
Leandro Afonso
O atual reino das imagens
O novo coronavírus mudou a sociedade, o invisível moldou novos hábitos, mas antes dele veio a pandemia das fake news, que não só segue sem vacina eficaz como abre portas e problemas sociedade afora. Há um lugar, inclusive, onde as duas pandemias se encontram – uma perigosa região onde alguém precavido suspeita de todo seu entorno. “O domínio incontestado do visível, (…) o império visual”, a que Mondzain (2009) se refere[1] e que habitamos, coexiste com o poder letal de uma minúscula cápsula proteica e com uma desconfiança que, em maior ou menor medida, reverbera no mundo inteiro.
Ao mesmo tempo em que somos afetados de forma potencialmente mortífera pelo invisível, não confiamos no visível. Uma radiografia recente ilustra que os artigos de notícias, temas textuais, print de posts e áudio perdem em predominância, dentro das desinformações[2], para aquelas com a camada visual: mais da metade do universo analisado na pesquisa de Tatiana Dourado (2020) se utiliza da raiz imagética para espalhar notícias falsas[3]. O estudo da pesquisadora baiana se une aos de Allcott e Gentzkow (2017), entre outros tantos, que mostram o termo muito conectado à comunicação política. Entendemos, porém, que as fake news extrapolam questões eleitorais[4], já que povoam nosso cotidiano e embrenham-se no jornalismo e no cinema, no sentido mais lato de audiovisual.
Se elas, as fake news, podem ser classificadas como “matérias que não têm base factual mas são apresentadas como notícias”[5], e se “as pessoas acreditam em notícias falsas quando elas parecem reais”[6], o mesmo vale para o audiovisual. Vídeos também podem luzir como verdadeiros sem serem, podem passar uma informação que não aconteceu. Se vivemos a era das fake news, e se elas se manifestam e proliferam através sobretudo de imagens, por consequência coabitamos o que podemos batizar de reino das imagens falsas. É sobre a concepção material delas (das imagens, não necessariamente falsas) que pretendemos falar: a encenação da imagem realista. Para dialogar com este reino das fakimagens, trocar o abstrato pelo concreto e iniciar as questões que pretendemos aqui incitar, a memória nos conduz a quatro situações muito comentadas recentemente – e a quatro registros audiovisuais usados como provas de acontecimentos.

No caso do assassinato de João Alberto no Carrefour de Porto Alegre em 19 de novembro de 2020, e especialmente no homicídio de George Floyd, o afro-estadunidense estrangulado por um policial branco em 25 de maio de 2020, a repercussão e os efeitos não seriam os mesmos, obviamente, caso não tivéssemos o vídeo[7]. Nos próximos cenários que relatamos, contudo, a imprecisão comparece. Em 6 de setembro de 2018, quando Bolsonaro sofreu um golpe de faca na região do abdômen[8], e no vídeo em que o agora presidente brasileiro toma a hidroxicloroquina, o que é mostrado?
O caso derradeiro é o que nos concerne mais, pela mudança de contexto. O capitão reformado agora ocupa o cargo público mais importante da nação e se utiliza da linguagem audiovisual para comprovar sua saúde, legitimar seu discurso. Nos 46 segundos de um vídeo sem cortes, publicado em redes sociais, uma câmera na mão capta o presidente direcionando suas palavras à lente, que enquadra o comprimido da mão até a boca, e testemunha o presidente afirmar que toma a “terceira dose da hidroxocloroquina” (sic). O monólogo termina com “eu confio na hidroxicloroquina, e você?”[9]. Até aquela véspera do feriado de Independência do Brasil, a maior prova da eficácia do remédio vinha de um vídeo onde o mandatário-mor da nação, na prática, dizia assumir-se como voluntário. Um problema de saúde pública, um desastre sanitário, foi individualizado: passa a ser uma questão não de evidências, mas de convicção – eu confio, e você?
Podemos ter visto essas duas cenas, a da facada e a do remédio, na TV, no iPad ou no celular. Elas são imagens audiovisuais que tiveram suas credibilidades questionadas. Mondzain (2009, p. 35) nos lembra que “o regime da imagem é por natureza passional”[10], mas a crise da imagem contemporânea talvez transcenda o fanatismo e a fé. Nas situações mencionadas acima, não é só por paixão que impera a desconfiança – cada uma à sua maneira, as imagens trazem elementos visíveis imprecisos, o que nos impede de cravar: foi assim.
