O Profundo Desejo dos Deuses (1968), de Shohei Imamura

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O sangue corre selvagem

Roberto Cotta

Aquilo não me machuca, produz apenas um efeito inquietante de devastação. Mas não tenho mais braço, nem perna, nem corpo. E sinto a água profunda me levar para o fundo, entrando em minha boca com um gosto de sangue, enquanto começo a afundar…

(Alain Robbe-Grillet, “A Retomada”)

Nos grandes cineastas modernos, por mais heterogêneos que sejam, a ideia de permanência representa uma condição indissociável às suas construções de mundo. De Monicelli a Terayama, Sganzerla a Muratova, Mekas a Pialat, não há cinema sem que se considere o peso da presença histórica sobre os personagens e espaços registrados. Portanto, é possível dizer que, em suas obras, a articulação das formas compreende o passado como talho inseparável do presente e pegada inapagável no futuro.

A rigor dessa lógica, Imamura concebe O Profundo Desejo dos Deuses (1968) com solidez semelhante à das colunas do Templo de Hefesto. Filme ambientado numa remota ilha japonesa, ao final dos anos 60, guarda em sua estrutura temporalidades que se enfrentam de igual pra igual, preservando uma tensão que sobrevive até mesmo à ascensão catastrófica do homem moderno. E tudo que recai sobre a tradição milenar e a modernidade galopante nesse primitivo vilarejo permite que tais instâncias se embrenhem, pouco a pouco, causando atritos colossais.

Acima do horizonte, encontramos a densidade das formas de representação divina, bastante influentes no comportamento da população. Logo abaixo, os homens se mostram temerosos aos deuses, mesmo quando tentam abandonar o passado para experimentar a sedutora transformação econômica impregnada no lugar. Não demora muito para que deuses e homens se igualem em seus anseios e virtudes, rompendo com as barreiras espaciais que outrora os separavam. Em vão, a ideia de uma dominação promovida pelo capital tenta soterrar todos os valores tradicionais, ao passo que a tradição, por sua vez, torna-se o ponto de frenagem definitivo contra a consolidação desse suposto mundo novo.

Aliás, é justamente através dessa penetração do passado no futuro que o cineasta articula um tempo presente propício à coexistência de universos, à primeira vista, tão distantes. O passado se sustenta mediante os ritos, superstições, punições e castigos divinos, enquanto o futuro se anuncia na engrenagem das máquinas, na exploração desmedida da terra, na presença de elementos culturais estrangeiros, na chegada dos forasteiros. O presente, enfim, traz a mais pura desorientação espacial. Atabalhoados, os habitantes do local tentam decifrar essa temporalidade desordenada de mudanças. Entretanto, conforme as ações se desdobram, a noção de desnorteamento torna-se ainda mais evidente.

Os espaços parecem comportar a carga das inquietações divinas e a empáfia de uma noção cruel e ancestral de moralidade, fator que interliga os três tempos históricos e serve como rédea para que nada, de fato, possa ser transformado. Quando o casal de irmãos-amantes Uma (Yasuko Matsui) e Nekichi (Rentarô Mikuni) tem sua fuga brutalmente interrompida, já na parte final, sacramenta-se a impossibilidade de segregação entre os prazeres mundanos e os desejos divinos, à medida que os homens resolvem se igualar de vez aos deuses até mesmo em seu destino trágico.

O amor entre os personagens precisa ser dilacerado para a sobrevivência da moral, saciando o suplício das divindades e mantendo firme os costumes do povo. Só que a ruptura logo vem, e o duro corte que estabelece o fim da sequência comprova que nada permanecerá incólume depois desse impedimento. A imagem do barco à deriva é abandonada junto ao passado. Na cena seguinte, toma forma a inauguração de uma linha de trem, cinco anos depois, lastro definitivo para a aparente consolidação moderna.

Mas essa modernidade tardia continuará por muito tempo ensopada de valores tradicionais. Enquanto o trem trafega sobre os trilhos, cidade afora não dá a mínima atenção ao contador de histórias que se mantém na ativa, onisciente (como se fosse uma dádiva não poder envelhecer), ao mesmo tempo construindo uma relação anacrônica de mundo e narrando os destinos e as sinas dos habitantes do vilarejo. Mais uma vez, esse personagem entoa um cântico sobre o nascimento da ilha, cujas trovas louvam as ações de um irmão-deus e uma irmã-deusa em tempos remotos, claramente associados a Nekichi e Uma, dois amantes crucificados sobre as águas do mar. Passado, presente e futuro definitivamente se fundem, e os traumas proporcionados por essa fusão durarão pra sempre.

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Os Futori estão quase sempre no centro das ações do filme. Família composta pela mais variada horda de paspalhões, o tempo todo é zombada pelos demais habitantes. A formação desse clã é a mais perfeita tradução dos confrontos entre o divino e o mundano, o desejo e a moral, a punição e a liberdade no dia a dia dessa comunidade pesqueira. O patriarca Yamamori (Hôsei Komatsu) teve relações sexuais com a filha Ushi, gerando a deficiente mental Toriko (Hideko Okiyama). Seu filho Nekichi nutre um eterno desejo amoroso pela irmã Uma, que é casada. Já Kametarô (Chôichirô Kawarasaki), filho de Nekichi, mostra-se alheio aos estigmas incestuosos da família, mas é tão expressivo quanto a pedra gigantesca estacionada em frente à casa dos Futori, fruto de um castigo dos deuses.

Calado, circunspecto, sempre à margem do circuito de decisões, cabe a ele a derradeira empreitada para honrar as tradições da ilha. O jovem terá que partir em busca da captura do pai para poder matá-lo, impedindo que as divindades sucumbam à vontade dos homens. O fardo ensanguenta suas mãos, tornando-se a única forma possível de manutenção da convivência coletiva. Golpe a golpe sobre a nuca do pai, a tradição vai se transformando em rastro empilhado na memória do povo. E isto faz com que a modernidade vingue e se apresse de maneira selvagem para domar os anseios mundanos.

Nesse gesto de Kametarô reside um tonto lampejo de primitividade. Ou seja, selvageria semelhante à capacidade orgânica que esse filme tem de esquadrinhar cada espaço mostrado como costura cerzida. Quiçá, nunca tenha existido na história obra tão longa (quase três horas de duração) que soubesse conduzir com tamanho primor essa relação agreste entre tempos e espaços. Nem mesmo nos demais filmes de Imamura – alguns quase tão esplêndidos quanto – a justeza das escolhas formais foram atravessadas pelas mesmas dimensões bárbaras. Ainda assim, o controle é suplantado pela voracidade dos atos, e, em O Profundo Desejo dos Deuses, as divindades são massacradas pela vontade profana de alterar seu lugar de permanência na vida do povo.

Tempos depois, ao confrontar essa avidez carnal, Kametarô finalmente poderá questionar suas próprias atitudes, enquanto observa o fantasma de Toriko (personagem incapaz de habitar essa ilha modernizada) desafiar a maquinaria fumegante do trem que ruma em sua direção. O freio da locomotiva dinamita qualquer possibilidade de sutura entre passado e futuro, tornando o presente um mausoléu a céu aberto povoado por todo tipo de assombração. Aos homens, trucidados pelo próprio desejo, resta a sobrevivência à míngua das crenças.