Sobre vacas e guerras
Bruno Greco
Ali Sheikh Khudr, diretor de A Fazenda de Vacas (2016), se aproxima de seu primo Hassan, um criador de vacas que mora em uma pequena fazenda no interior da Síria, com o intuito de fazer um filme sobre sua família. Carismático e bem humorado, o discurso de Hassan é composto por representações concisas sobre o mundo, apesar de estar tão distante da civilização. Ele aparenta não sentir falta de relações humanas – no decorrer do filme descobrimos que tem uma relação conflituosa com o resto da família – e demonstra um amor genuíno por suas vacas, além de um orgulho por sua independência em relação à sociedade graças a elas.
Ali Sheikh, fascinado pelo carisma de Hassan, abandona a ideia de um filme sobre sua família, e o transforma em um documentário sobre o cotidiano desse recém descoberto personagem. O diretor utiliza a precariedade de seus equipamentos a seu favor, pois, valendo-se de uma câmera caseira, acaba criando um clima de cumplicidade doméstica entre o espectador e o protagonista.
Algum tempo depois desse encontro, eclode a guerra civil na Síria.
Após uma rápida contextualização, feita por meio de (violentos) registros de materiais de arquivo, voltamos à fazenda de vacas. Hassan agora vive sob o fantasma da guerra. Os conflitos afetaram diretamente sua criação. Ele não é mais o sujeito simpático e extrovertido que conhecemos no início dessa narrativa. Alimentado apenas pelas informações da TV e distante geograficamente da guerra, Hassan ainda consegue construir uma visão contundente sobre a situação de seu país. Absolutamente afetado por esse real, porém, modifica toda a sua relação com o mundo.
Ali Sheikh, ao utlilizar o recurso da fazenda, aparentemente afastada de toda a violência, como mínimo ponto, consegue transmitir a dimensão trágica da guerra com uma potência ainda maior do que se registrasse um campo de batalha. Ao focar no drama particular de um homem simples, nos damos conta da complexidade do mundo em que ele está inserido. Hassan tem sua vida devastada por uma guerra que acontece a quilômetros de seu vilarejo, o que não impede que ela seja vizinha do seu desassossego. A vaca, ícone do acolhimento e da maternidade, não sustenta mais o lugar idílico de uma vida auto-sustentável.
O próprio diretor foge da Síria para escapar da convocação militar, enquanto lá, Hassan é obrigado a servir ao exército. Meses depois, Ali Sheikh é notificado da morte do seu primo em uma missão claramente suicida. O filme termina por se tornar uma homenagem a ele.