Cabeça de Nêgo (2019), de Déo Cardoso

Das imagens de controle

Larissa Muniz

Cabeça de Nêgo (de Déo Cardoso, 2019) foi um filme atípico na Mostra Aurora, da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, provocando discussões sobre forma e conteúdo, militância e cinema. No filme, esses dois pólos se misturam, se confundem e, talvez, se separam demais. Por mais que tenha momentos inventivos, experimentais e sutis, especialmente na relação entre a narrativa ficcional e o registro documental, o longa é majoritariamente focado em passar uma mensagem direta, por meio de uma linguagem fechada demais, da narrativa clássica – que deseja controlar a emoção em cada instante do filme. 

Inicialmente, a obra se constrói por meio de códigos tipificados dessa narrativa hegemônica, seguindo uma jornada do herói que se concretiza coletivamente. O herói, nesse caso, é o jovem Saulo, estudante negro que se posiciona a partir de um caso de racismo em sua escola, inspirado pela leitura dos Panteras Negras. O filme não é sutil em sua relação/comparação do jovem como uma espécie de Angela Davis, passando por sua jornada de conscientização, mobilização pública, greve e revolta e, por fim, aprisionamento. Portanto, mesmo se tratando de códigos que dialogam com o clássico, nos deparamos com sujeitos e histórias outras. Uma substituição que, eu diria, pode ser efetiva apenas num nível de formação, mas não num nível de ruptura completa com a herança de uma narrativa ocidental e branca. 

O maior problema disso, talvez, seja a pouca possibilidade de leituras e aberturas no filme. É tudo muito fechado, os signos muito dados, o fluxo tem apenas um caminho a seguir. Os vilões são os brancos, tipificados. A instituição é inteiramente má. O movimento estudantil é coeso demais, sem quase nenhuma contradição e conflito (exceto por um grupo de traficantes também estereotipado). O protagonista não tem qualquer defeito. 

O filme poderia, até, utilizar desses códigos tão conhecidos para subvertê-los, mas decide apostar em representações que não gerem dúvida acerca do lado “certo” da luta. Compreensível, mas não tão arriscado e propositivo, especialmente num regime que cerca pelo enquadramento, dando pouco espaço à invenção e subjetividade das personagens (e das espectatorialidades que as assistem). 

O menino Saulo é um tipo que procura representar muitos (ou todos) jovens negros. E aí jaz o perigo das imagens de controle subvertidas se transformarem em imagens de controle ilusórias, que apenas reproduzem códigos e estereótipos, em extrema dificuldade de dialogar para além dos limites do quadro. São imagens que funcionam, sim, dentro de um determinado espectro de discussão, mas que raramente se preocupam em estender o debate para chegar à raiz do problema – muito mais difusa e complexa que uma narrativa fechada demais poderia dar conta. 

O mais interessante do filme que, aí sim, mantém um diálogo mais flexível com o contemporâneo, é o modo como ele convoca as imagens de controle do sistema. A câmera que vigia os estudantes passa a ser a câmera que denuncia a precariedade da escola pública. Câmera essa tomada pelo jovem rebelde, filmada em vertical, num diálogo direto com as “lives” do YouTube e Instagram, que precisam comunicar o recado de forma rápida e direta.

Ao final, o filme assume isso de tal modo que acaba se desviando da narrativa linear e tão bem costurada que decide seguir: o ficcional é substituído pelos registros reais (esses, sim, ruidosos e falhos) de repressões policiais a manifestações estudantis. A rua ficcional é apenas material para chegar, enfim, à denúncia da violência. 

Cabeça de Nêgo é um filme que cumpre exatamente o que promete entregar. A narrativa, que começa mais juvenil, se torna cada vez mais intensa a partir da resistência desse jovem, até explodir numa cena excitante, que move qualquer espectatorialidade a torcer junto pelo movimento negro estudantil. Revolta, explosão, violência policial, injustiça, tudo se escancara no final, como já era de se esperar desde o início. Daí, me pergunto: depois dessas imagens de violência, que extravasam o medo e a vontade de revolta, o que permanece? 

Por essa incerteza acerca das decisões do filme, fico com vontade de vê-lo se aventurar mais por uma tela instável do celular, da câmera que filma para denunciar e rebelar. É seu caráter instantâneo e falho que garante sua força. Desse modo, quem sabe, a narrativa ficaria mais difusa e menos certeira, mais instável e menos calculada – daí, quem sabe, a jornada do herói se transformaria de tal modo que a experiência de um movimento estudantil negro extravasasse na tela, para além dos limites do quadro, e para além de noções pré-concebidas da violência e da própria narrativa.

Natureza Morta (2019), de Clarissa Ramalho

Pele fina sobre a carne

Thomas Lopes Whyte

Ambientado no século XIX, o filme de Clarissa Ramalho (seu terceiro longa a competir em Tiradentes), baseia-se no livro “A Carne” (1988), de Júlio Ribeiro. Recebido sob forte censura à época, o romance escandalizou parte da sociedade por abordar, de forma até então inédita, a emancipação sexual de Lenita, uma jovem de origens aristocráticas.

Mesmo que tenha elementos de um cinema experimental, o longa talvez seja, entre todos os concorrentes da mostra Aurora, o que mais tenha se proposto a uma narrativa do controle. Tudo parece meticuloso demais, oficial demais. Das danças coreografadas pelo Grupo Corpo, ao tom trovadoresco de uma Helena Inez narradora, o filme parece obcecado pela forma-sentido de seu próprio universo simbólico.