Maradona, Scorsese e hidroxicloroquina
A mise-en-scène[11] pode ser conceituada como o “ato de levar alguma coisa para a cena, a fim de mostrá-la”, ou como “aquilo que acontece quando há o encontro do cineasta com os atores, lugares e eventos que ele pretende filmar” (OLIVEIRA JR., 2013, p. 25-121). Para ilustrar a ideia de encenação audiovisual, que transcende a tela grande e a ficção, convocamos uma imagem do esporte cuja credibilidade, em contraste às duas anteriores, nos parece indiscutível.
Se as palavras de Bazin (1991, p. 62), “quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem fica proibida”, seguem servindo como um dos melhores conceitos para definir uma encenação realista, um vídeo antigo de Maradona[12], que se tornou popular durante a pandemia e pouco antes de sua morte, é um exemplo preciso do conceito baziniano, uma demonstração mundana de “montagem proibida”.

Em Maradona y el ruido de los palos, primeiro vemos o jogador e seis bolas paradas e paralelas, muito próximas entre si – um leve zoom out mostra El Diez em um gramado com ninguém entre ele e o goleiro. Maradona faz duas bolas ressoarem na trave esquerda, duas na trave direita, com a penúltima novamente tocando o poste à direita do arqueiro. Após este chute, ele inicia a caminhada de costas com as mãos levantadas, enquanto é acompanhado de alguns gritos que ecoam daqueles que estão fora de campo, reconhecendo a virtuosidade do que presenciam. No sexto e último arremate, o que percebemos é um ligeiro zoom in, agora para direcionar a imagem apenas a Maradona, a bola e o goleiro, que vê o derradeiro chute não roçar a trave, mas encobri-lo, em uma cavadinha, e descansar na rede. Encerrado o espetáculo, a imagem mais uma vez se aproxima do protagonista, coberto de aplausos.
É facílimo identificar cada chute como sendo um elemento, um fator da ação que é potencializado porque não se recorre ao corte, à montagem. Respeitam-se o espaço (os seis fatores da ação, as seis bolas) e o tempo (os seis chutes e os 40 segundos do vídeo). Pode-se alegar que não estamos aí diante de uma encenação cinematográfica, mas esclarecemos que vamos considerar essa cena, sim, uma encenação audiovisual, no sentido mais amplo possível. A justificativa é plausível e se baseia, também, no segundo conceito trazido acima, por Oliveira Jr.
Longe de equivaler a experiência social e estética de um filme em casa à de um na tela grande, mas também distante de um puritanismo do cinema que contempla uma fatia muito pequena dos municípios brasileiros[13], aceitemos o audiovisual nos tempos de hoje: a Warner anunciou que vários de seus lançamentos para 2021, incluindo Matrix 4 e O Esquadrão Suicida serão lançados, simultaneamente, nos cinemas e no streaming da HBO Max nos EUA. Antes da pandemia, O Rei Leão (The Lion King, 2019) e O Irlandês (The Irishman, 2019) já estavam sendo vistos no celular[14]. Por estas razões, agregamos ao conceito de encenação a imagem jornalística. Como a cinematográfica, é no celular que ela também é vista; como a cinematográfica, ela é a captura do tempo numa delimitação espacial, potencialmente mutável a cada novo quadro, a cada novo frame. E as duas, a cinematográfica e a jornalística, são justamente o que acontece quando há o encontro entre cineasta-cinegrafista (quem filma), atores (profissionais ou não da ficção), lugares (um campo, o local de um crime) e eventos (um treinamento esportivo, uma manifestação política). Assim, a estes olhos, podemos usar o termo encenação em cada um dos casos acima, de Scorsese a Bolsonaro, da facada à hidroxicloroquina. Não são a mesma coisa, nem têm o mesmo fim, mas apresentam convergências, que abraçamos.
A nova “nova religião”?
