Toni Erdmann (2016), de Maren Ade

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Como conversar com filhos

                                                                                                       Odorico Leal

Toni Erdmann (2016), da cineasta alemã Maren Ade, participa de um gênero de filmes bastante repisado: a história de reaproximação entre pais e filhos. Como de costume nesse tipo de produção, a caracterização de cada personagem carrega nas tintas dos contrastes: o pai, Winfried, professor de música de uma escola infantil, é quase improvável no gosto pelas pilhérias e joguetes, rompendo sempre os limites das convenções sociais por meio de um humor absurdista frequentemente sem graça; a filha, Ines, uma estrategista corporativa, parece patologicamente fechada ao mundo dos afetos, obsediada pelas chamadas do celular e protegida por várias camadas de selvageria empresarial e cinismo. Ambos os personagens são figuras exemplares do seu contexto histórico: Winfried é um despojo humano dos anos 60 – um suposto espírito livre que, na abertura do filme, aparece sugestivamente travestido de morto-vivo, vagando entre situações sociais que não comportam a atitude fingidamente lúdica que é sua marca registrada; Ines é o protótipo de um tipo de mulher moderna que vira as costas ao papel social tradicional, dispensando a fantasia de marido e filhos e adotando os valores agressivos e socialmente irrefletidos do mundo corporativo. A história de Toni Erdmann é a história de reaproximação entre Winfried e Ines, mas é também uma aula sobre como transformar personagens a princípio tão esquemáticos em figuras humanas de carne e osso.

Além do contraste esquemático entre os temperamentos do pai e da filha, Maren Ade, que assina o roteiro e a direção, trabalha o contraste entre modos de expressão e relacionamento, contraste pelo qual se chega ao significado profundo do filme. Não se deve perguntar quem é Toni Erdmann, mas, sim, o que é Toni Erdmann – Toni Erdmann é um experimento comunicativo, levado a cabo segundo os princípios cômicos esdrúxulos de Winfried. É um experimento necessário, porque aquilo que pai e filha precisam que exista entre eles não pode ser conjurado por meio de palavras – as palavras soam como clichês gastos que só convidam ao ceticismo. Também não pode ser preparado em situações formulaicas. Numa conversa na beira da piscina do hotel, o pai pergunta à filha sobre o que é importante na vida. É uma situação comunicativa inútil, que torna o discurso estéril: a filha responde com sarcasmo, devolvendo à pergunta ao pai, que não também não sabe o que responder. Mas ela também quer se comunicar. Do alto da sacada de seu apartamento, ela observa Winfriend entrar no táxi e partir, tendo fracassado no projeto de reconexão pelas vias tradicionais. Ela chora, talvez porque saiba que a morte ronda seu pai e que talvez nunca mais o veja. É a partir desse ponto de impasse que surge Toni Erdmann.

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O que Winfried busca ao se transformar em Toni Erdmann e, mais tarde, na estranha e cativante criatura do folclore búlgaro é testar estratégias de comunicação que, abandonando métodos convencionais, apelam ao poético e ao absurdo a fim de gerar uma situação emocionalmente carregada, nas quais os termos mais simples e batidos ou o simples silêncio poderão ser vivenciados em toda sua potência. A sequência final do filme, desde a intrusão na comemoração de uma família de desconhecidos, passando pela festa desnuda – pela qual Ines adere ao método poético esdrúxulo do pai – até o encontro no parque entre a filha e o monstro imaginário, é uma jornada de descoberta – pela qual a filha se revela, mesmo naquilo que toda filha preferiria esconder -, em que tudo se desembaralha para se recompor, ao final, na beira do caixão da avó.

A morte está presente desde o começo do filme – em Winfried fantasiado de zumbi, na morte do cão que propulsiona a viagem à Bucareste, onde a filha trabalha, e que põe o filme em movimento. E é no enterro da avó que os dois, afinal, tendo se conhecido, abrem-se um ao outro, espelhando, agora, no mundo real, aquele encontro que se dera no mundo surreal entre uma Ines de camisola e Winfried de criatura búlgara. É um final ambíguo, em que Maren Ade acena, por um lado, para um desfecho esperançoso, pelo reconexão entre pai e filha, mas também terrível, pela sugestão de que esse reencontro é ditado também pelo terror do caos da morte, que faz com que as pobres criaturas humanas se agarrem umas às outras. É o que fica dos últimos segundos da película, quando o pai sai de cena para buscar uma câmera fotográfica, e ficamos com o plano fechado no rosto de Ines, que lança à distância um olhar vagamente perturbador. Acusado de pieguice, arrisco dizer que, no caso de Toni Erdmann, o sentimentalismo está nos olhos do espectador.

 

Silêncio (2016), de Martin Scorsese

Liam Neeson plays Father Ferreira in the film SILENCE by Paramount Pictures, SharpSword Films, and AI Films

A fé numa onipresença discreta

Douglas König de Oliveira

Com seu último filme, Silêncio (2016), Martin Scorsese correu um duplo risco. Poderia tê-lo perdido, incluindo-o no panteão de obras inacabadas de grandes diretores, como A Viagem de Giuseppe Mastorna, de Fellini, Tecnicamente Doce, de Antonioni, Napoleão, de Kubrick, Hoffmanniana, de Tarkovski, entre tantas outras. Ou poderia ter esquecido o espírito adequado para a realização, aquela inspiração inicial que motiva a intenção de se realizar um filme. Neste caso, dois exemplos vêm à mente: As Aventuras de Tintin: O Segredo de Licorne (2011), de Steven Spielberg e Red Tails (2012), de George Lucas. Ambos os projetos foram cozidos por tanto tempo, em idas e vindas de produção, que ao final do processo todo o sabor do conceito inicial tinha se esvaído. Scorsese, naturalmente, escapou do primeiro risco, mas não passou imaculado pelo segundo.

Silêncio (2016) narra a missão de dois jesuítas portugueses no Japão do século XVII. Numa época em que os adeptos do cristianismo foram perseguidos, os protagonistas buscam o mentor desaparecido. Apresentando um requinte visual desde suas primeiras imagens, o enredo segue a trajetória de Sebastião Rodrigues, interpretado por Andrew Garfield, e de seu companheiro, Francisco Garpe, interpretado por Adam Driver, que apenas pontua algumas falas e cenas, mas de maneira acessória. A busca de Rodrigues também é de afirmação de sua fé. Em vários momentos ele toma conhecimento de como o cristianismo norteou a vivência das pessoas simples dos vilarejos onde os jesuítas divulgaram seus ideais. E também sente as consequências que a fidelidade a esses ideais trouxeram às comunidades. Sua jornada reflete tanto o desejo por professar a forma de celebrar a fé cristã, agora realizada de forma marginal em reuniões secretas e símbolos disfarçados, quanto a dúvida sobre a pertinência destes ensinamentos numa cultura tão diversa da sua, sob a vigilância repressora do governo.

O aspecto mais importante do processo é o questionamento constante de Rodrigues sobre o alheamento de Deus das situações de sofrimento que são suportadas em seu nome. Deus, no caso, não seria só a figura mitológica da crença judaico-cristã, uma divindade entre tantas outras, mas sim o ente motivador e universal que os jesuítas atestavam ser o único esteio possível de uma noção correta de mundo. Essa concepção entrou em choque com aquelas defendidas pelas entidades religiosas do lugar, principalmente relativas ao budismo, e levou as autoridades a intervirem para evitar a expansão do cristianismo. A crença no Cristo sempre foi atraente e pouco cifrada, bastante fácil de ser relacionada a valores morais de diversos lugares. A platonização do judaísmo operado no cristianismo é uma fórmula acessível e consoladora para muitos que vivem em penúria, como os personagens mostrados no filme. A ideia de uma dimensão superior transcendental, onde as injustiças serão sanadas (no Paraíso até mesmo os impostos desaparecerão, na fala de um personagem), é bastante comovente, sobretudo numa vivência de privação material. Esse aspecto é muito bem retratado no filme, principalmente nas cenas que mostram a acolhida de Rodrigues nas comunidades, onde seu personagem fornece os subsídios espirituais que necessitam.