É quase como se as escolhas adotadas fossem feitas para abordar o tema a contrapelo. O frêmito do orgasmo e o caos do sexo são tratados à distância, e precisam, na maior parte dos casos, do amparo oferecido pela redundância textual. Como se Clarissa, de certa forma, abrisse mão do próprio filme em benefício da obra literária do qual ele se origina.

Cada uma das cenas, pensadas a partir de seu efeito compositivo, evoca aspectos da psique da protagonista, que luta para se achar no mundo. A estrutura atomizada que surge daí, e que tem na beleza estática do quadro a sua força, possui lá seus bons momentos. Encravados no corpo narrativo, é possível encontrar partículas de bastante força e beleza.

Entretanto, ainda que um ou outro dispositivo cinematográfico vá em direções mais propositivas, o filme, no fim das contas, parece um decalque de sua obra mãe. O longa dá a impressão de ter medo de sair das sombras do próprio título. A natureza morta passa a não estar somente nos aspectos sociológicos do sufocante século XIX. Essa natureza passa a constituir também a matéria, ainda mais inerte, da própria obra.

Mascarados (2020), de Marcela Borela e Henrique Borela

O mundo é dois, e ele não se divide

Thomas Lopes Whyte

Ao falar sobre a motivação por trás do curta A saída dos operários da fábrica (1995), Harun Farocki relata a necessidade de evidenciar o caráter cindido existente na obra seminal dos irmãos Lumière. O portão que dá acesso ao pátio externo é o exato limite que separa a linha de produção e o chão de fábrica. É como se, por trás desse umbral, houvesse apenas um limbo de memórias eclipsadas pela expressividade de imagens de uma vida mais rica em possibilidades “lá fora”. O trabalho, em sua forma-cinema, é quase sempre oculto, e sua ausência em cena ao longo da história machuca, porque se em alguma medida a tela é o espelho do real, precisamos admitir que o trabalho do lado cá é também um grande vazio, uma atividade que encurta vidas.

Marcela Borela e Henrique Borela fazem justamente o contrário e montam o esqueleto de seu filme, a partir de uma dualidade, que tem no trabalho-festa sua principal força motriz. Filmado em Pirenópolis, interior de Goiás, durante o período da tradicional festa do divino, o longa relata a vida de quatro trabalhadores jovens de uma pedreira. E retratar a vida aqui é principalmente ceder espaço à sua parte mais oca, o trabalho alienante. Marcos, Marciley, Vinicius e Capivara dividem entre si uma rotina de labuta precária, sem garantias, sem segurança e sem nenhuma satisfação pessoal.

A pedreira, mais do que um lugar para estabelecer referências de roteiro, e/ou ancorar aspectos de construção dos personagens, é ela mesma uma das protagonistas. Mãos, pés, máquinas e pedras se misturam para dar forma ao cenário desolador composto por um conjunto emaranhado de vidas em suspensão, que são preenchidas por um borrão interminável de horas indistinguíveis. As explosões que revolvem a rocha bruta são também um lembrete de que a montanha, sepulcro de homens vivos, possui um estômago barulhento e faminto.

Nas cenas que envolvem o trabalho não há, mesmo nos planos detalhe, um momento em que os quadros filmados isolem os operários da aridez ao redor. A profundidade de campo ampliada pela fotografia, que define tudo a todo momento, nos dá sempre a dimensão concreta da estreiteza daquele buraco encalacrado na montanha. O barracão de descanso é ele mesmo um prolongamento precário do mesmo material rochoso do entorno, e assemelha-se à boca de um Golem prestes a mastigar os quatro corpos inertes e constantemente cobertos de pó.

Os personagens, cada qual a seu modo, parecem se equilibrar na beira de um abismo. A revolta latente, e comum a todos os quatro, transfigura-se em medo que os petrifica.

Com o término de um contrato que nunca existiu, Marcos, o trabalhador mais antigo, é quem tem as bases de sua vida solapadas com maior violência. Sem o estofo insosso das horas passadas a fio no martelar da rocha, o que resta é muito pouco. A consciência desencadeada pela situação de desemprego escancara não só a preocupação pragmática com o futuro incerto, mas também abre um perigoso abismo em direção ao seu próprio passado. Visto agora a partir da perspectiva de uma “liberdade” compulsória, o personagem constata que atrás de si só lhe resta o vazio, e diz: “Trabalhei lá por 13 anos, tudo perdido…”.

Se por um lado, o ritmo desse território de semi-vida é o monótono talhar das lajes, por outro, o ruído polifônico da festa do divino, é a única e derradeira possibilidade de emancipação. Ao recusar o controle da prefeitura, que sugere um cadastro dos mascarados que tomam as ruas de Pirenópolis durante a folia, os quatro personagens rechaçam a colonização final de seus corpos. A máscara, que permite ao operário ser rei, bobo, duque, filantropo ou ladrão, é o artificio mágico-simbólico que opera o vai-e-vem da narrativa dos Borela. Os corpos, desmecanizados pelo anonimato, singram pelas ruas do prazer e do desperdício, fora da lógica que submete suas ações a um punhado de trocas mercantis.

Fotografados dessa vez, sob uma luz de aspecto impreciso e movimentos de câmera mais vacilantes, os quatro colegas passam por uma mudança de representação que vai do sublime ao épico. Tomados agora como sujeitos e centro propagadores de ação, é ao redor do mesmo Marcos que a potência da festa também revela sua face mais extrema, a do sexo.