Aguilar (2010, p. 31-32) nos lembra que a televisão modifica “nuestras nociones de espacio, tiempo y creencia. Lo real es, de alguna manera, producido por la televisión” – ela, a televisão, “es la productora de creencia y de una nueva religión”. Aguilar analisa O Pântano (Lucrecia Martel, 2001), mas também o instante histórico. É possível dizer que, naquela virada de século, a TV e o seu conteúdo exclusivo ainda tinham essa preponderância no visível não só em Salta ou na Argentina. No Brasil, era sobretudo na Rede Globo que a maior parte da população se guiava: “deu no Jornal Nacional” era a senha que destravava portas por onde chegavam as informações mais confiáveis. Pouco a pouco, porém, o realismo audiovisual, que foi da tela grande para a pequena, da experiência compartilhada para a reservada, que tinha no eletrodoméstico da sala o principal curador de verdades audiovisuais, perdeu força como imaginário coletivo. A “nova religião” não é mais o televisor.

Especialmente nos últimos anos, entre as combinações massivas mais populares estão internet e Facebook, smartphone e WhasApp. Essas combinações têm no YouTube, nascido em 2005, ou o hospedeiro original ou o divulgador de muitos dos vídeos que viralizam para o mundo, agora via, fundamentalmente, celulares[15]. É possível dizer que o retângulo eletrônico mais popular mudou de posição. Ao invés da imagem deitada, em sintonia com os olhos, a imagem ficou em pé, em sintonia com as mãos.
Em 1982 Bonitzer aludia a dois pontos que, a esta altura, ainda nos parecem essenciais. Primeiro, “é a partir da noção de plano, como unidade fílmica de base, que podemos falar de ‘linguagem cinematográfica’. É em função de certos tipos de planos que se pôde falar de uma ‘evolução da linguagem cinematográfica’”[16]. Ou seja, a linguagem a que aqui nos referimos como audiovisual deve sua evolução à análise e à experimentação em cima dos planos, no que eles têm de espacial, de matéria visível. Este visível, ele também citava, metafórica e hiperbolicamente se tornava palpável: a visão óptica (visível) poderia se tornar háptica (tátil), numa referência à imagem que se projetava tão grande, tão maior do que seu tamanho original, que ela parecia, simultaneamente, ser tocada e nos tocar. Corta para quase quarenta anos depois e o império visual passou a ser, mais que na época de Bonitzer, e num sentido diferente do que ele indicava, o império tátil.
A analogia se tornou precisa, a profecia se tornou literal: hoje pegamos na imagem. Escorregamos o dedo na superfície de um aparelho eletrônico e escolhemos o que enxergar. De acordo com essa referência e poder táteis, é plausível dizer que, em alguma medida e para um público considerável, o cinema vem sendo substituído pela TV, que perdeu espaço para o celular, enquanto as mídias impressas vão sendo trocadas pelas redes sociais. Toca-se muito menos nas imagens do papel físico e escolhe-se de forma muito mais pessoal, sobretudo através do tato no celular, o que ver.
Talvez mais do que nunca, vemos apenas o que desejamos ver. Para onde podemos ir, então, se enxergamos somente o que queremos?
Vida e morte na era do realismo de pós-produção
Um dos longas que mais causou alvoroço nos últimos anos foi O Regresso (Alejandro González Iñárritu, 2015). A obra que enfim deu um Oscar a Leonardo di Caprio, e que deu a Iñárritu sua segunda estatueta de melhor diretor, tem uma cena entre o protagonista e um urso que parece real, mas o animal foi uma mescla entre o dublê Glenn Ennis e a computação gráfica[17]. Já O Rei Leão (Jon Favreau, 2019) ganhou uma releitura não como um desenho animado, e sim em live action, que deveria se apresentar, portanto, com atores e atrizes de carne e osso. Um vassalo da literalidade exigiria uma versão do filme com um Simba das savanas, mas isso não ocorreu – o que não impediu o longa de ser vendido como live action. Um live action feito no computador: a vida concebida num software.