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O silêncio de Deus, que já teve um tratamento cinematográfico marcante na obra do sueco Ingmar Bergman, é no filme de Scorsese sentido pelo protagonista como um questionamento de sua vocação. Não atinge a angústia humanista de Bergman, que retrata um silêncio que acaba unindo os homens na falta de amparo. O discurso de Scorsese sobre as contradições da visão religiosa não ultrapassa os dilemas triviais de alguém que toma a fé como fundamento de seu exercício. Talvez por inequívoca devoção, sendo Scorsese católico, ou por não estar mais interessado em polêmicas como as que gerou com A Última Tentação de Cristo (1988) e seu Jesus humanizado, as dúvidas imputadas ao personagem de Rodrigues nunca são capitais, mas remediadas pelas sua convicções ou por um núcleo extremamente diplomático dos inquisidores japoneses. Desta forma, toda a carga que o filme poderia ter além de sua beleza visual, como uma discussão acerca do sentido da fé religiosa num mundo contemporâneo tão complexo e plural, se esvai numa narrativa conservadora, sem disposição para realmente colocar em xeque os fundamentos de tal crença e as ramificações que norteiam modos de vida e sociais ainda relevantes. Scorsese parece nunca conseguir o tom de uma atitude anti-dogmática, como fez, por exemplo, Luis Buñuel em Via Láctea (1969), parodiando os dogmas do catolicismo.

Outro empecilho para a elaboração de uma visão original de Scorsese sobre o enredo é sua cinefilia por vezes paralisante. Se o diretor faz um trabalho louvável de preservação da memória do cinema com sua Film Foundation, além de realizar pérolas do perfil diretor/cinéfilo, como a homenagem ao pioneiro Georges Méliès em A Invenção de Hugo Cabret (2011), por outro lado, a sua devoção a expressão de outros artistas não lhe permite encontrar uma maneira singular de expressão cinematográfica. Neste caso especifico, existe a referência ao filme homônimo de Masahiro Shinoda, realizado em 1971. Todos os pontos dramáticos marcantes do filme de Scorsese são réplicas muito próximas do tratamento dado por Shinoda às cenas. Ao observar as duas obras paralelamente, nota-se que Scorsese praticamente expande algumas cenas para dar uma ênfase dramática mais direta,  como o trecho das crucificações à beira-mar. Também certas falas da versão de Shinoda são ilustradas com imagens na versão de Scorsese. O personagem relacionado à figura bíblica do traidor Judas, chamado Kichijiro, tem um pouco mais de autonomia em sequências isoladas na versão de Shinoda, enquanto na de Scorsese ele sempre está amarrado à ação que envolve Rodrigues.

As escolhas visuais e técnicas, como tomadas e movimentos de câmera de Shinoda, representante do que veio a ser chamada de Nouvelle Vague japonesa, são tão rigorosas como as empregadas por Scorsese no cinema norte-americano dos anos 70. A diferença mais acentuada dos dois filmes é o desfecho. Shinoda encerra o enredo do missionário Rodrigues no auge de sua crise, após ser forçado a negar a sua fé, despersonalizado ao ter que assumir nome, casa e família de um cidadão japonês falecido – algo como uma punição benevolente, em comparação com a execução. Já Scorsese ultrapassa este ponto da narrativa, a fim de representar seu protagonista, já no fim da vida, negando intimamente a apostasia. O diretor opta pela redenção dos mártires cristãos e relaciona o silêncio de Deus a uma entidade que certamente os acompanha, os protege e auxilia, desde que saibam extrair os subsídios de sua aparente ausência.

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Silêncio se configura, ao final, como uma afirmação pessoal de fé de um diretor de cinema, mais do que como um filme com vocação de gerar diálogo. Esse tipo de obra tem se tornado mais comum fora dos nichos francamente religiosos, onde os produtos de promoção de uma instituição religiosa circulam. Não há nada de condenável em um artista expressar suas convicções mais do que suas inquietações. Porém, o dado crítico indica que inquietações produzem geralmente obras de maior relevância. À medida que se opta por um discurso fechado baseado em dogmas, e utilizando um meio de expressão poderoso materialmente como o cinema, assume-se o risco de só atingir um público afeito a certezas. Com muitos filmes transgressivos e instigantes, Martin Scorsese realiza desta vez uma obra competente, mas bastante conservadora na abordagem, o que a priva de destaque entre os temas tratados na sua filmografia.

Paterson (2016), de Jim Jarmusch

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O todo numa caixa de fósforos

Fábio Feldman

The supreme importance
of this nameless spectacle

sped me by them
without a word—

(William Carlos Williams, “The right of way”)

O mundo de Jim Jarmusch é um mundo de repetições e coincidências: as letras cor-de-rosa; o homônimo de William Blake; dois espressos num café espanhol; “I scream, you scream, we all scream for ice cream”. Trata-se de um mundo de padrões, estruturas fixas ordenadas de modo quase geométrico. Entretanto, suas formas reiterativas parecem ser regidas por normas que nos são incompreensíveis. Entre a roda de Dharma e a pedra de Sísifo, a percepção desencantada e algo irônica de que a máquina do mundo é uma fábrica de mistérios. Nela, jovens cruzam continentes em busca do fantasma de Elvis; o riso seco eclode, feito engasgo, diante do correr de táxis solitários; e as diferenças, todas, insistem em nascer do cerne da repetição. É o constante comunicar de pólos opostos, incluídos dentro de uma engrenagem rigorosa, que dá a tônica da filmografia do autor, esse Beckett pós-moderno, esse hipster avant la lettre, esse Antonioni pop – meio mestre zen, meio gauche, meio fã de rock.

Em Paterson (2016), mais do que em qualquer outro de seus filmes, o mundo se torna protagonista. Para além do personagem cujo nome espelha o da cidade que habita, a figura central da obra é uma Estrutura, que pode ser lida como cinema, mas também como versão metonímica do cosmo.

Cosmogonia do micro: o todo numa caixa de fósforos.

Tudo em Paterson parece se constituir circularmente. Tanto no tempo quanto no espaço, corpos, objetos, ideias e desejos se movem como numa roda: o mesmo beijo ao acordar, a mesma rota do mesmo ônibus; os mesmos outros papos, o mesmo outro jantar; a mesma noite no mesmo bar, enquanto o mesmo cão aguarda diante da fachada; o mesmo sono, o mesmo beijo, a mesma rota do mesmo ônibus. E dentro desse quadro, a irrupção constante de coincidências, duplos que pululam por todas as partes, signos que tanto apontam para a ordem quanto para a absurdidade.

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Seriam os gêmeos, os poetas, os nomes e os astros a comprovação de que, como a arte, a vida é feita de temas, motivos, refrões, rimas, jogos reiterados de significantes produzidos por um Grande Criador? Ou seriam, ao contrário, a prova cabal de que um lance de dados jamais abolirá o Acaso? Seria o mundo uma obra de arte moderna, meticulosamente criada a fim de produzir o máximo de ambiguidade? Seria, ao contrário, um kierkegaardiano jogo de cartas cujas regras jamais são divulgadas? Ou seria puro movimento, desvelar heraclitiano de banalidades arremessadas dentro de uma espiral?

O sentido nos elude, mas o processo é claro: o mundo como conjunto de gestos leves, bem estruturados, coincidentes ou não, e, acima de tudo, essencialmente repetitivos.

Como o arqueiro zen, Paterson, o personagem (interpretado brilhantemente por Adam Driver), sustenta uma postura de aceitação diante dos cenários e situações que o cercam. Ex-militar, correntemente um motorista de ônibus, ele organiza sua rotina circular dividindo o tempo entre a vida em família, o trabalho e a cervejinha no bar. Em casa, interage com a espirituosa mulher e um cachorro hostil. No ônibus, seguindo os mesmos caminhos, ora ouve atento aos dramas cotidianos de desconhecidos, ora se entrega ao prazer do movimento. Através de procedimentos de montagem e sobreposição, Jarmusch nos leva a flertar com o transe: a circularidade induz seu personagem a momentos de iluminação meditativa. Onde alguns veriam tédio, Paterson encontra uma via para a ascese. O movimento do ônibus é o movimento da vida; alinhar-se a ele é encontrar equilíbrio.