O ponto de ruptura, quando finalmente os dois universos criados pelos diretores passam a integrar um único e poderoso fluxo, acontece quando Vinicius,em um acesso de fúria, sai em disparada para um acerto de contas. É como se a fina membrana entre esses dois territórios, que compartimentaliza a existência, se rompesse. E não parece coincidência que justamente o corpo negro do protagonista, atravessado pela violência histórica e ancestral, seja o único capaz de dar início ao mergulho final e vertiginoso que antecede o momento da morte. E, assim como o beijo de Marcos, a investida final de Vinicius é feita às claras, sem máscara.

Pão e Gente (2020), de Renan Rovida

Sobre o desgaste

Larissa Muniz

Até quando, ou até que ponto, o texto nos toca?

Quando Pão e Gente (Renan Rovida, 2020) se inicia dirigindo-se à plateia com “Vocês que acabaram de comer”, isso me faz crer que estou diante de um filme de atrito, que confronta diretamente a espectatorialidade e o fazer fílmico num determinado espaço social. Ao invés disso, me deparo com duros textos dramáticos misturados a performances desgastadas sobre a miséria no Brasil, sem qualquer vestígio de miséria na própria imagem. Pobreza, desemprego e desigualdade social são colocadas em tela com certa romantização ingênua e perigosa.

Entre paisagens e palavras bem pronunciadas demais, ouço discursos que já ouvi antes, de alguma forma, mesmo não conhecendo muito de Brecht. É bonito. É forte. Mas não me toca. Há um abismo gigante entre o que é dito e a forma como é interpretado, a força das palavras e a estrutura fílmica fechada demais. Num preto e branco chapado, nas atuações decoradas e na imobilidade da câmera, as palavras quase não têm nenhum impacto, ressoando mais como um desejo de encontrar um tipo profundo e essencialista do papel do ator e da atriz e menos como uma conexão com o texto que se lê (e não parece se atualizar). Principalmente, as imagens que se fazem com essas palavras são tão distantes quanto seus pronunciamentos, excessivamente limpas e estáveis.

Me soa como um fracasso já em sua proposta, adaptando uma obra europeia, porque ela caberia, sim, nos padrões brasileiros, mas de forma tão intrinsecamente estrangeira que não se reconhece ali qualquer coisa de nosso – seja lá o que isso significa.

As personagens são brancas demais para o contexto brasileiro, e se torna bem difícil se relacionar com as representações e o texto. O final, especialmente, parece fazer um movimento em direção à abertura da obra para além daquele universo hermético e saturado, que acaba tornando-se tímido demais. Quando, de repente, as imagens de atores e atrizes se transformam em imagens aparentemente documentais de “verdadeiros” trabalhadores, o filme tenta dar uma dobra sobre si mesmo. No entanto, o momento é tão breve e a relação construída é tão superficial que ressalta apenas uma tentativa de autocrítica sem um impulso substancial para mudança. É mais um arranhar para dizer que fez e menos uma fincada (que, a meu ver, seria necessária quando tratamos de tamanho abismo entre representação e representatividade).

Canto dos Ossos (2020), de Jorge Polo e Petrus de Bairros

As monstras amam mais

Larissa Muniz

Ela tinha que continuar. Em meio à mata escura e o labirinto de uma juventude em eterna suspensão, monstras sentem pulsar na pele a estranheza de ser carne. Não só carne, mas carnes desviantes – pretas, femininas, bichas, trans. Corpos que carregam em si uma herança trágica e cruel de um mundo que prefere defini-los (e assim matá-los) a tentar entendê-los.

Nisso, entra a palavra. Nos primeiros frames de Canto de Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020), vemos um espectro de luz que ilumina fragmentos de um livro, ao som macabro do oceano. Essa imagem retorna ao longo de todo o filme, em diferentes partes desse mesmo livro, e é nela que parece se concretizar uma busca pela palavra e pela história. Não à toa, o livro não está totalmente exposto à luz. Não à toa, não temos tempo de ler seus fragmentos por completo. Captamos uma ou outra palavra que some tão rapidamente quanto aparece – demônios, sombras, arma. Posso inventar ainda outras: pulsão, escuro, danação, profanação. A luz, ou o filme, ou as personagens, buscam na linguagem (que a princípio não as cabe) uma forma de tenebrosa apropriação. É assim que podem, e conseguem, existir.

Elas, enquanto monstras na noite, quebradas e esquecidas, com sede de viver, mas ânsia pelo mistério representado pela morte, não podem eliminar a palavra que as cerca e, consequentemente, o mundo que as oprime. No entanto, podem, sim, agarrar nas pequenas brechas formadas pela obscuridade, um significado outro que permite a expansão (ou expansões). De sentidos, sensações, toques, cognições. É assim que elas definem o que é obsceno, em detrimento de serem definidas por uma suposta obscenidade.

É o olhar-abismo, como diz a voz narradora – que não sabemos se é personagem, ou uma observadora. Ela pode ser tanto a adolescente que devaneia para fugir do tédio cotidiano, quanto uma monstra que tudo observa para guardar, suprir as faltas, eternizar suas histórias e suas pequenas e imensas fugas do ordinário (que envolvem tanto fumar um baseado na praia quanto morder pescoços alheios). O ordinário, esse sim, é sujo e obsceno, representado pelas figuras pútridas da múmia seca que tudo comanda e os homens brancos que a obedecem.