Filmar os anos que passam sempre foi relativamente possível com maquiagem, mas transformar idosos em seres no auge da juventude não, até vir um dos filmes que uma multidão mundo afora viu pelo celular. Dirigido por um Scorsese da velha guarda, O Irlandês (2019) foi lançado nos cinemas, mas também na Netflix, e trouxe como traço estético o rejuvenescimento de seus atores, figuras lendárias como Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci. Eles próprios se interpretaram nas suas mocidades através de efeito obtido na pós-produção, quando tiveram retirados alguns de seus aniversários. Se pensamos nesse filme e agregarmos a ele o deepfake[18], ligado a aplicativos capazes de colocar movimentos na boca de uma pessoa que nunca disse aquelas palavras, pousamos em outro lugar de manipulação do real, de adulteração daquilo que foi captado pela câmera.

Não à toa, tem sido cada vez maior a importância de intermediários ativos após a filmagem e antes da recepção de toda e qualquer obra audiovisual na era digital. A capacidade de criar imagens que nunca existiram e parecem fiéis ao que foi captado nos leva a crer, portanto, que a encenação realista é cada vez menos presente (e talvez menos importante) que a imagem realista (feita muito menos no ambiente de filmagem que fora dele).
Como réplica, buscamos dois exemplos recentes que podem ser oposição a esse realismo de pós-produção, cada um a seu modo, sendo que o último deles, desafortunadamente, se relaciona com as duas barbáries que mencionamos anteriormente e ganharam holofotes na pandemia.
Em Olmo e a Gaivota (Petra Costa e Lea Glob, 2015) acompanhamos Olivia Corsini grávida: não uma mulher com a mão na roupa que cobre uma protuberância na barriga – vemos a barriga de uma mulher grávida, a protagonista. A vida materializada no ventre, um realismo indiscutível e infabricável, mas até quando?
Já No Coração do Mundo (Maurílio Martins e Gabriel Martins, 2019) tem um longo plano-sequência na abertura que finaliza com um tiro (fora de quadro). Em outra cena, Grace Passô se dirige à câmera, desvelando um racismo mais óbvio para ela que para seu comparsa. “Você é idiota? Eu sou preta, porra” é dito através da nada nova quebra da quarta parede para, sem filtros, grifar um preconceito basilar da sociedade[19]. A tecnologia é, hoje, capaz de conceber maior combinação de realidade e sinceridade?

A mesma escolha estética de No Coração do Mundo é usada, por exemplo, em Faça a Coisa Certa (Spike Lee, 1989), em que o desfecho de Radio Raheem nos remete, infelizmente, a uma das maiores atrocidades da era Covid-19. George Floyd foi assassinado, mais de 30 anos depois, de forma bem semelhante àquela como morreu o personagem do longa de Spike Lee. A prova da selvageria em Mineápolis só nos chega porque alguém conseguiu filmar os mais de oito minutos de brutalidade do policial Derek Chauvin diante da vítima: sem cortes, na íntegra[20].
A outra barbárie veio na véspera do dia da consciência negra, quando Porto Alegre foi o palco do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, o Beto. Além da câmera de segurança que capta, com suas limitações, o início do conflito, temos depois o registro de uma testemunha dos instantes mais cruéis: a sequência de socos, a imobilização dupla, o empurrão à companheira da vítima – literalmente, os derradeiros suspiros de mais um corpo negro vítima de uma violência injustificada e desproporcional. Em vídeo.
A realeza do realismo – e uma religião ateia?
Encerramos esta grande divagação com inferências ligadas ao nosso foco, à encenação, no sentido mais amplo, da imagem realista. Seja encarada como for, encenada como for, ela não é superior, ela é forma e, sobretudo, procedimento[21]. Refletindo sobre sua manifestação visível, sobre sua representação na contemporaneidade, reiterando o fato de que ela transcende a ficção cinematográfica, e se pensamos que “o mundo das imagens é, portanto, um mundo construído sobre os limites de uma potência, a potência da recepção” (COCCIA, 2017, p. 87), a imagem realista é (re)definida a partir de uma óptica corrente, ligada aos parâmetros dos diferentes responsáveis, em níveis distintos, pela recepção à imagem. Os estudos de recepção, um outro universo com ponto de partida distinto do nosso, podem inclusive muito agregar à discussão que este ensaio, em caráter introdutório-provocador, se propôs a abordar: a concepção da imagem realista no audiovisual contemporâneo.