Porém, Paterson é também poeta. Desprovido de ambições, comprometido unicamente com o próprio labor, ele ocupa instantes livres cunhando versos. Versos à moda daqueles que popularizaram William Carlos Williams e muitos artistas que o sucederam, como Frank O’Hara, John Ashbery, Barbara Guest e Ron Padgett[1], luminares da dita Escola de Nova York. Todos eles integram uma tradição que busca valorizar o raso: poesia de miudezas, repleta de vigor e coloquialismo, focada nos aspectos mais mundanos da experiência humana. Laranjas, carrinhos vermelhos, gafanhotos, uma lata de coca-cola; toques, tropeços, passos pesados em calçadas lotadas; a história do Homem a partir de seus rastros; Ideias advindas tão somente das Coisas.

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O poeta Paterson ouve a voz-de-megafone das caixas de fósforos, rejeita o peso das dimensões diante de um copo de cerveja, ignora trilhões de moléculas enquanto a vida prosaica segue, implode diante das formas da amada e a ela confessa: “Se você me deixasse / eu arrancaria meu coração / e nunca o colocaria de volta.”. Como Williams, Ponge ou Bashô, o poeta Paterson faz do mundo pequeno o palco para algo épico e arquiteta uma odisséia entre grãos de areia. Cabe, porém, a pergunta: ao fazê-lo, celebra a Estrutura ou se choca contra ela? Dando dimensão poética ao cotidiano, ele cria um elogio ou uma forma de negação? Compondo versos aos moldes do Cosmo – circular, gradual e metodicamente –, ele fortalece o círculo ou o rompe? Poesia enquanto ato de resistência: bebendo do mundo, o poeta Paterson o ultrapassa. Poesia enquanto experiência mística: reconfigurando as Coisas, o poeta Paterson se livra delas. Poesia enquanto transcendência: ao representar o micro, o poeta Paterson salta para fora do macro.

Ying & Yang: celebração/superação.

Em determinado momento do filme, a máquina do mundo quebra. O colega lamurioso não divide suas fontes de sofrimento, o ônibus enguiça, a esposa não faz o jantar, Romeu tenta matar Julieta – e toda a poesia é, literalmente, despedaçada. Os movimentos leves, bem estruturados, entram em colapso. E a espiral parece se desfazer feito um fraco facho de luz. Mas logo tudo retorna. Como um momento de tensão necessário para que uma narrativa seja propulsionada adiante, a morte da ordem é apenas um respiro. Desolado, observando a cachoeira, Paterson recebe consolo de uma figura ambígua, tipicamente jarmuschiana. Semideus? Enviado da Máquina? Um simples japonês de férias? Quem se importa. O poeta abre um novo caderno em branco e, diante das águas – sempre iguais, sempre outras – inicia um novo capítulo.

Vida que segue, em círculos, exata, absurda, plena.

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[1] Padgett, inclusive, escreveu os poemas de Paterson, a pedido de Jarmusch, fã assumido de toda essa tradição literária

Okja (2017), de Bong Joon-Ho

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A Carne é Fraca

Daniel Rodriguez

Ao lado de cineastas como Park Chan-wook,  Hong Sang-soo e Kim Jee-woon, Bong Joon-Ho é um dos nomes mais proeminentes do novo cinema sul-coreano. Trabalhando com entrelaces entre o cinema de gênero e a sátira, o diretor imprime um olhar político em meio às formas do terror, do suspense e da ficção científica. Okja (2017), seu mais recente longa, não foge à regra.

Okja é o nome dado a um premiado super-porco criado por um pequeno fazendeiro em uma região montanhosa da Coréia do Sul. Esse animal fictício parece ser um elo-perdido (ou melhor, um elo-fabricado) entre porco e hipopótamo. Vendido ao povo como uma raríssima espécie mamífera chilena, o super-porco é, em verdade, um produto de engenharia genética desenvolvido como forma de suprir o consumo mundial por carne, neutralizando alguns dos principais danos causados pela pecuária e outras criações.

Dentro da filmografia de Bong é possível encontrar premissa semelhante em O Hospedeiro (2006). Ao passo em que em Okja, os animais são criados em laboratório, intencionalmente, este outro apresenta uma monstruosidade gerada acidentalmente pela ação do homem. A interferência humana na natureza é, portanto, um tema comum, abordado de formas diferentes. No filme de 2006, Joon-Ho se preocupa especialmente com a questão da presença americana em solo coreano, optando por trabalhar tal mote pelo viés do horror e dos filmes de monstro. Em seu último trabalho, essa crítica se amplifica, mirando a produção e consumo de carne em escala global. Ao invés do horror, Joon-Ho cria um estranho híbrido de aventura e documentário pró-vegetarianismo, amarrado em um invólucro dramático.

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De maneira análoga ao que acontece na maioria das obras do diretor, o longa possui uma estrutura narrativa descendente. Transcorre durante o primeiro ato uma história de amizade, simples e direta, entre Mija, a filha do fazendeiro, e a super-porca Okja. Tal relação dura até o momento em que os verdadeiros donos do super-porco intercedem, almejando levá-la para os Estados Unidos com o intuito de vendê-la para o público e, posteriormente, abatê-lo e processá-lo.

Ao longo do primeiro ato, Joon-Ho constrói um filme leve, de ar aventuresco, pontuado pelo humor quase pastelão e personagens excessivamente caricatos. Não obstante, a atmosfera que compõe é gradativamente destruída pela retratação cínica e pessimista da sociedade em que os personagens são inseridos, de forma que, ao final, resta apenas inconformismo.

Essa perspectiva niilista marca o trabalho do autor, como comprovamos seminais Memórias de um Assassinato (2003) e Mother – A Busca Pela Verdade (2009). Em ambos, ambientes aparentemente descontraídos são substituídos, pouco a pouco, por cenários desalentadores e vazios de sentido, nos quais os personagens são, geralmente,moralmente destruídos. Em Okja, a atuação caricata de Tilda Swinton e Jake Gyllenhaal, em específico, parece remeter a seu longa anterior, Expresso do Amanhã (2013), que apresentava figuras de poder de forma igualmente burlesca. Nesses dois trabalhos mais recentes, a posição social é seguida de uma transformação, cujo resultado é pitoresco.

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É difícil não pensar em Okja como uma crítica aberta à sociedade de consumo. A exposição é cruelíssima e realista ao ponto de ser incômoda. Joon-Ho insere diversos momentos de brutalidade, muito semelhantes ao que vemos em documentários que utilizam imagens da rotina sádica dos abatedouros com o intuito de sensibilizar o espectador. Não obstante, o próprio Joon-Ho acaba por amenizar certas cenas em virtude do excesso de deboche na representação dos personagens previamente citados. Em um dos momentos supostos de suscitar maior impacto, Wilcox (Gyllenhaal) tortura Okja, misturando vingança pessoal contra o animal e contra seus superiores. O comportamento over the top do mesmo acaba por minar a tensão que a sequência supostamente deveria promover. Esses personagens satíricos são muito mais balanceados dentro do microcosmo de Expresso do Amanhã, já aqui soam como uma repetição pouco sucedida de um artificio dele próprio.

No decorrer dessa transformação de uma estrutura de ação/aventura para um filme que denuncia e ataca, Joon-Ho abre mão de uma construção estética mais elaborada, buscando, em primeira instância, expor uma realidade problemática. De um lado, temos uma trama simples, contada com a maestria de um grande cineasta; do outro, existe uma trama complexa exposta de maneira simplória, que acarreta em uma perda de ritmo. A obra em sua completude soa como episódios distintos mesclados em um. Ao passo em que isso é parcialmente intencional, falta coerência dentro dessa mistura, de forma que tanto o entretenimento como a provocação ficam subaproveitados. É no primeiro ato, pelas montanhas da Coréia do Sul, que Joon-Ho parece mais confortável.