Em Canto dos Ossos, as monstras não matam. Elas sugam uma certa vibração, um tesão pelo toque, pelo úmido, os diversos fluidos que o corpo humano produz e emana. Elas gozam e suam para sobreviver num sentido existencial, e não físico. Com isso, as vampiras podem decepcionar as espectadoras que esperam a morte, a caçada infinita que ameaça um fim violento a todo instante. Pelo contrário, as monstras aqui expressam um certo desejo pela ideia do terror. Ele está muito presente de forma física, no sangue, na violência, na obscuridade, no tenebroso, nas unhas que crescem e na mordida que rasga. No entanto, todas essas ideias que representariam o inimigo na linguagem “clássica” do terror, aqui são subvertidas para uma certa pulsão pela vida.

As monstras precisam dessa pulsão, essa vibração da troca, de tocar um outro corpo monstro, para sobreviver. Ao morder, elas tocam nas entranhas de uma carne exterior a elas, acessando de forma literalmente visceral a alteridade da outra. E por isso, no reino monstra, a única possibilidade de sobrevivência é continuar, é segurar o olhar conservador feio para devolvê-lo com paixão, raiva e vibração. É, assim, acima de tudo, uma troca, um olhar-abismo que olha para a outra para se ver melhor, num espelhamento divino-infernal que consegue enxergar de verdade a existência conjunta de outra pessoa que te toca. Até você sangrar e se diluir num corpo que existe fora do seu. Não à toa, essas monstras vampiras não seguem o padrão do vampiro branco elitista velho. São corpos jovens, periféricos e transviantes, que vivem tanto o tédio quanto o tesão, tanto o êxtase do compartilhamento máximo, que está na troca de fluidos e na sexualidade, quanto o desencanto diante da precariedade financeira, da desmonte do ensino público, da dominação hoteleira-capitalista-branca dos horizontes que as cercam.

Por isso, talvez, seja tão necessária essa montagem lenta, contemplativa, em alguns momentos, e frenética, extasiante, em outros. É como se uma possível narrativa linear do filme, que é naturalmente fragmentada e cheia de ausências, fosse suprida em favor de uma narrativa de sensações. Em Canto dos Ossos, não importa tanto se as personagens se encontram e desencontram rápido, se a lembrança de uma figura é logo ocupada pela presença de outra. Aqui, a narrativa cumpre mais um papel de conduzir um certo mapeamento de emoções sombrias, bizarras, podres, românticas e doentias, por meio de blocos de histórias cercados pelas cidades que as personagens ocupam. Nisso, as pessoas mudam, o território muda, o tempo (bagunçado a ponto de podermos estar atravessando séculos) muda, mas a vontade e pulsão de uma vida inexplicável que corre pelas veias permanece. É quase como um manifesto juvenil (no melhor sentido da palavra) que mergulha na podridão para dizer de um mundo que não deu certo, e precisa se bagunçar por inteiro para caber as monstras.

E assim o próprio filme volta para si mesmo, refletindo também sua produção (bastante colaborativa, espaçada, cheia de truncamentos). Há, em sua estrutura, uma vontade de mesclar a vivência dos atores e atrizes com a realidade bizarra do mundo e do país, com um desejo puro de vibrar pela textura, cor, composição e movimento das imagens. Um canto romântico gótico do século XVIII, misturado com o êxtase do giallo, com a precariedade do terror brasileiro, com a vontade simples de literatura, de contar uma história fascinante. É um Frankenstein instável e hipnotizante que tem, principalmente, um desejo intenso de diluir o discurso e as vozes múltiplas que circundam a narrativa. Isso culmina, inclusive, no final do filme, quando a narração, única durante toda a história, se altera para vozes de diferentes personagens, que poderiam ser de ninguém e de todo mundo, todas as monstras juntas e misturadas.

Cadê Edson? (2019), de Dácia Ibiapina

O direito à moradia não pode cessar

Thomas Lopes Whyte

“Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito.” A frase, reflexo de uma política habitacional deficitária e síntese da luta pelo acesso à moradia, ganha contornos ainda mais claros em Brasília. A cidade planejada por Lúcio Costa nos anos 1950 é esquadrinhada por Dácia Ibiapina 60 anos depois. Cadê Edson? (2019), novo documentário da cineasta, discute o princípio de exclusão inerente ao planejamento desse espaço urbano desde sua fundação. 

Além da intensificação da crise habitacional, pouca coisa mudou na operação do “sistema” de organização territorial que a diretora denuncia. Das antigas e violentas remoções abordadas em Conterrâneos Velhos de Guerra (1991), de Vladimir Carvalho (de quem a diretora parece ser, em alguma medida, tributária), aos eventos recentes retratados em Cadê Edson? (2019), resta a certeza de que a história das lutas pela terra na capital federal mal começou a ser escrita.

As escolhas do filme apontam para uma visão abrangente dos enfrentamentos travados ao longo dos últimos 10 anos. Com o intuito de estabelecer paralelos temporais à história dos trabalhadores sem-teto do Distrito Federal, intercalam-se momentos significativos da política nacional aos acontecimentos ocorridos durante as ocupações. Partindo de um formato generalista, que estabelece relações importantes sem o devido aprofundamento, a obra transita entre as diferentes escalas do conflito, sem recair, entretanto, no culto vazio à personalidade do protagonista. A estratégia é esboçar conexões entre elementos que vão do Palácio do Planalto às relações pessoais de Edson no seio dos movimentos nos quais militou.  

Ao ser perguntado sobre os rumos das ocupações, um dos homens expulsos durante a operação policial do Torre Palace Hotel, principal evento retratado no filme, apresenta um posicionamento bastante significativo. Após expor a trajetória que o levou a morar na rua, ele justifica a ocupação de um prédio no coração da cidade não como um capricho, fruto de um desejo de “morar bem”, mas como uma necessidade básica de ter um lugar onde se abrigar. Está aí, mesmo que ele próprio não perceba, um dos pontos centrais da questão do direito à cidade colocados pelo filme.