Tentou-se evitar dois caminhos perigosos: o saudosismo que desconhece a potência do presente em movimento e o deslumbramento que ignora a história que precedeu o modismo. Embora admitamos que a imagem realista e a descrença contemporânea na imagem forjem uma relação que pede mais palavras, esboçamos adiante ilações e sensações.
É simples ver uma imagem em movimento, porém, para acreditar nela, pode ser necessário recorrer ao que vai além: ideologia de autor(a), orçamento da obra, tempo de pós-produção, eventual processo de feitura documental, etc. Hoje, com uma frequência cada vez maior, para crermos numa imagem audiovisual, temos que fazer um inventário da instância criativa que a produziu para, só a partir daí, carimbar um “é verdade e dou fé”. Outra sensação é de que a imagem em movimento realista, que respeita a continuidade espaço-temporal, e que acontece muito menos na pós-produção que no ambiente de encontro com a câmera, pode ficar cada vez mais limitada a três situações: a cenas específicas que queiram frisar a ausência da elipse, a um certo cinema de fluxo[22] e ao jornalismo ao vivo.
Indo a outra dimensão, Comolli nos lembra de uma tendência que começa anos atrás, das durações que abreviam “o tempo real da natureza, das coisas, dos seres vivos”, a base para uma “estética da abreviação”[23]. Uma das situações mais corriqueiras em cursos ou disciplinas de audiovisual é perceber a prioridade que estudantes dão ao ritmo: não à história ou à atuação, ao som ou à imagem, mas ao ritmo, invariavelmente ligado à montagem elíptica (na cabeça dos estudantes, que fique claro). Entretanto, se você quiser filmar um dia inteiro, mesmo em 2021, vai ter que gravar vinte e quatro horas – o ritmo terá que ser interno, dentro da realidade material que se apresenta. Numa época em que os filmes parecem assemelhar-se ao esporte também na disputa pela atenção que se dá na agilidade e no dinamismo, quando as obras precisam fisgar o espectador de celular potencialmente disperso, uma constatação é reconhecer a perda da popularidade da encenação realista. Esta às vezes necessita, sobretudo, de um tempo que a contemporaneidade não dá.
Outra percepção é distinguir o plano-sequência. Sua presença, ou a impressão dela, segue insubstituível, em sua totalidade, pela tecnologia (algum dia será?). Uma vez que o espaço diegético está cotidianamente mais fabricável em pós-produção, podemos inferir que o tempo, no audiovisual, segue a música de Gilberto Gil: “Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei…”[24]. Em uma interlocução com a imagem audiovisual em tempos de Covid-19, o tempo dá indícios de ser, de forma cada vez mais solitária, o último sobrevivente. No reino das fakimagens, o tempo é a realeza do realismo. Dentro do contexto atual, sua potência segue intacta, talvez até maior do que nunca. E a da imagem?

Denunciar a potência das imagens ou negá-la dá no mesmo: os dois atos expressam (…) a mesma ansiedade diante de sua potência, o mesmo reconhecimento dessa potência. A afirmação baudrillardiana da indistinção definitiva entre imagem e realidade pode agora ser tomada como expressão da potência ameaçadora da imagem tanto quanto as fantasmagorias cibernéticas dos filmes de Cronenberg, mas também tanto quanto as análises das mensagens escondidas na imagem publicitária (…) Dar às imagens sua consistência própria é justamente lhes dar a consistência de quase-corpo que são mais que ilusões, menos que organismos vivos (RANCIÈRE, 2017, p. 196-200).
As coisas e os seres, humanos ou não, estão cada vez mais computadorizáveis. O capital ajuda na tecnologia, mas esse pacto não traz necessariamente credibilidade – talvez aconteça justamente o oposto. Seja ela planejada para o meio que for, quanto maior o orçamento de uma produção audiovisual, maior a capacidade de edição de forma rápida e precisa. Quando o assunto é (in)suspeição, o acréscimo financeiro é também o do possível descrédito com a fidelidade da relação entre o que foi filmado e o que a tela mostra. “Mais que ilusões, menos que organismos vivos”, diz Rancière. Do ponto de vista biológico, sim. Mas do ponto de vista de percepção visual do que é mostrado a um espectador comum, até que ponto os corpos seguem sendo menos que organismos vivos?