 

O Filme da Minha Vida (2017), de Selton Mello

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Entre o lirismo e a superficialidade

Veriana Ribeiro

O Filme da Minha Vida (2017), terceiro longa-metragem de Selton Mello, baseado no livro “Um Pai de Cinema”, do escritor chileno Antonio Skármeta, tenta conquistar o público através da nostalgia: as câmeras analógicas, os programas de rádio, a cidade do interior, a chegada da televisão e a importância do cinema nas relações humanas são representados a fim de nos transportar para uma época que já passou. Com pitadas de humor e drama pessoal, conta a história de Tony Terranova, um jovem professor recém-formado na capital que volta para sua pequena cidade na Serra Gaúcha e, no mesmo dia, vê o pai partir sem explicações.

A ausência de Nicolas torna-se um peso para o personagem principal e motiva sua jornada de autoconhecimento. Quem é Tony sem a presença daquele que ele tanto admirava? Quem é o pai, essa figura quase mitológica de suas memórias? Perdido, o protagonista acaba encontrando em Paco(interpretado pelo próprio Selton Melo) um substituto, a quem Tony confia seus problemas e pede conselhos.

Não é a primeira vez que um filme decide homenagear a sétima arte e a relação entre as pessoas e o cinema. Cinema Paradiso (1988), A Invenção de Hugo Cabret (2011), Cantando na Chuva (1952) ou até o recente La La Land (2016) possuem tal temática. No âmbito do cinema nacional, Cine Holliúdy (2013) e Lisbela e o Prisioneiro (2003) vêm à mente. No primeiro, somos fisgados pela nostalgia do cinema em uma cidade interiorana – história que, mesmo quando não vivida, está em nossas memórias através das lembranças dos nossos pais e avôs – e o segundo emociona pelo romance entre os personagens principais. O mesmo não acontece em O Filme da Minha Vida, que não consegue cativar nem pela nostalgia, nem pelo enredo.

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Quanto à nostalgia, o filme se esforça demais, dando importância para propagandas de rádio e a relação com a televisão só para enfatizar o período da época, quando a inserção desses elementos poderia acontecer de forma mais fluida. Por exemplo, existe uma cena em que Paco e Tony estão tomando café da manhã e começa a tocar no rádio a música de uma propaganda. Os personagens param o que estão fazendo, apenas para cantarolar a música. Qual a utilidade disto no roteiro além de tentar forçar um saudosimos em pessoas que viveram naquela época e talvez se lembrem do jingle? O trabalho na fotografia, na trilha sonora e na direção de arte já cumpre esse papel, não é preciso dar atenção para coisas que deveriam ficar em segundo plano.

Mas é a a superficialidade dos personagens que incomoda na trama, que ficam presos aos arquétipos que representam. Tony é o protagonista passando pela jornada do herói, Luna é a mocinha que lhe dá forças para enfrentar os desafios, Augusto é o alivio cômico, que funciona nas primeiras cenas, mas vai perdendo força à medida que a trama avança. Um exemplo disso é Petra, que fica engessada no papel de femme fatale. O enredo poderia ter usado a personagem para explorar a questão dos valores familiares, a gravidez em uma sociedade conservadora ou até a dificuldade de aceitar a passagem do tempo. Mas o diretor se limitou a algumas cenas em que Petra flerta com Tony de batom vermelho e usa pijamas sensuais pela casa. Nunca entendemos porque ela foge. Em nenhum momento o pai de Petra aparenta ser um personagem conservador, por isso, ficamos sem entender a decisão da garota em esconder a gravidez e abandonar o filho com Nicolas. A sensação é que se tivéssemos menos piadas sobre a zona e momentos de Tony melancólico, o filme poderia ter explorado melhor seus personagens secundários.

Apenas Paco apresenta uma maior complexidade em tela, com seu conflito em saber se é um homem ou um porco. Uma metáfora que o espectador vai entendendo aos poucos, primeiro no sentido estético – já que Paco é alguém bruto, fedido e sem cultura – mas que ganha cada vez mais camadas à medida que vamos descobrindo sua relação dúbia com os outros personagens da trama.

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Ainda assim, em seus melhores momentos, O Filme da Minha Vida consegue atingir um certo lirismo, evidenciado, por exemplo, através da presença do veterano Rolando Boldrin. Com seu rosto forte e expressivo, ele torna-se um símbolo para passagem do tempo. Não por acaso, é o responsável por conduzir o trem entre a cidade em que os personagens moram e o município vizinho, mais desenvolvido, onde muitos vão a fim de frequentar o cinema ou a zona.

É bonito ver a relação de Tony com a motocicleta do pai, que representa para ele a liberdade e a capacidade de conduzir a vida adulta. Grande é sua dificuldade em aceitá-la, preferindo andar de bicicleta e se apegar ao passado e à inocência da infância. Uma metáfora singela, mas que resume o conflito principal do filme: a dificuldade em abandonar o passado e parar de idealizá-lo. Seja o pai das lembranças, que é sempre incrível, mas que na realidade tem seus próprios traumas e defeitos para enfrentar, ou Petra, que de longe parece bela e perfeita, mas que é uma pessoa insegura que se agarra aos antigos troféus de concurso de beleza.

A vida obriga Tony a perder sua inocência, fazendo com que personagem vá mudando, ganhando mais confiança a cada cena, tornando-se mais rebelde em contraste com o personagem tímido que é apresentado no começo do filme.

O Filme da Minha Vida empreende um grande esforço para encantar o espectador: o filtro alaranjado que dá um ar vintage a todas as cenas; o uso da metalinguagem e referências cinematográficas; o saudosismos através da direção de arte e da escolha das músicas; a belíssima fotografia de Walter Carvalho; as frases de efeito que devem cair nas graças das redes sociais. Funciona em alguns momentos, é um filme que cumpre o seu papel de entreter. Mas não será o filme da minha vida.

Na Vertical (2016), de Alain Guiraudie

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A vertical é, na verdade, um zigue-zague

Thomas Lopes Whyte

O mais recente trabalho do diretor francês Alain Guiraudie aproveita o espaço conquistado por seu filme anterior, Um Estranho no Lago (2013), para oferecer ao público uma dose menos convencional e mais profunda de suas visões pessoais, ao mesmo tempo em que representa uma versão universal e abrangente de suas próprias experiências, ao demolir os muros que separam os territórios normativos da existência queer.

Léo, o protagonista vivido por Damien Bonnard, é um roteirista que vaga pelo interior da França, aparentemente à procura de inspiração, motivação ou qualquer outra coisa que o coloque em movimento. O herói inicia sua busca em um cenário pastoril, onde encontra sua futura parceira, com quem desenvolve uma estranha relação iniciada a partir de um diálogo sobre lobos. Na última cena do filme, ainda perdido, e no mesmo lugar onde começou sua jornada, Léo se depara com uma misteriosa alcateia. Essa proximidade e o paralelo entre início e fim são enganosos, pois apesar da ideia geral do ciclo que se fecha e da sugestão a respeito das origens e objetivos do personagem, representadas aqui pelo tema comum do artista em busca de inspiração, o filme não redunda em uma trajetória bem definida e não possui absolutamente nada de circular ou linear. É exatamente o oposto: todo o desenvolvimento das cenas acontece na exata medida em que o personagem se afasta dessa linha tracejada pelo destino. A instabilidade e o estado de ansiedade constante que definem o protagonista, o afastam radicalmente da figura do herói clássico.