Se a luta por pão e terra ainda é árdua, o que se desdobra disso não é menos difícil e importante. Estamos falando de qual pão? De qual terra? Se o uso de agrotóxicos aumenta exponencialmente, e a política pública de acesso a terras e moradias populares é dependente das lógicas de mercado, como pensar em possibilidades que possam ir além da mera sobrevivência? Em que situação os anseios por uma cidadania plena, que permita inclusive o gozo, são de fato realizáveis? Estar fora do centro é estar fora da ágora e de parte regente da vida política e social.

Nesse sentido, Ibiapina reforça ainda mais o caldo que compõe o conjunto de contra-imagens de Brasília. Dos “enclaves” urbanos às cidades satélites, as forças mostradas no filme capazes de oferecer resistência ao “sistema” possuem dupla direção. Ao contrário de Adirley Queiroz, que destrói Brasília simbolicamente na ficção científica Branco sai, preto fica (2014), a cineasta nos revela uma outra possibilidade, mesmo que pequena, de revolução simultânea da forma urbana, que parte tanto do interior quanto do exterior do plano piloto. Ao lado de Edson, a diretora não abre mão da disputa por esses espaços simbólicos.

Ao imenso eixo monumental e seus monolitos de celebração do poder, e contra um corpo de 200 policiais militares, 14 insurgentes sem-teto colocam-se como força maior de resistência popular. A Torre Palace Hotel é feita de casamata e a região central de Brasília é transformada em campo de batalha. Retornadas vivas pelas lentes, essas noções de uma “outra” Brasília, repleta de contradições agora mais evidentes, esforçam-se em disputar, no imaginário popular, uma representação para além desse espaço colossal habitado por políticos e seres de um outro universo.

Interrompendo a sequência de entrevistas, naquele que talvez seja o ponto alto do filme, a diretora se utiliza de imagens aéreas tomadas pela própria polícia durante a desocupação do hotel. Impressiona a forma como a ação é filmada. Dos enquadramentos das imagens aos movimentos precisos do drone que se desloca constantemente para obter o melhor ângulo, o espetáculo ofertado ao público pelo estado representa um novo aspecto, agora estético, dos aparelhos de repressão.

A apropriação desse material publicitário da polícia militar escancara ainda mais (como se já não fosse claro o suficiente) a natureza antagônica entre esses agentes e os movimentos sociais. Livre do filtro do comentário jornalístico, essa visão policialesca trabalha na tentativa de criar um jogo com papeis ainda mais rígidos do que os apresentados pela mídia, eliminando qualquer contexto do conflito que possa humanizar os sem-teto. Ao formular esse material imagético de si mesmo, quando hasteiam a bandeira no alto do prédio, os militares deixam evidente que nem nenhuma daquelas vidas tem valor. Essa ultra espetacularização da violência permite certa catarse a um público ávido por “justiça”. E a câmera subjetiva que passeia pelo conflito transforma a “vitória” da ordem sobre o caos, para a satisfação pessoal desse consumidor, que passa a se sentir parte dos eventos narrados.

O filme termina com um punhado de interrogações. Ao final da sessão, vemos Edson aturdido em meio a um punhado de camisas amarelas que desfilam durante a posse do presidente Jair Bolsonaro. Mais do que qualquer práxis militante, ou análise de conjuntura, o que resta a fazer? Se o acesso à moradia continuará sendo um problema cada vez mais distante de sua solução, restaria alguma celebração possível diante desse horizonte sombrio que se aproxima? Algumas imagens captadas por Ibiapina dão a entender que a luta tem muito pouco de uma natureza teleológica. Na verdade, elas acabam atuando muito mais como um dispositivo condutor de afetos. É como se ela possuísse encerrada em si alguma centelha que rivaliza com a morte. A energia ao descer dos ônibus, as pequenas histórias de amor e os laços criados ao redor do próprio ato de ocupar garantem senão um futuro, ao menos um presente dignificado pela luta e o sentimento de pertencimento.

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (2019), de Bruno Risas

De volta ao tédio

Larissa Muniz

Quando a câmera olha de volta, o filme muda. Uma jovem forasteira ocupa a imagem que, antes, se limitava aos membros da família do diretor. Descobrimos: é ela quem dá o rec, quem testa as posições das personagens reais, quem controla os limites do enquadramento. É ela quem dirige a cena, no momento de disrupção, quando a figura de Viviane sai de quadro e a câmera foca a mulher que filma o espelho. Ela vai mostrar para Bruno aprovar, ela diz. Ela, Flora, tem intimidade para propor, e pela mesma razão é difícil criticar. O discurso volta para ele, Bruno.

Numa brincadeira cautelosa entre ficção e documentário, relações familiares e relações de trabalho, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (Bruno Risas, 2019) se constrói por meio de uma intenção forte de pensar as pequenas belezas envolvidas no tédio cotidiano, com as contradições que existem num ambiente doméstico simples e tenebroso. As imagens, aqui são lentas e realistas, envolvendo as personagens filmadas quase sempre em contra-luz, contrastadas e solitárias numa casa confortável de classe média branca. A família do diretor não é particularmente interessante, e suas rotinas apenas espelham outras rotinas enfadonhas, de pessoas comuns que parecem se encontrar num estado de inércia, um estorpor estimulado pelo desemprego, pela situação do país e, talvez, pelas suas próprias mediocridades.