Fica a impressão de que esta questão é vivida notadamente pelas superproduções, que tanto investem nessa emulação. Na contramão, estão o jornalismo ao vivo, as lives, os encontros em Zoom, Google Meet e todas as imagens feitas e transmitidas enquanto acontecem – geralmente com câmeras que não são as mais potentes. Essas manifestações devem ter suas forças cada vez mais destacadas. Se o tempo é o último sobrevivente, se ele é a realeza do realismo da imagem audiovisual e só posteriormente projetada (filmes, séries, etc.), a imagem ao vivo (jornalística ou não), enquanto não houver uma radical possibilidade de manipulação nela, tende a sobreviver, também de forma cada vez mais isolada, como a última instância de credibilidade imediata da imagem audiovisual. Se você quer acreditar na imagem audiovisual, mais uma vez convocamos Gil: “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”[25].
Reconhecendo os limites deste pesquisador, encerramos sem mais respostas e com algumas questões.
Até onde o que fazemos é ressignificar e impulsionar o realismo através da tecnologia, ou é descredibilizar o realismo através de artifícios? Em que medida o realismo que a tecnologia traz para a imagem, e a sua capacidade de emular a realidade não filmada, nos convida à linguagem audiovisual ou nos afasta dela para admirar os efeitos narcísicos e ilusórios que a contemporaneidade tecnológica tem sido capaz de prover? Estamos caminhando para um lugar onde o único limite intransponível da imagem realista é o da morte? No mundo com um império do visível progressivamente mais tecnológico, a imagem audiovisual realista virou uma religião ateia?
* Agradecimento especial a Diogo Cronemberger por uma atenciosa primeira leitura do texto.
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FOTOGRAFIA:
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NOTAS:
[1] Marie-José Mondzain, A imagem pode matar?. Lisboa, Nova Vega, 2009, pp. 5-34: “A imagem triunfou ao longo dos séculos e todos celebram o domínio incontestado do visível. (…) É evidente que o império visual a que estamos hoje em dia submetidos se nos apresenta de maneira violenta, numa tensão entre um pensamento da encarnação e estratégias de incorporação”.
[2] Aqui consideramos sinônimos fake news e desinformação.
[3] “Entre todos esses formatos, fake news em formato de vídeo prevaleceram (28%), seguido de textos com imagens (19,2%)” (DOURADO, 2020, p. 240).
[4] Ibid., p. 39: “O ano de 2016 foi um marco – ou balde de água fria – que redirecionou os estudos de informação política online para os riscos do consumo em larga escala de conteúdos falsos, falseados, incompletos, enganosos e mentirosos nas plataformas de mídias sociais”. A nossos olhos, a popularização do termo atingiu tal nível que é impossível restringi-lo à camada eleitoral.
[5] Hunt Allcott e Matthew Gentzkow, “Social media and fake news in the 2016 election”, em Journal of economic perspectives, 2017.
[6] A definição é de Nelito Fernandes, em matéria publicada na revista Trip. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/trip/criador-do-sensacionalista-explica-por-que-internautas-repassam-noticias-falsas. Acesso em 10/12/2020.
[7] A banalização da morte de corpos negros, a combinação do racismo com a covardia, entre outras questões que podem vir daí, pedem debates que transcendem o foco destes rabiscos, seguirão tendo repercussões e, torcemos, ocasionando mudanças na sociedade.
[8] Pessoalmente, acredito que houve a facada, mas isso não anula o fato de que as imagens disponíveis carecem de definição e de um ângulo mais favoráveis – quando estes dois pontos se ligam ao reino das fake news, e a um presidente conhecido por espalhar mentiras, a dúvida aparece.
[9] Jair Messias Bolsonaro, vídeo publicado em 7 de julho de 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=723015191608243. Acesso em 10/12/2020.
[10] Marie-José Mondzain, A imagem pode matar?. Lisboa, Nova Vega, 2009, p. 35: “Será necessário concluir, inversamente, que tudo o que é visível é neutro e que é tarefa de cada um produzir ou não sentido? Não, visto ter ficado estabelecido que o regime da imagem é por natureza passional e que não poderíamos, a este título, qualificar como neutro, aquilo que nos toca e que nos deve tocar”.