Tempo

Em linhas gerais,o absurdo da história partilhada pelo diretor reside parcialmente no ato do próprio desvio. Todos os fatos importantes da vida de Léo acontecem durante sua crise criativa, apesar de não terem aí sua origem. Nesse curto espaço de tempo, Léo se casa com Mirande, tem um filho, é abandonado pela mulher, vê seu dinheiro acabar, é perseguido por seu editor e passa pela traumática experiência de lidar com a morte de um parceiro após o sexo. O personagem se torna testemunha da transformação do prazer em dor, da pequena morte em grande morte, experimenta relações impossíveis ao mesmo tempo em que se frustra com outras. No entanto, a quase totalidade dos eventos que nos levam aos acontecimentos enumerados acima é desconhecida.

A narrativa elíptica que condensa o tempo privilegia a relação dialética entre os momentos de significância máxima e aqueles sem a menor importância. Apesar do ritmo lento das cenas, reforçado por câmeras geralmente estáticas, o enredo se desenvolve de forma muito abrupta. Se o tecido conjuntivo que une essas partes não oferece explicações e, muitas vezes, é simplesmente suprimido, pode-se considerar aqui a utilização da metáfora cunhada por Bazin para demonstrar seu conceito de realidade. O corte de Guiraudie, não é ilusionista, as elipses se relacionam aos episódios da vida do personagem, e não à lógica interna de uma ou outra cena. Essas, por sua vez, são como as pedras do rio que o autor havia contraposto à corrente da bicicleta, de movimento contínuo e não episódico. Na Vertical (2016), mantém os elementos da cena íntegros em sua ambiguidade natural, relegando ao espectador a responsabilidade de determinar, ao seu gosto, as informações que conectam um acontecimento ao outro. De uma forma talvez menos coordenada, e definitivamente mais imprevisível, Guiraudie aproxima-se do corte violento de Pialat que prefere trabalhar a ruptura que coloca em destaque a mecânica concreta das relações, em oposição ao se caráter psicológico.

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Espaço

Além do estranhamento causado pela manipulação temporal, convém também sublinhar movimento semelhante operado nas dimensões mais concretas do espaço. Talvez a preferência pela representação de uma França não urbana seja resultado da aversão do diretor ao território da cidade, colocado aqui como uma espécie de purgatório, que serve somente como passagem e nunca como lugar privilegiado de permanência. As cidades sem nome de Na Vertical passam ao largo dos grandes acontecimentos e não servem de palco aos momentos significativos da jornada de Léo. O espaço é fortemente comprimido, uma espécie de confinamento que não é apenas simbólico. O urbano de Guiraudie é o claustro figurativo, sempre coberto, mantendo o individuo sob permanente domínio e controle social, mas é também o forro do apartamento, a ponte e o teto do carro, quase nunca o céu.

Durante pelo menos a metade do tempo, Na vertical é um filme feio. Seus espaços ordinários são contrapostos a locais de significação mais simbólica, representados pelas paisagens rurais do interior francês. Guiraudie parece ficar mais à vontade filmando as colinas amareladas pelo sol e o rio encoberto pela espessa neblina. Basta uma rápida pesquisa no google, para verificar que a maioria quase absoluta das thumbnails, sejam elas referentes à divulgação do filme ou não, são aquelas tomadas do lado de fora da urbe. É na natureza, principalmente no campo, que reside a força imagética do filme.

Corpo

A experiência de assistir ao último filme de Alain Guiraudie é radicalmente diferente entre aqueles que tiveram contato anterior com seus filmes e os que os veem pela primeira vez. Ao se valer de efeito semelhante ao descrito por Kuleshov, mas tomando o filme inteiro como unidade fundamental (ao invés de cada um de seus planos), o autor induz o espectador acostumado à sua obra a perceber, desde o primeiro contato entre os personagens, certa tensão sexual. Uma atmosfera ilusória se “confirma” na maior parte das vezes. É quase inevitável, conhecendo ao menos um ou dois dos trabalhos anteriores do diretor, não esperar com ansiedade pelo momento em que os personagens, por mais afetivamente distantes que estejam um do outro, sejam tomados pela necessidade do contato.

Ao contrário, por exemplo, da aproximação erótica delimitada por forças sociais externas aos personagens, representada no cinema de Lino Brocka (Manila – Nas Garras de Neon, (1975)), os homens do diretor francês parecem padecer do mesmo isolamento crônico experimentado pelas figuras construídas por Tsai Ming Liang (O rio, (1997)). Para Guiraudie, somente através da solidão é possível partir de outro lugar, livre do confinamento normativo. A discussão do conflito entre as duas formas de sexualidade, uma reprimida e outra não, é justamente o eixo que orienta a narrativa do filme O Velho Sonho Que Move (2001), onde o diretor coloca em contato dois homens com compreensões completamente distintas sobre seus corpos,que representam, cada um ao seu modo, duas visões antagônicas do mundo.

Vertical 3

Tomados como parâmetros, o diretor utiliza tanto a mise-en-scène quanto a natureza das relações dos personagens para modular sua narrativa entre um estilo ora naturalista ora artificial. Em seu universo essencialmente homo afetivo e quase exclusivamente masculino, existe uma alternância constante dos cenários, que variam entre uma estrutura realista impossível e outra surrealista possível. Se em O Rei da Fuga (2009), os bizarros contatos entre os personagens são emoldurados por um conjunto de ambientes ordinários, representados dentro de um registro realista, acontece exatamente o contrário em Um Estranho no Lago,  filme que, apesar da atmosfera onírica, desenvolve as relações interpessoais de forma orgânica e natural. Na Vertical exibe ambas as formas e parece brincar livremente com as possibilidades do estranhamento causado a partir da interação entre tais parâmetros. O filme acaba se revelando como um espaço de pura experimentação nesse sentido.

Parece-me importante que o diretor opte deliberadamente por um cinema que lide com a sexualidade masculina sem concessões, longe do território queer mais afirmativo de cineastas americanos como Gus Van Sant, Rose Troche e Todd Haynes. As dificuldades de Léo em manter sua vida no eixojá são, por si só, complexas o suficiente para que seja necessário encontrar ganchos narrativos que justifiquem qualquer traço de sua relação com seu próprio corpo. Não é a primeira vez que essa desterritorialização é feita no cinema, é claro, mas ao esticar as diferenças entre seus personagens, opostos em idade, condições materiais e psicológicas, Guiraudie reforça uma noção de afeto ainda mais radical e livre de quaisquer impeditivos sociais, mesmo que isso signifique abrir mão da ideia de amor e carinho. Tomando emprestado um exemplo mais distante para traçar um paralelo, é muito claro, hoje em dia, o problema na raiz do personagem de Sidney Poitier em Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967). Se a representação do homem negro ganhou ali alguma dignidade, ela veio atrelada a uma necessidade de justificativa cruel e desumanizante.

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A essa altura, suponho que Na Vertical seja um filme composto majoritariamente por relações de contraste, como um eletrocardiograma ou um gráfico de movimentação sísmica. Diferentemente do lirismo e da harmonia com a qual Naomi Kawasi geralmente introduz os elementos xamânicos em seus filmes, Alain Guiraudie prefere percorrer o caminho contrário. A cena em que Léo, por exemplo,tenta entrarem contato com as forças da natureza no interior de um bosque adquirem um viés cômico, obtido pelo abismo estranho que separa aquele momento de todo o restante do filme. De qualquer forma, todas essas deformações de tempo, espaço e corpo realizadas pelo diretor esbarram em algumas necessidades impostas pelo formato convencional, da grande jornada realizada pelo herói trágico em busca de uma resolução.

Na Vertical abre inúmeros canais de discussão, mas falha, porém, em fixar-se na memória como uma obra completa. O tecido narrativo que mantém as partes da jornada de Léo unidas é frágil e,na maior parte das vezes, desimportante. O esforço em propor um tipo de filme que avance a partir do contraste entre os pólos possui suas limitações. Ao final, não é possível definir se o vetor que representa a jornada de Léo aponta para sua ascensão ou queda, se essa trajetória vertical que dá nome ao filme e que culmina no encontro com os lobos, significa a transposição do personagem em direção ao céu ou o inferno.

