O insólito Garrett
Thomas Lopes Whyte
Nascido no remoto arquipélago de Açores, o português José Antônio Gomes Nunes da Silva (1946), conhecido como Jean Garrett, emigrou para o Brasil ainda adolescente, onde se estabeleceu como um dos mais importantes cineastas do ciclo da Boca do Lixo. Trabalhou como fotógrafo de moda e seu primeiro contato com o cinema foi através de José Mojica Marins, com quem colaborou no episódio “Pesadelo Macabro” do filme Trilogia de Terror (1968) e em O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968). Participou também de produções com Ozualdo Candeias, Ody Fraga e Fausi Mansur.
Para compreender a obra de Jean Garrett é necessário contextualiza-la dentro do cenário cinematográfico paulista das décadas de 1970 e 1980. Baseados em um sistema financiado pelos próprios produtores e seus parceiros investidores, os filmes da Boca, ao contrário daqueles produzidos no Rio, que contavam com o suporte mais generoso da Embrafilme, tiveram, por força das circunstâncias, que estabelecer sua estética e convenções a partir de uma relação dialética direta entre autores/produtores e espectadores. As arrecadações de bilheteria e o público, bem mais que a crítica, regiam o padrão das fitas produzidas nas proximidades da Rua do Triunfo, que, incentivadas pela lei de obrigatoriedade de exibição adotada durante o regime militar, desbravaram um nicho sem concorrência com o aríete formado por mulheres nuas, deboche e títulos apelativos.
Os diretores, no entanto, apesar do caráter comercial de suas obras, conseguiram espaço suficiente para produzir um cinema autoral e passaram a desenvolver, cada qual a seu modo, várias fórmulas que pudessem se encaixar no padrão vacilante de produção da Boca. Se alguns deles, como David Cardoso, dedicavam-se a fazer filmes que descambavam diretamente para a sacanagem, sem muito refinamento e balizados exclusivamente pelo gosto popular, outros como Garrett, que possuía pretensões artísticas mais ambiciosas, se esmeravam em não permitir que suas mise-en-scènes e seus planos fragilizassem a narrativa. Transitando por diversos gêneros, como o cinema catástrofe de Noite em Chamas (1978) e o erótico, Mulher, Mulher (1979), o diretor se firmou como um competente autor de suspenses e buscou no fértil campo do maravilhoso material para suas histórias, geralmente bem acabadas, com enquadramentos inventivos, movimentos de câmera mais complexos e cenários geralmente mais depurados para os padrões da Boca.
Em A Força dos Sentidos, obra de 1978, Jean Garrett apresenta um excelente thriller. Conciso e bem amarrado, o filme se passa no litoral e é filmado sobre uma atmosfera diáfana que explora os limites entre sonho e realidade. O diretor português, ao lado de Carlos Reichenbach, responsável pela fotografia, consegue habilmente criar um ambiente misterioso, próprio do terror psicológico de filmes como os de Dario Argente e Mario Bava.
Flávio, o protagonista, é um escritor que aluga uma casa de praia em um vilarejo isolado para poder se dedicar ao seu próximo trabalho, e se vê, à medida que os acontecimentos se desenrolam, envolvido por encontros estranhos e a perturbadora visão de um homem nu, morto, trazido pela maré. O personagem interpretado por Paulo Ramos é a encarnação do herói típico das narrativas clássicas. Uma versão boqueira de personagens como Odisseu, que, em alternativa aos confrontos com as versões femininas monstruosas representadas pelas mitológicas erínias, harpias e górgonas, se confronta com as três mulheres que o seduzem ao longo do filme, antes que possa travar o contato derradeiro com a personagem misteriosa interpretada por Aldine Muller.
O filme segue uma estrutura ambivalente e é dividido em noite e dia. As regras entre as relações de Flávio e os habitantes do vilarejo se alternam drasticamente a cada mudança de ciclo. O erotismo aqui se apresenta sempre durante a noite, quando as forças atávicas atribuídas ao instinto afloram e fazem com que as mulheres, presas durante o dia em suas relações sufocantes, possam se libertar.
É importante ressaltar, porém, os limites dessa liberdade. Diferente do furor dionisíaco que acomete as bacantes de Eurípides, a satisfação das mulheres em seu estado de transe, no filme de Garrett, somente reforça o ponto de vista tradicional de uma masculinidade viril, ao associar necessariamente o prazer feminino à figura de Flávio, projeção, pelo menos em um campo ideal, dos muitos espectadores que assistiam às sessões. Fosse como fosse, A Força dos Sentidos, assim como vários outros filmes do período, conseguiu, apesar do forte machismo, canalizar parte da revolução sexual em curso e possibilitar a abertura de alguns canais progressistas de questionamento.
De uma forma geral, a estrutura da obra assemelha-se à de diversos outros filmes, que, por sua vez, herdeiros de uma tradição narrativa clássica, devem aos contos populares parte de sua sintaxe, ao apresentar personagens arquetípicos e soluções adaptadas ao contexto local. Elemento comum a esse tipo de modalidade, os personagens-função, descritos pelo estruturalista Vladimir Propp, desempenham papel fundamental na obra de Garrett. Dentro de um cenário delimitado, cada um deles, com alguns aspectos psicológicos determinados e mais ou menos traçados, desempenham, apesar de certas variações, funções recorrentes e semelhantes a uma infinidade de outros personagens ao longo da história literária. Além do próprio protagonista, que deixa seu lar e se desloca em uma jornada pessoal de descobrimento, temos a ajudante representada pela caseira, a concha que funciona como objeto mágico e, frequentemente, é utilizada como elo entre o mundo real e o mundo de sonhos, e a tríade de antagonistas que impõem ao protagonista uma série de provações escalares, preparando-o para o desafio final.
Partindo-se desse conceito, sem, no entanto, endossá-lo por completo, dado seu caráter fortemente limitador, é possível compreender a essência do filme de Garrett, que consegue utilizar da melhor forma possível recursos absolutamente ordinários e mesmo assim, obter um filme original, que sintetiza a mais pura expressão antropofágica brasileira.
Em A Força dos Sentidos, Jean Garrett consegue se desvencilhar de alguns dos cacoetes pelos quais seu trabalho se notabilizou. A característica de cinema “casa e jardim”, termo atribuído à obra do diretor pelo cineasta Ody Fraga, que consiste na ideia de se realizar, a partir de uma história vazia, um filme adornado e sem essência, geralmente com diálogos inflados e cenários cafonas, parece não estar tão presente nesse caso. Se por um lado a escolha de Rachmaninoff para a trilha funciona como uma espécie de “verniz”, uma tentativa de seduzir a classe média mais moralista e parte da crítica, por outro, o filme, se comparado a outras obras da autoria de Garrett, não chega a pecar pelo excesso de afetação, mesmo porque, visto com o distanciamento histórico e a lente afetiva que aponta para o passado, alguns desses aspectos exagerados representam exatamente o que de melhor o cinema do diretor pode oferecer. É claro que a ideia de uma cena de sexo na praia, embalada por uma mistura de música clássica e gemidos captados em estúdio, pode soar estranha e, certamente, depõe contra o clima de suspense do filme, mas em que outro contexto, salvo pelas mãos do próprio Garrett, essa situação poderia não só tomar forma, como ser também um sucesso de público?
Além da excelente fotografia de Carlos Reichenbach, que consegue trabalhar tomadas noturnas e diurnas com a mesma consistência, é desse caldo caótico entre Ravel e camisas de gola pontuda que surge a exuberância do cinema de Jean Garrett. Um diretor emblemático, dono de um estilo próprio, nascido e criado na Boca do Lixo.