[11] Aqui, neste artigo, trataremos encenação e mise en scène como sinônimos. Quanto à grafia, escolhemos com hífen: mise-en-scène.
[12] Há no YouTube dois vídeos anteriores, um de 2017 e outro de 2019, mas foi o ligado ao Twitter, postado num 16 de julho já pandêmico, via Roberto Parrotino, que mais teve curtidas. Disponível em https://twitter.com/rparrottino/status/1283959165304610819. Acesso em 27/03/2021.
[13] Um terço das salas de cinema no país está em São Paulo. Já em Alagoas, apenas a capital Maceió e Arapiraca têm cinema: 98% dos 102 municípios do estado não têm. Além da má distribuição, há uma pequena oferta: somente 54 das 4.911 cidades brasileiras com até 50 mil habitantes têm cinema – Gabriela Caesar, “São Paulo abriga 1/3 das salas de cinema do país”, em https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/sao-paulo-abriga-13-das-salas-de-cinema-do-pais.ghtml. Acesso em 10/12/2020. A título de comparação, o Brasil tem em média uma sala de cinema a cada 65 mil habitantes, enquanto o México, com população e realidade socioeconômica próximas, tem uma sala a cada 23 mil – Maylson Honorato, “Os sem cinema”, em: https://d.gazetadealagoas.com.br/caderno-b/212510/os-sem-cinema. Acesso em 27/03/2021.
[14] Em 2015, no Brasil, 35% dos entrevistados afirmaram ver filmes no celular (Rodrigues, 2015), em: https://www.tecmundo.com.br/celular/85067-telao-mobile-35-brasileiros-assistem-semanalmente-filmes-celular.htm. Acesso em: 27/03/2021.
Quatro anos depois, o número cresceu: 40% dos brasileiros pagam para ver filmes e séries no celular (Panorama Audiovisual, 2019), em: https://panoramaaudiovisual.com.br/quase-40-dos-internautas-no-brasil-pagam-para-ver-filmes-e-series-no-celular-outros-20-pagam-pelo-streaming-de-musica/. Acesso em: 27/03/2021.
[15] No Brasil, os números mais recentes, publicados em abril de 2020, dizem respeito a uma comparação entre 2017 e 2018. Computadores (de 56,6% para 50,7%) e tablets (14,3% para 12%) têm perdido espaço, enquanto o celular, que já era, de longe, o meio mais usado para acessar a Internet, tem se popularizado: se em 2017 97% da população que acessava a Internet usava o celular, no ano seguinte o número subiu para 98,1% – Mariana Tokarnia, “Celular é o principal meio de acesso à internet no país”, em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/celular-e-o-principal-meio-de-acesso-internet-no-pais. Acesso em 10/12/2020.
[16] Pascal Bonitzer, “Qu’est-ce qu’un plan?” em Cahiers du cinéma. Le champ aveugle: essais sur le cinema. Paris, Éditions de l’Étoile, 1982. Disponível em www.geocities.ws/ruygardnier/bonitzeroqueeumplano.doc. Acesso em 10/12/2020.
[17] Chris Jancelewicz, “Meet Glenn Ennis, a.k.a. the bear from ‘The Revenant’”, em https://globalnews.ca/news/2456222/meet-glenn-ennis-a-k-a-the-bear-from-the-revenant/. Acesso em 10/12/2020. “Acredite ou não, o grande urso foi um feito de computação gráfica, e havia um homem de verdade (não diferente de Andy Serkis em Planeta dos Macacos e Senhor dos Anéis) numa roupa azul, se comportando como um urso, e sim, atacando como um urso” (tradução nossa).
[18] André Lopes, entrevistado em “‘Deepfake’, o novo e terrível patamar das ‘fake news’”, disponível em https://veja.abril.com.br/tecnologia/deepfake-o-novo-e-terrivel-patamar-das-fake-news/. Acesso em 10/12/2020. “Vídeos falsos, que simulam o rosto e a voz de pessoas, mas em produções de conteúdo falacioso, são o próximo passo das manipulações virtuais (…). A técnica lança mão da inteligência artificial (IA) para inserir rostos reais em cenas falsas com o objetivo de criar um vídeo com alguém dizendo algo que não disse. É um novo e péssimo degrau das fake news. (…). Já com softwares potentes, como o Synthesia, desenvolvido para a indústria cinematográfica e de publicidade, foi possível fazer o ex-jogador de futebol David Beckham falar nove idiomas com extremo realismo, em uma campanha publicitária, em 55 países, que alertava sobre os riscos da malária”.