Dunkirk (2017), de Christopher Nolan

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A guerra como uma moldura de ruídos

Douglas König de Oliveira

Num desses programas dominicais em que se fazem concursos de dança, um dos jurados analisava a performance dos participantes. Apesar de ter gostado da coreografia e do desempenho, ele observou que o número se constituía de bons momentos isolados, mas não trazia um encadeamento entre os diversos passos.  O que, em se tratando de dança, é um ponto negativo, pois a impressão fragmentada não permite a apreciação da dinâmica completa que se pretendeu expressar no movimento dos corpos. Talvez possamos relacionar essa ideia ao cinema.

O registro ficcional que o diretor Christopher Nolan faz da evacuação dos soldados britânicos em território francês, quando encurralados pelo exército alemão na Segunda Grande Guerra, começa seguindo um grupo pelas ruas do balneário de Dunquerque, até chegar ao palco principal do evento histórico retratado. A abertura, com o grupo de soldados fugindo do ataque ao se aproximar da área sitiada, logo dá lugar a uma das sequências em que o espectro do inimigo é amplificado pelo uso do som e da composição visual. O que poderia ser uma cena intensa em meio ao drama dos soldados, dá lugar a sequências ininterruptas de números dramáticos, geralmente carregados do uso extremo da trilha sonora – tantos os sons diegéticos de tiros e explosões caraterísticos da guerra, quanto a música monocórdia, ruidosa e grave da trilha de Hans Zimmer – e a estilização dos elementos da composição visual, visando uma simplicidade que se pretende crua. Incorporam-se a tal desenvolvimento outras duas linhas: as ações de um aviador que protege o cenário da evacuação, e movimento das embarcações civis, que se alinham ao esforço de resgate. Esses últimos, talvez os legítimos heróis do episódio histórico, dividem com os soldados (personagens mais facilmente relacionáveis ao enredo e mais habituados à situação de conflito) o espaço dramático. O caráter emocional se atenua, pois a pulverização dos protagonismos enfraquece a estória realmente inusitada e que exemplifica melhor o caráter de heroísmo atribuído ao esforço dos civis ingleses em Dunquerque.

O filme segue incrementando essas três frentes, ao modo clássico griffithiano, sem, contudo, introduzir algo que possa trazer novidade aos personagens durante o restante da projeção. A aposta no dado sensorial restringe o discurso cinematográfico a tomadas rigorosamente arquitetadas, por vezes repetitivas, apesar de competentes tecnicamente (como nas sequências de aviação). Estes segmentos são atravessados por dramas menores, tentando mover um tempo fílmico estagnado, como nos conflitos dentro do barco, os impasses do comando da marinha ou a busca frenética por sobrevivência do soldado que acompanhamos no início. Até mesmo um dispositivo de deslocamento temporal é acrescido para dar relevo ao enredo, que na maior parte do tempo se sustenta em situações dramáticas bem claras e objetivas, emolduradas por uma trilha sonora incessante.

Bodega Bay

A escolha em se basear na concentração e saturação de elementos já rendeu muitas obras-primas do cinema, como Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, e Deserto Vermelho (1964), de Michelangelo Antonioni, por exemplo. Mas ao escolher um episódio histórico e abordá-lo desta forma, Nolan, em Dunkirk (2017), parece privilegiar a forma, deixando em segundo plano os elementos que poderiam relacionar suas três narrativas principais de maneira coesa e complementar. Um diretor mais convencional como Steven Spielberg foi capaz de, em O Resgate do Soldado Ryan (1998), retratar situações de guerra de modo vigoroso, enquanto, ao mesmo tempo, conduzia um drama humano. O mesmo não se repete aqui. E talvez nem tenha sido a intenção. Por isso parece ainda mais estranho o desfecho ufanista e redentor, com a música mudando completamente de caráter, soando grandiloquente e emotiva, para emoldurar a síntese dos destinos de cada protagonista.

O impasse entre ser um retrato dos esforços de guerra ou ser um compêndio de possibilidades técnicas e formais torna clara a incapacidade de seu realizador para tornar os dois processos simultâneos, malogrando a possibilidade de alcançar um tom uniforme. Se a incursão foi no gênero do filme de guerra, ele não elabora os tempos fortes e a dinâmica que fazem funcionar uma narrativa interessante. Se pretende experimentar com a imersão nas cenas e sons, o recado já é dado nos primeiros minutos, e o que segue se arrasta em monótonas repetições. Essa indefinição priva o enredo da possibilidade de retratar a força das ações envolvidas no extremo da guerra, que envolvem vida e morte e necessitam da sutileza dos momentos de desordem e silêncio, não apenas o musical, mas de quando a existência dos personagens não emite mais atestados de sentido com fácil apelo. Apenas na última e breve tomada o som cessa, e o soldado aparece tomado de alegria e conforto. Sutileza que faltou ao restante, orquestrado de forma rígida e pesada, onde pouco coube a imprecisão do que é humano.

Deixa na Régua (2017), de Emílio Domingos

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Close no estilo, ouvidos atentos

João Campos

Deixa na Régua (2016), novo filme de Emílio Domingos, propõe uma imersão etnográfica em três salões de barbeiros na periferia do Rio de Janeiro: Belo Visual (Vila da Penha), Ed (Quintinho) e Deivão (Piabetá). A potência estética e política dessa obra advém, sobretudo, do modo como inscreve a oralidade de jovens da periferia do RJ na mise-en-scène, o que nos solicita uma escuta aguçada, treinada a buscar os sentidos e as vibrações plásticas do comum, ordinário ou cotidiano.

O filme busca nos re-apresentar um contexto de diálogo corriqueiro e, muitas vezes, íntimo. Esse processo se dá através de um gesto observacional que se assemelha à proposta rouchiana do Cinema Direto. No salão, Emílio Domingos encontra uma situação propícia à espera e à escuta. Porém, esse recurso poderia ter saído pela culatra – como disse Emílio Domingos em sessão comentada do filme no Cine 104. A polifonia do documentário, fruto da profusão de vozes nesses salões, poderia ter sido o pesadelo do cineasta, pois a simultaneidade de diferentes conversas e brincadeiras impossibilitaria a escuta e compreensão do que é dito ali. Contudo, a rigorosa pesquisa do diretor o colocou em relação franca e direta com os barbeiros, que abraçaram seu projeto e conseguiram, cada qual em seu salão, orquestrar as conversas, permitindo que o filme cumprisse seu objetivo: dar forma às histórias, desejos, medos, memórias, piadas, gestos e movimentos de jovens da periferia carioca.

Nessa obra, os salões funcionam como um espaço de sociabilidade e preparação, lugar em que diversos jovens se reúnem para trocar ideias e dar um retoque no visual – este é o momento dos bastidores dos bailes e duelos de A Batalha do Passinho (2012). Em contraste com este, a mise-en-scène de Deixa na Régua é composta por uma multiplicidade de conversas justapostas, sem entrevistas diretas, o que insere os relatos dos personagens num fluxo narrativo.Os jovens filmados tomam a palavra para contar, escutar e, principalmente, nos fazer escutar. Aqui se encontra a política do filme, que elege a observação como técnica plástica e etnográfica. Esse processo coloca o documentarista na posição de um mediador entre mundos.

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Se o tempo de A Batalha do Passinho é o da competição e vibração dos corpos animados pela dança, Deixa na régua se constrói numa temporalidade da espera, dos bastidores, do cotidiano e prosaico. Enquadrados obliquamente através do espelho dos barbeiros, jovens silenciados e invisibilizados elaboram um discurso e uma estética singulares. Para além do crime e da violência generalizada, Emílio Domingos procura registrar um contexto de criação e troca. Na fala dos jovens, podemos destacar a valorização da família e da amizade, os amores frustrados, casos de rolês e, mesmo que de maneira mais tímida, tragédias relacionadas à vida no crime.

