, tal obra pode ser compreendida como um marco importante para discutir a cartografia no cinema brasileiro contemporâneo.

Resolvi usar o método cartográfico traçando um ponto de encontro entre os seis longas mencionados. Algo que me chamou atenção nessas obras foi a presença da água como elemento simbólico que perpassa suas narrativas. Assim como no livro de Rolnik, este texto opta pela deserção de caminhos e parte em busca de sua própria jornada. Mergulharemos nas águas de cada obra, estabelecendo um fio condutor entre elas.
Na astrologia, os signos de água costumam representar o sensível, o subconsciente, a intuição, a fantasia e o feminino, ou seja, as emoções entre o transbordamento e a contenção. Nas águas moram o mistério e o fluxo contínuo da vida. É nesse lugar que os filmes aqui escolhidos se encontram e se chocam.
Em Miami-Cuba, sabemos que a diretora Carolina Oliveira é natural de João Pessoa, porém a cidade que apresenta parece desconhecida por ela. A realizadora caminha desorientada pelas ruas da capital paraibana, permitindo desmanchar caminhos habituais a cada encontro. O filme se abre para atravessamentos de pessoas e espaços que pulsam, fervem e lutam com autenticidade. Nesse sentido, prefere-se o mapeamento das cicatrizes expostas cidade afora, onde as vivências são vestígios de histórias.
Seguimos a cineasta e seus personagens, sem saber muito bem aonde estamos indo. Completamente aberto à partilha, o trajeto fílmico desfaz seus rumos com naturalidade. Apesar de discutir a memória com certo prazer, não o considero nostálgico, e sim uma forma de diálogo com seu próprio tempo político.
O filme é acolhido no Centro Histórico da cidade, próximo ao rio Sanhauá. Em Miami-Cuba, a água acolhe mas também separa. Ela se coloca como um divisor de mundos, onde o mar e o rio representam separações de classes sociais, políticas e econômicas. O lugar, ironicamente, está à margem e luta por visibilidade, assim como está afastado dos grandes comércios turísticos que se encontram próximos ao mar. Daí surge a analogia proposta pelo título, na qual Cuba é o Centro, com arquiteturas e pessoas que preservam a história local, e Miami são os bairros repletos de empreendimentos ambiciosos e padronizados próximos à orla.

Os atores sociais apresentam muita desenvoltura, sem qualquer estranhamento com a presença dos dispositivos cinematográficos. As ações são desenvolvidas com bastante intimidade, de modo que o filme se torna um convite para conhecer seus espaços de luta e seus lares. A diretora aceita compartilhar instantes triviais, trazendo generosidade às interações, com especial destaque para a revelação do universo particular de cada personagem e sua relação com o Centro Histórico de João Pessoa.
Saímos das águas do rio Sanhauá para os mares de Natal/RN. Em Fendas, a protagonista é Catarina (Roberta Rangel), uma pesquisadora de física quântica que mora na capital potiguar e tem medo do oceano. Contudo, é no mar que ela descobre soluções para sua tese, estabelecendo um encontro consigo mesma e um refúgio para sua sensação de não pertencimento.
Sua pesquisa desenvolve um espaço-tempo único, que aparece através de cálculos que aproximam som e imagem. Entre gritos ao vento e observações silenciosas, ela se lança numa maré de inquietações. A imagem e o som descobertos são símbolos de passagem e transporte para outro mundo, assim como o próprio gesto de assistir ao filme permite que espectadores criem as mais diversas interpretações de acordo com suas vivências.

É tempo de ressignificar uma condição singular, através da qual uma troca de e-mails acontece como resposta aos gritos que Catarina direciona ao oceano. A partir desse momento, a narrativa rompe os limites geográficos, aproximando Brasil e África. As imagens feitas pela pesquisadora se tornam experiências sensoriais que abrem portas para uma expressão experimental e uma relação de afeto sem fronteiras.
Em A Praia do Fim do Mundo, nos transportamos para um universo todo em preto e branco. O longa-metragem narra a vida de duas protagonistas em um cenário de escombros frente ao mar. Mãe (Marcélia Cartaxo) e filha (Fátima Macedo) passam seus dias em uma casa deteriorada pela ação da maresia e pelo avanço das águas.
A crise entre as duas se dá por meio do apego ao espaço. A filha quer ir embora e a mãe quer ficar. Em meio a isso, surge uma gravidez inesperada. A filha passa seus dias arrastando cadeiras de um lado ao outro, como se fossem correntes. Além disso, prefere continuar a gestação sem a presença paterna, tal como foi sua criação. O bebê, que poderia representar a mudança, também pode simbolizar a continuidade dos antigos costumes.