Por sua vez, Maurício Moura, pesquisador na George Washington University e fundador da Ideia Big Data, empresa de pesquisas e estratégia digital, diz que “nas campanhas eleitorais, os recursos e o tempo dedicado às fake news só têm aumentado. E isso porque o Brasil ainda não viveu a era das deepfakes, que são os vídeos. Aquela coisa do ver para crer perdeu muito a força porque são vídeos em que as pessoas usam a voz real, a pessoa real, e é uma coisa feita por machine learning, que dá uma dimensão a uma coisa muito real, que é falsa” – Podcast Café da Manhã, “A propaganda eleitoral ainda importa?”, em https://open.spotify.com/episode/5xeTa6N3mCWb6REIDzNG2K?si=bsBpL9E6TIOhMB-ldgkBtg. Acesso em 10/12/2020.
[19] Bom lembrar ainda da mesma Grace Passô no seu República (2020). Passada mais da metade da projeção, após um plano de quase cinco minutos, uma voz fora de quadro se revela presente e, tão importante quanto, a atriz troca de personagem. Diante de nossos olhos, sem recorrer à montagem ou à elipse, Grace Passô muda bruscamente – a potência do filme nos chega especialmente por causa do longo plano, sem cortes e sem grandes efeitos de pós-produção.
[20] O vídeo mais longo de que se tem conhecimento, até agora, é o da câmera do policial Alex Kueng, com 18 minutos. Ele começa com policiais entrando no café, onde Floyd teria tentado comprar cigarros com uma nota falsificada. G1 – Jornal Nacional Online. Disponível em https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/08/04/novo-video-mostra-a-abordagem-dos-policiais-a-george-floyd-nos-estados-unidos.ghtml. Acesso em 10/12/2020.
[21] Tzvetan Todorov, As estruturas narrativas. São Paulo, Perspectiva, 2006, p. 9: “Forma e conteúdo são inseparáveis. Onde está o conteúdo senão na forma? Será possível uma forma verbal sem conteúdo? A única separação que se pode fazer é operacional. E não se trata então de uma separação entre forma e conteúdo, mas de uma distinção metodológica entre ‘material’ e ‘procedimento’”. Todorov se refere a estruturas narrativas principalmente literárias, mas tomamos a liberdade de ir além delas: a ideia é entender a encenação da imagem realista como um dos inúmeros procedimentos possíveis (e dos quais não podemos escapar) para encarar o material, aquilo (pessoas, lugares, eventos) que será filmado.
[22] “O fluxo designa uma estética que rejeita a racionalização do mundo e a apreensão intelectual de suas formas, preferindo-se construir na sensorialidade, na instalação de ambiência, na mobilidade fluida e contínua de um olhar que vagueia pelo espaço sem finalidade aparente. Contrariamente ao maneirismo, esse cinema não exige do espectador nenhum conhecimento prévio, nenhuma consciência sobre a história das formas cinematográficas. Na estética do fluxo, o olhar é convidado a se perder na exploração da matéria sensorial de um mundo concebido como deslocamento e passagem constantes, mutação e desordem. Os compromissos com a narração e o drama, ou até mesmo com a ficção, são enfraquecidos em benefício da ‘pureza’ da experiência da duração, da luz e do movimento” (OLIVEIRA JR., 2013, p. 120). Para citar cineastas ainda vivos (Abbas Kiarostami e Chantal Akerman eram dos melhores exemplos), podemos pensar em algumas obras de, entre outros nomes, Apichatpong Weerasethakul, Claire Denis, Gus Van Sant, Hou Hsiao-hsien e, citada nesta pesquisa por Aguilar, Lucrecia Martel.
[23] Jean-Louis Comolli, “Algumas notas em torno da montagem” em Devires: cinema e humanidades, 2007, p. 23.
[24] Tempo Rei, Gilberto Gil, Tropical Storm / WEA Latina, 1984.
[25] Aqui e Agora, Gilberto Gil, Warner Music, 1977.