Deixa na régua utiliza as características culturais e espaciais do salão para estruturar a sua forma, reinventando-as no cinema. Isso diz respeito, sobretudo, aos enquadramentos que emulam o efeito do espelho na troca de olhares entre os barbeiros e clientes – daí a obliquidade dos planos –, e à inscrição etnográfica das conversas de salão. A relação entre barbeiro e cliente, rica em diálogos, é mostrada através do espelho. O espectador é, assim, colocado na posição de cliente fantasma a observar o ordinário. Não há necessidade de entrevistas, o fluxo de narrativas existe ali por si só e, com o mínimo de interferências, as histórias são contadas.

Nessa obra, o social dá pistas para a compreensão da mise-en-scène. A pesquisa etnográfica enseja a composição plástica e narrativa de um documentário que, tendo como protagonistas jovens moradores das favelas cariocas, excluídos simbólica e materialmente dos centros do mundo globalizado, produz cenas que nos faltam: convertem os que são considerados autômatos violentos em pessoas inventivas, criadoras não só de uma estética, mas de uma cultura, uma rede de códigos, discursos, objetos e gestos que, no cinema, se apresentam como imagens de uma resiliência singular e não menos radical. Deslocando “o lugar olhado das coisas”[1], Deixa na Régua torna visível uma invisibilidade, demonstrando a potência e a beleza de práticas e pessoas que, por muitos, são reduzidos a “animais barulhentos”[2].

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[1]DAWSEY, John. Turner, Benjamin e Antropologia da Performance: o lugar olhado (e ouvido) das coisas. Disponível em: http://revistas.ufpr.br/campos/article/view/7322

[2]GUIMARÃES, César. O que é uma comunidade de cinema?.Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/viewFile/1955/2026

Corra! (2017), de Jordan Peele

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Do Lugar Comum ao Lugar Profundo

Daniel Rodriguez

Uma das características mais interessantes do horror enquanto gênero cinematográfico é sua responsividade frente ao cenário sócio-político. Tal característica é particularmente notável nos Estados Unidos, especialmente se observarmos os períodos que compreendem do macartismo ao governo de Ronald Reagan: nestes, diversas obras foram marcadas por críticas ao consumismo, elogios à cultura jovem, representações da paranoia comunista e do surgimento da epidemia de AIDS, por exemplo. [1]

Em seu Corra! (2017), Jordan Peele busca representar, utilizando-se da linguagem do horror, um dos principais entraves sociais de sua época (e de épocas passadas): o racismo nos Estados Unidos. Em uma época polarizada, na qual florescem movimentos sociais como Black Lives Matter, Peele intercedeu de maneira cirúrgica, preenchendo uma demanda urgente. O resultado foi descomunal, com o longa tendo sido abraçado em igual medida por crítica e público, e chegando a números de bilheteria que o colocaram na história: trata-se do primeiro filme de estreia de um cineasta negro a ultrapassar a marca de arrecadação de cem milhões de dólares.

Durante as primeiras sequências do longa, um homem negro caminha descompromissado por uma rua deserta num típico subúrbio burguês americano, repleto de casas imensas com jardins e cercas brancas – e moradores igualmente brancos, muito provavelmente. Um único carro transita pela rua de forma suspeita, provocando ansiedade no caminhante. Esse é eventualmente sequestrado por um sujeito mascarado. À primeira vista, Peele joga com a questão do preconceito racial, colocando em cena um negro amedrontado por estar andando sozinho em um bairro de classe média branca. Para além disso, é possível perceber uma das influências estéticas do diretor-roteirista, que é o cinema de John Carpenter (sobretudo o filme Halloween (1978)). O pequeno prólogo ainda conta com uma trilha instrumental distorcida que remete ao cinema de Alfred Hitchcock e às composições de Bernard Herrman.

Anuncia-se assim a predileção de Peele pela estética do terror dos anos 60 e 70 em seu longa de estreia. Daí em diante, seguem-se três momentos bem distintos, de apresentação, desconfiança e revelação, que transcorrem de maneira bem linear e simples.

Durante a apresentação dos personagens e do enredo que se desvelará, os enquadramentos são, em sua maioria, fechados, assim como as locações – ora os personagens estão dentro de um apartamento pequeno, ora dentro do carro. Tal escolha parece refletir tanto o aprisionamento simbólico do protagonista (um negro em um país racista) quanto a apreensão do mesmo em sair de seu espaço para conhecer os pais brancos de sua namorada também branca. Aqui, o título original, “Get Out”, parece funcionar em um âmbito mais metafórico.

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A primeira referência direta ao racismo acontece no trajeto percorrido pelo casal rumo ao interior, onde vivem os pais da mulher. O atropelamento de um cervo, evento que, posteriormente, ilustrará um dilema psicológico do personagem central, leva a um encontro com a polícia local. Esse momento é mais um aceno que Corra! faz ao horror, com os tradicionais encontros à beira de estrada no interior, geralmente servindo de aviso para o que está por vir.

Aqui, o oficial interpela Chris, pedindo seus documentos, apesar do mesmo não estar dirigindo na hora do acidente. Sua namorada toma aquilo como atitude racista e questiona a situação. Trata-se da primeira manifestação de um tropo recorrente ao longo do filme, que consiste em pessoas brancas manifestando seus preconceitos veladamente, enquanto o protagonista reage de forma passiva e a namorada se mostra indignada. Durante boa parte da projeção, essa postura dos personagens reflete um comportamento social, tanto de quem pratica, quanto de quem sofre e se indigna.

O encontro de Chris com os sogros brancos e ricos é pontuado por interjeições tipicamente utilizadas por negros, como “my man” e comentários afirmativos como “eu votaria em Obama uma terceira vez se pudesse”, em uma aparente tentativa de refutar qualquer tipo de racismo próprio, mas que tem resultado oposto. É interessante notarmos que, logo no primeiro dia de estadia de Chris naquela casa, antes da chegada de vários outros personagens para o encontro anual que ali será realizado, o roteiro expõe vários elementos chave para a compreensão do mistério que se revela no terceiro ato. Os diálogos que, à priori, aparentam ser uma série de digressões, são, em verdade, instigações ao espectador, muito semelhantes ao que percebemos nos roteiros de M. Night Shyamalan.

Esteticamente, Peele faz referências ao cinema que parece admirar e que busca reproduzir. Não obstante, há pouco de extraordinário em seus enquadramentos e composições. Ao fim da sequência anteriormente citada, logo no início do segundo ato, quando a paranoia começa a se instalar, a voz artística do autor se faz ouvida em um momento de beleza poética único. Em uma sessão de hipnose forçada, Chris se vê navegando entre diferentes níveis de consciência. Um dilema que remonta à infância do mesmo vem à tona e ele é conduzidoa lugar profundo, perdido nos confins de sua mente. O plano esplendoroso que se segue retrata o personagem em queda, dentro de um ambiente escuro e etéreo, com o mundo exterior reduzido a uma pequena tela. Vem-me à mente a cena de Trainspotting (1996) na qual Renton, em uma aparente overdose de heroína, afunda no chão do apartamento e passa a perceber o mundo como um mero espectador por detrás dos próprios olhos. Há um contorno muito mais fantástico na representação de Peele, que torna a composição ainda mais marcante.

Os personagens que aparecem gradativamente após esse encontro repetem o mesmo discurso racista velado, de forma um tanto quanto reiterativa. O resultado alcançado por esse vício do texto cai no campo da obviedade, deixando de se beneficiar das sutilezas, porém alcançando uma provocação visceral. Os ricaços brancos dão a impressão de serem falsos humanos. Suas interações e as mise-en-scènes em que participam parecem dialogar com clássicos da ficção científica como Vampiros de Almas (1956) e Invasores de Corpos (1978).

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Tanto o mote racista quanto o suspense anunciado são ressaltados também por outro personagem secundário, também negro. Na posição de alívio cômico, as aparições do amigo de Chris, Rod Williams, servem para dar vazão à tensão e denunciar, pelo artifício do humor, o absurdo da situação em que o outro se encontra.