Como diz o ditado: água mole, pedra dura, tanto bate até que fura. Passado, presente e futuro colidem até rachar e abrir espaço para que os mistérios apareçam. É então que criaturas míticas marinhas submergem como um presságio de morte para a vida terrena. Configura-se na obra de Cariry um misticismo não religioso, onde se acentua o assombro da existência e do gesto de criação. A água esculpe a pedra tal qual o realizador lapida o filme. A montagem é criteriosa, respeitando o tempo das ações e a solidez dos espaços. A fotografia, o som e as atuações têm o peso da magnitude de uma onda gigante firme que não quebra.
Em Capitu e o Capítulo, os olhos de Capitu (Mariana Ximenes) são comparados à ressaca do mar. E nos momentos em que as mulheres falam sobre o mar, suas águas são comparadas ao prazer gerado pelo gozo. No longa-metragem, a fantasia de Bentinho (Vladimir Brichta) o faz tolo em seu próprio mundo. As atuações variam entre a elegância e o sarcasmo. A obra acaba mostrando o seu processo de realização, assim como é o ciclo contínuo da vida. O filme termina, mas o cinema permanece.
Entre luz e sombra, Betinho surge e desaparece apegado às lembranças, afogado em si mesmo com sua imaginação turva. O cinema de Bressane é como um belíssimo quadro, não é à toa o aparecimento de importantes pinturas tomando conta do espaço da cena. Com criatividade, o longa escorre pelo tempo em uma estrutura de montagem não-linear e com tensões graduais que ficam marcadas na memória.
Em A Felicidade das Coisas, Paula (Patrícia Saravy) tenta impedir o curso natural da vida. É desafiador compreender a passagem do tempo quando enfrenta as imprevisibilidades dos destinos de seus filhos. Podemos ver que a personagem está a ponto de transbordar sua carga emocional, mas sempre se contém. A piscina que deseja construir é uma forma de controle da água, o que nesse caso também pode significar o desejo de proteger a si mesma e sua família das tormentas que existem fora de casa.

No percurso narrativo do filme, o filho (Messias Gois) atravessa as correntezas de um rio durante a madrugada, desobedecendo as normas da mãe. Subentende-se que depois desse rito de passagem, mudanças subjetivas acontecem no menino. É como dizia Heráclito: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. A preocupação da mãe é que o filho se distancie dela, cresça e se torne um homem semelhante ao pai, motivo de rejeição à passagem do tempo.
É também destacável a autenticidade da filha (Lavinia Castelari). A potência dramatúrgica da criança chama atenção a todo momento. O ciclo entre mulheres, composto pela relação entre avó (Magali Biff), mãe e filha, é outro aspecto ressaltado. É possível perceber que enfrentam uma série de medos no lugar afastado onde estão. Contudo, o receio não significa fragilidade. Em sua forma de montagem e construção narrativa, a obra transita com sensibilidade entre os mundos de cada personagem, respeitando as possibilidades de crescimento de todos.

Já em Salamandra, Catherine (Mariana Foïs) é uma francesa que chega ao Brasil após viver algum trauma não esclarecido. De modo metafórico, o título do filme se associa à personagem, afinal salamandras são anfíbios de pele úmida que se alimentam de animais pequenos. A protagonista passa boa parte do filme à beira-mar, escaldada de suor e encarando o Sol agressivo que incide sobre seu corpo. Além disso, se apaixona pelo jovem brasileiro Gil (Maicon Rodrigues), de origem humilde, cujo corpo é mecanismo de tesão e exploração.
Na mitologia grega, as salamandras eram relacionadas ao fogo. Interessante pensarmos que tal elemento é geralmente colocado em oposição à água. Entretanto, Catherine vive uma condição ambígua entre o calor e a umidade. Assim como é quente sua paixão por Gil, é líquida sua confiança nele.
Bem como em A Felicidade das Coisas, é possível perceber uma mulher de meia idade com seus desafios existenciais e ansiedades disfarçadas de cigarro em cigarro. A protagonista passa grande parte da narrativa sem falar muito, contida em seus gestos. Contudo, a comunicação com o seu parceiro é compreendida através dos beijos, do sexo, das risadas e da dança.
Catherine usa Gil para descarregar sua autodestruição, ultrapassando os limites de uma relação saudável. Os dois se colocam em situações perigosas como forma de exposição de suas angústias e medos. Nesse sentido, o filme é altamente questionável. Toca em assuntos raciais e abusos do corpo negro de maneira descuidada, sem considerar as feridas que atravessam a história do país. Assim, Salamandra escorre entre abordagens temáticas diversas, mas nunca encontra um porto seguro para defender sua visão de mundo.