Salvo alguns momentos de pura ternura, especialmente entre mãe e filha – uma, a protagonista em constante construção, a outra, uma senhora de idade esquecida pelo mundo, não tenho muita vontade de entrar nessa casa escura. O confinamento excessivo da casa me basta para entender o tédio e observá-lo, de longe. Acompanho o filme como ele começa, por meio de fragmentos de uma vida contada em uma primeira/terceira pessoa (Bruno e as personagens da família), que narra os eventos do seu passado e presente como se lesse, de forma entediada, uma lista de supermercado.

Exceto pela mãe nos momentos mais explicitamente documentais, nos quais a personagem é colocada e se coloca numa posição de autoconstrução, crítica e revisionista, de sua própria vida, as pessoas rondam o filme como fantasmas confinados. Elas caminham pelos cômodos devagar, de maneira monótona, reclamando e brigando por questões mínimas que apenas a convivência cotidiana pode desencadear. Elas fazem nada, e nesse nada, o filme procura também refletir sobre as intercessões entre o âmbito profissional e pessoal, o trabalho criativo e o trabalho braçal (que aparece às margens das paisagens urbanas), o desemprego e o trabalho não-remunerado da mãe. Nisso, onde está o cinema?

Seguindo a tendência de um cinema contemporâneo brasileiro que deseja ficcionalizar o real e bagunçar as fronteiras da dramaturgia, o longa se propõe a complexificar a forma como pensamos o trabalho, colocando em questão a própria maneira como nos relacionamos num sistema que precisa construir classificações para manter suas engrenagens. O pessoal não pode virar trabalho, o profissional não pode ter relação com o íntimo, e nisso tudo o dinheiro precisa estar rodando.

Tudo isso é muito interessante, mas me incomoda que, nessa vontade de pensar junto maneiras de estremecer relações pré-estabelecidas, com o intuito de questioná-las (e, quem sabe, destruí-las), o filme permanece numa mesma linha estável e imutável. Nas figuras de Flora, a diretora de fotografia, e Viviane, a mãe, temos um vislumbre de possíveis mudanças, que decide abandonar para retornar à crônica pessoal niilista. Nesse movimento, se são as duas figuras femininas que transformam o filme, em pontos-chave de reviravoltas narrativas, são também elas as mais preteridas em favor da continuação de um status quo. Nada muda e tudo muda.

Principalmente na figura de Flora e da câmera fantasma que ela incorpora (numa sequência que Bruno poderia, inclusive, ter questionado sua própria autoria), a obra retorna ao estado de simplório estorpor. Ele faz da aparição potente da fotógrafa mais um momento bonito que nada transforma. É uma pena porque, na chance de diluir a ideia de uma criação singular e autoral, a ponto de colocar em questão a construção própria do filme, ele recupera seu controle. Ele, como a mãe que é abduzida apenas para voltar às suas obrigações cotidianas, sente a imagem divina, extra-terrestre, e percebe, ou quer crer, que nada muda. Essa saída é mais conveniente para sua crônica tediosa, contemplativa e sedenta por uma busca maior que, na verdade, se revela uma afirmação já pré-concebida de uma certa descrença por qualquer possibilidade de mudança.

Nesse filme controlado e descrente, despojado e irônico, parece haver uma espécie de borrão que expressa um desejo mesclado de se doar ao outro, ou à outra, sem no entanto estar preparado para abrir mão de sua autoria em prol de uma outra expressão, uma imagem outra, que vive às sombras, às margens. Aí, sim, veríamos nas imagens e personagens a projeção de um silencioso desaforo que, acima de tudo, sobrevive: ao trabalho, ao desemprego, ao esquecimento, à crise existencial, ao disco voador.

Sequizágua (2020), de Maurício Rezende

História e histórias do cerrado

Thomas Lopes Whyte

Sequizágua (Maurício Rezende, 2020) nos coloca em contato com uma comunidade do cerrado mineiro, perto da cidade de Grão Mogol. Particular em sua escolha, o filme revela também seu aspecto universal. Em uma terra demarcada pela escassez de recursos, o desenraizamento e a migração tornam-se consequências naturais de um mesmo processo econômico.

O prólogo, tão direto quanto explicativo, nos coloca a par do histórico de sobrevivência dos agricultores locais. Um dos moradores relata o prejuízo causado pela plantação de eucalipto chancelada pelo Estado a partir dos anos 1970, em parceria com a iniciativa privada. Entremeada à ausência de chuva, a mão da monocultura pulverizou a economia regional. A agroecologia e a agricultura familiar, que poderiam ser uma saída, foram relegadas à condição de descaso. Estabelece-se, então, o tema do filme: nem mesmo a fé devotada a São Judas é capaz de impedir a inexorável marcha do “progresso” e da “integração” nacional.

Nesse solo arrasado, morrem não só gente e bicho. Os gestos carregados de história, conhecimentos e culturas, cedem lugar a uma floresta interminável de monótonos eucaliptos.  A quem fica, resta o fardo da transmissão de saberes. Cansados e adoecidos pela falta de perspectivas, os habitantes de um assentamento rural seguem vagando sobre o solo rachado, à procura de qualquer pedaço de esperança.

Para contar a história dos que restam/resistem, o cineasta parte de uma estrutura semidocumental. As observações dos ritos e costumes, que ditam o ritmo do povoado, misturam-se a uma frouxa narrativa ficcional, na tentativa de estabelecer um processo de construção colaborativa. E se a urdidura é rica, a costura nem tanto. A relação entre essas duas partes é tão infrutífera quanto conflitante. A história paralela relacionada a Débora e seus filhos (Vitor e Guilherme) parece abandonar as questões que dão relevo à primeira parte do filme. É como se junto ao desejo de restituir agência aos povos do cerrado, houvesse uma voz clamando por liberdade autoral.