No último ato, revela-se a real intenção da família da namorada, espécie de eugenistas fantasiosos e extremistas. Boa parte da ambientação e os vídeos institucionais sobre o projeto Coagula remetem aos anos 60 e 70 e a experimentos científicos realizados em países como Rússia e Estados Unidos, nos moldes do programa MK ULTRA. O que se segue é uma transição do campo do suspense para o terror, marcado pela transição, por parte do personagem central, de uma posição passiva para uma ativa.

A resolução do caso ainda joga com expectativas do público, invertendo valores de forma inteligente e divertida, semelhante ao que ocorre no prólogo. A título de exemplo, na sequência em que Chris se liberta de seus captores, ele utiliza algodão que retira da poltrona em que está amarrado, para então tapar os ouvidos, protegendo-se do controle hipnótico. O ato é uma alusão bem sutil ao trabalho de negros nas plantações de algodão, um dos principais palcos da escravidão naquele país. Em inglês, tanto a ação de colher algodão como pegá-lo na poltrona pode ser descrito como “picking cotton”.

Muito se falou de Corra! e a questão do racismo e da crítica social no horror, nos meses que seguiram seu lançamento nos Estados Unidos. Imediatamente me recordei do cinema de George Romero, ou mais especificamente de seu filme de estreia, A Noite dos Mortos Vivos (1968), peça que revolucionou o gênero e marcou o cinema de sua época por, entre outras coisas, criticar de modo pungente o preconceito racial, em um período no qual o tema era ainda mais sensível. Romero, por sua vez, apresentou um retrato muito mais taciturno e pessimista sobre a questão, ao passo que Peele buscou pintar um quadro mais otimista.

Com sua estreia, Peele faz não apenas um filme, mas também uma declaração aberta sobre os absurdos do racismo, se utilizando da linguagem estabelecida pelo cinema de horror e suspense, com diversos acenos para as fontes das quais parece beber.

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[1] Importante salientar que tal responsividade não se limita ao horror americano. É facilmente observável também no cinema japonês, por exemplo, que tanto retratou o medo do avanço tecnológico do país, ou no cinema underground alemão surgido nos anos 80, que refutou todo e qualquer pudor assumido pelo país após a guerra.

 

 

A Cidade Onde Envelheço (2016), de Marília Rocha

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O silenciar da juventude

Maria Trika

 “Os picos das montanhas cochilam;

vales, penhascos e cavernas silenciam.”

(Álcman)

O último longa de Marília Rocha, A Cidade Onde Envelheço (2016), uma coprodução entre Brasil e Portugal, mistura traços de cinema documental e ficcional para representar a relação de amizade entre duas portuguesas que moram em Belo Horizonte.

O processo do filme, realizado a partir de pesquisas coletivas e improvisações, foi baseado em uma relação de confiança. De acordo com relatos das atrizes, elas estudaram um roteiro, mas, durante as gravações, compuseram cenas a partir de conversas livres e sensações suscitadas no momento. A narrativa também estabelece pontos de conexão com o documentário: ao tratar o contexto entre 2010/2012 (momento em que uma grande quantidade de jovens portugueses imigrou para o Brasil), a experiência das protagonistas não se distancia da vivência real das atrizes. Francisca Manuel também morou por um tempo em BH, inclusive, no apartamento que serviu de set para o filme, e Elizabete Francisca, que interpreta Teresa, veio pela primeira vez ao Brasil para a gravação do longa. Inevitavelmente, este procedimento está refletido na forma. A câmera é extremamente afetuosa, sabe exatamente o momento de se aproximar – a ponto de quase se fundir ao corpo das personagens nas cenas de dança –, ou em que deve dar espaço à descoberta, como quando Teresa encontra um lugar novo e a assistimos de longe. Além disso, o filme mantém um olhar estrangeiro sobre o espaço. Algo que me permitiu a experiência de ver a cidade em que habito sem reconhecê-la como minha.

O filme se revela aos poucos, exige que nos aproximemos. Na primeira cena, duas pessoas carregam um colchão em uma rua qualquer; elas caminham até chegar num pequeno, simples e íntimo apartamento. Poucas palavras são trocadas, mas suficientes para anunciar a vinda de alguém que se hospedará ali. Chega Teresa. Ela se estabelece na casa de Francisca, que pouco sabia do motivo e duração da repentina visita. De princípio, ambas estabelecem uma relação estranha, aparentemente íntima, mas, ao mesmo tempo, distante – como acontece quando começamos a morar em um lugar novo. Eventualmente, porém, descobrimos se tratar de um reencontro: as duas eram amigas durante a infância/adolescência. Com o tempo e a saudades de casa aumentando, elas vão se aproximando, começam a compartilhar mais seus sentimentos e espaços, permitindo que uma amizade acolhedora se estabeleça.

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Acompanhamos Francisca e seus rituais diários enquanto Teresa começa a se relacionar com a cidade: vai ao mercado, passa por um bar onde conhece algumas pessoas, passeia pelas ruas. Como mencionado anteriormente, a câmera a acompanha respeitando o momento da personagem, mantendo-se distante. O ritmo do filme vai se estabelecendo sutilmente, de forma a nos habituarmos a ele. Mesmo com cotidianos bem autônomos, percebemos que as personagens compartilham um espaço em comum, aquele em que dividem a descoberta de uma cidade, a solidão, a distância da terra natal e a saudade do mar.

Esse cotidiano também permite um maior acesso às personalidades delas, que começam a se evidenciar com mais clareza: Teresa tem gestos inquietos, enquanto Francisca é leve e precisa. Teresa tende a se isentar das obrigações, responsabilidades e até mesmo de uma rotina mais convencional; demonstra ser mais perdida e indecisa, ao mesmo tempo em que percebemos nela uma grande necessidade de manter uma base sólida, um ponto fixo, seja a família, um lugar ou alguém. Já Francisca é mais decidida, exigente e, acima de tudo autocentrada –  quando a câmera foca no olhar dela em silêncio, a presença é tão única e forte que parece nos tocar. E mesmo apresentando rigidez, demonstra não necessitar de algo estável, fixo, duradouro, consistente. Talvez por isso, na cena em que Francisca anuncia sua repentina decisão de voltar para Portugal, e Teresa, bem chateada, pergunta se tem certeza de que é isso que quer, Francisca a olha e apenas diz: “eu não tenho certeza de nada”.

A angústia, força e beleza dessa fala me lembrou algo que recentemente comecei a conhecer: a juventude. Momento posterior à efervescência caótica adolescente, em que, de forma gradativa, começamos a sentir o peso do tempo, das responsabilidades e a efemeridade das coisas. Deparamo-nos com abismos (que já nos cercavam) e começamos a ter consciência do envelhecer – talvez por este motivo, tamanha seja a importância de onde estamos enquanto acontece. A vida vai se tornando mais palpável e, assim, o silêncio vai se tornando mais presente. Mas por quê?

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Talvez porque o silêncio seja a única resposta possível à angústia e, em certos momentos, à insatisfação que percebemos ter diante da vida e do mundo (por acontecerem independentemente de nós). Ou então, por  nos apresentar como a melhor forma de reagirmos diante do passar do tempo, simplesmente por ser a linguagem que alcança a solidão e a incerteza sobre as consequências de nossas escolhas. Pelo fato de nunca sabemos se é melhor ir ou ficar, assim como o dilema que vivem as personagens.

O filme nos permite apenas a dúvida: se ficamos ou não, o que “curiosamente coincide com um drama tipicamente belo-horizontino”, como mesmo disse a diretora em uma entrevista[1].  No fim, Francisca vai e Teresa decide ficar. Em contraponto ao silêncio das personagens, que se torna ainda mais forte com o desfecho, a única despedida possível é a música Soluços, de Jards Macalé.

Mesmo quem vive, esquece que viver é isso: abraçar a insegurança, abrir-se para o novo, despedir-se e, ainda que com olhos vermelhos e irritados, seguir.

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[1] https://www.cartacapital.com.br/cultura/a-cidade-onde-envelheco-e-o-dilema-entre-ficar-ou-partir