A pouca organicidade com que as partes se integram revelam o descompasso entre a bruteza de uma mise-en-scène documental econômica e a invenção de situações decupadas com bastante esmero. A encenação, pouco expressiva, e eclipsada pela força do “real”, parece muitas vezes impedir que o filme trilhe caminhos mais fecundos. O movimento de liberdade surge nas frestas, quando um aluno, mesmo à revelia do discurso que expõe as entranhas do “sistema”, insiste em não prestar atenção no professor.

Os múltiplos planos-detalhe de mãos e pés, que acentuam o papel do trabalho e das relações entre o homem e a terra, ecoam uma tradição longeva da arte brasileira e dão dimensão à riqueza material e temática sobre as quais o filme se lança. Em seus momentos de maior fôlego, a obra permite aos personagens a autonomia de reivindicarem seu próprio tempo e dinâmica.  Nesse caso, uma breve cena de mãos quebrando galhos ressecados tem muito mais a expressar que uma longuíssima jornada em busca das crianças que se perdem na mata. 

Os pequenos cômodos das casas de adobe e pau-a-pique, construídas sob a lógica da escassez de recursos, não permitem, sem prejuízo de mutilação do espaço/quadro, o recuo necessário para o uso das mesmas lentes utilizadas no exterior. Optar por uma objetiva mais aberta que distorceria as formas, neste caso específico, é justamente o que garantiria maior integralidade observacional a certos aspectos sociais dos homens e mulheres assentados. Na falta de um equilíbrio entre documentário e ficção, como em A vizinhança do Tigre (2014), ou de uma expressividade narrativa mais volumosa, como em Arábia (2017) – a menção a dois filmes de Affonso Uchôa não vem à toa, já que o mesmo assina o roteiro de Sequizágua -, o longa derrapa ao não criar artifícios capazes de sustentar as histórias de luta e resistência do local, com a dureza que os relatos suscitam.

Na tentativa final, e talvez atrasada, de buscar a amarração desses dois filmes estranhos que se colidem, o ancião João, detentor dos saberes, e o garoto Guilherme, imaginam juntos um futuro possível. Além disso, a música aparentemente entoada pela própria comunidade, que surge no apagar das luzes, parece indicar possibilidades estéticas de entrelaçamento, algo que talvez merecesse melhor aproveitamento no decorrer do filme. Mas a essa altura já não há mais espaço para que os recursos formais compensem a dualidade contrastante apresentada pela obra.   

23ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2020)

As ondas: quase um diário, quase uma crônica – por Reinaldo Cardenuto

Cabeça de Nêgo (2019), de Déo Cardoso – por Larissa Muniz

Cadê Edson? (2019), de Dácia Ibiapina – por Thomas Lopes Whyte

Canto dos Ossos (2020), de Jorge Polo e Petrus de Bairros – por Larissa Muniz

Mascarados (2020), de Marcela Borela e Henrique Borela – por Thomas Lopes Whyte

Natureza Morta (2019), de Clarissa Ramalho – por Thomas Lopes Whyte

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (2019), de Bruno Risas – por Larissa Muniz

Pão e Gente (2020), de Renan Rovida – por Larissa Muniz

Sequizágua (2020), de Maurício Rezende – por Thomas Lopes Whyte

A Loucura de Almayer (2011), de Chantal Akerman

Fragmentos de uma fuga 

Larissa Muniz

No escuro, um olhar duro e impenetrável. Fragmentos azuis, verdes, marrons. O reflexo da luz na água. O barulho de folhas ao vento e o rio correndo, como se tivesse vida própria. Sobretudo, o escuro. Quadro, narrativa e personagens se difundem entre sombras emaranhadas, numa penumbra que, sim, parece falar de uma falta material de luz do ambiente, mas, mais ainda, de uma falta metafísica, porque esse escuro está cravado nos corpos de A Loucura de Almayer (2011).

É difícil definir o cinema de Chantal. Ele caminha por muitos lugares, do feminismo à psicanálise, da desilusão a uma admiração pura pela forma. A imagem, em seu cinema, às vezes assume um caráter voyeurístico, mas sutil, como se o desejo de observar a cena contrariasse a premissa da proibição do voyeur e permitisse que a diretora instalasse seu tripé e sua câmera para filmar calmamente. O enredo pouco importa – antes dele vem a pulsão pela forma, especialmente com uma câmera que se comporta como uma convidada bem-vinda, mas, simultaneamente, forasteira. É assim em Jeanne Dielman (1975), com o olhar esquadrinhador que esmaga a personagem e não influencia sua rotina autômata, observando à distância média, sem aparente julgamento ou intenção de interferência. É assim em Je, Tu, Il, Elle (1974), com a “invasão” de um espaço pessoal que se torna mais íntimo com a narração de sua personagem, mas não deixa de se configurar como uma observação distante, pela fixidez do quadro e pela monotonia da própria voz que narra. Isso também se repete em Toute Une Nuit (1982), um filme de abraços e fugas numa noite qualquer, cuja premissa resulta em uma estrutura de encontros, com uma câmera que, novamente, fixa a ação à distância média, como uma autoproibição de se aproximar mais e capturar uma suposta intimidade com a cena.

Em A Loucura de Almayer, apesar da grande diferença temática em relação a outras obras da diretora, na ambientação e nos corpos das personagens, o princípio é o mesmo. A câmera voyeur, aqui, se movimenta e se aproxima mais, talvez pela dificuldade de capturar esses corpos isolados do resto do mundo, escondidos num pântano, um pedaço de terra de ninguém. O enredo é o clichê da história ocidental: um homem branco em busca de riquezas em terras longínquas – no caso, o Sudeste Asiático. O homem, Almayer, nem pior nem melhor que quaisquer outros brancos europeus, performa seu papel de praxe, cobrando da terra como se ela lhe pertencesse, criando uma filha mestiça, odiando a mulher que o acompanha. Mas, nesse filme, não há triunfo para o homem branco (nem para mais ninguém), e tampouco importa o que ele procura ou porque não consegue encontrar. É mais sobre a jornada irracional da colonização, do imperialismo, do capitalismo. A loucura que devora qualquer possibilidade de paz e empatia e transforma qualquer relação humana em produto podre desse raciocínio doentio.

O interessante da personagem de Almayer é seu profundo desespero, que o torna apático e amargo com tudo ao seu redor. Aparentemente sem nunca ter pisado na Europa e tendo se casado com uma malasiana por riqueza (ou pela ilusão dessa), o homem está numa espécie de jornada que lembra a de K., esperando alcançar o castelo prometido, tão perto, mas tão inatingível. Diferente da personagem de Kafka, no entanto, cuja razão do fracasso nos é desconhecida, Almayer é declaradamente culpado, como o representante de todo um histórico de exploração e obsessão branca, sobre o qual, se não toma consciência, certamente absorve subjetivamente.

Com esse peso, é o homem (e não a mulher, como em Jeanne Dielman e Je, Tu, Il, Elle) que está confinado, preso na arbitrariedade da raça e nas implicações de tal “destino”. Almayer está sempre suado, como se seu corpo repelisse o ambiente que o rodeia, e sua casa está em constante penumbra, com rastros de luz natural que invadem os cômodos úmidos de madeira, evidenciando a diferença de iluminação entre o interior e o exterior. Assim, durante todo o filme, Almayer está ilhado, impossibilitado de se deslocar por falta de recursos e pela eterna expectativa de encontrar o caminho para o ouro. Seu confinamento é por escolha e está presente nos planos como uma recorrente lembrança de decisões ruins, herdadas de toda uma jornada abusiva do imperialismo e do mundo branco, em geral.

Nesse sentido, e na linguagem fragmentada e próxima do cinema de fluxo, A Loucura de Almayer está muito próximo de O Intruso (2004), de Claire Denis, e Zama (2017), de Lucrecia Martel. Os três filmes operam a questão da invasão do homem branco em um universo que não lhe pertence, mas que insiste em explorar, por diferentes motivos – o medo da morte, o desejo de riqueza, a colonização. Há conexões entre eles, principalmente, no vazio inebriante causado pela busca insana, expressada por meio de linguagens fragmentadas construídas num tempo suspenso, fora da cronologia “normal” da história. Esses filmes parecem se basear num mesmo princípio, o da estética da sensação. É como mergulhar num tempo-espaço pendular, no qual as personagens e a narrativa estão sempre oscilando sobre um mesmo ponto. O desfecho, prometido, mas nunca alcançado, é constantemente estendido para mais uma adição do “nada”, que se dissolve e renova a espera insana.

Talvez, por isso, A Loucura de Almayer se inicie pelo final cronológico: um zoom no rosto impassível de Nina, a filha abandonada de Almayer que, anunciada a morte de alguém desconhecido para nós, continua dançando de forma automática, até começar a cantar serenamente. Sabemos, desde o começo, que ela está sozinha. É a cena cujo rosto da mulher se encontra mais bem iluminado, considerando que no restante do filme Nina está sempre esquiva, se movendo pelas sombras, esperando no escuro. O filme absorve o desespero silencioso dela: a casa, o suposto lar, permanece sempre mergulhada na escuridão, e seus habitantes são filmados como sombras que se movem na baixa iluminação que atinge os cômodos; o ambiente exterior, claro durante o dia, é mais forte e mais pulsante que a presença dos corpos humanos.  É como um reflexo de Nina e seu deslocamento duplo (no mundo dos brancos e dos negros) em uma sociedade que não pode abraçá-la – nem mesmo o filme pode apreendê-la. Portanto, se, inicialmente, as primeiras cenas pareciam representar a violência e o abandono, ao final, são ressignificadas pela liberdade: Nina está livre do pai e do homem negro com quem se casou, mas não amava, tendo seguido apenas para fugir do poder branco.

Início e fim são marcados por longos planos fechados nos rostos das personagens. O início, com Nina, é a liberdade por meio da morte e do abandono. O fim, com Almayer, é o desespero mais profundo de uma alma perturbada por todos os erros que possa ou não ter cometido. No final das contas, é Nina a única personagem capaz, de fato, de se emancipar da loucura. Ela escapa pela tangente, possuindo agência por meio do não-pertencimento a lugar nenhum, incluindo no próprio filme, cujas estrutura e narrativa não tentam capturar sua subjetividade. Desse modo, Akerman constrói uma linha de fuga para Nina: se seu distanciamento de qualquer um dos mundos, resultado de uma violência masculina e europeia, a deixou amargurada e vazia, é se livrando de tudo que ela consegue cantar novamente – e, se até o final a mulher era marcada inteiramente por seu trauma pela rejeição dos brancos, torna-se no início a incorporação da possibilidade de escape.