Era Uma Vez Brasília (2017), de Adirley Queirós

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O apocalipse segundo Adirley Queirós

João Campos

O passado mais recente apresenta-se sempre como se tivesse sido destruído por uma série de catástrofes.

Theodor W. Adorno, em carta para Walter Benjamin (5 de junho de 1935)

Azul do cárcere. Amarelo do alerta. Vermelho do fogo do inferno. Em seu novo longa-metragem, Adirley Queirós surpreende o público com uma guinada sombria. Era Uma Vez Brasília (2017) é um filme de catástrofe. A catarse explosiva de Branco Sai, Preto Fica (2014) dá lugar a uma imobilidade soturna: os corpos filmados compartilham a paralisia tensa do pós-golpe. O argumento do filme é simples e absurdo: um viajante intergaláctico que vem do planeta Sol Nascente (mesmo nome da maior favela do DF) para assassinar o presidente Juscelino Kubitschek, mas se perde no tempo e espaço, aterrissando na Ceilândia pós-golpe, uma cidade-presídio que, sob o olhar do filme, evoca o universo devastado de Mad Max (1979) e Blade Runner (1982).

Wellington Abreu e Andréia Vieira são os nomes dos personagens, mas também os dos atores que os interpretam. A relação entre ficção e documentário apenas começa aí, refletindo uma presença complexa: o golpe produziu uma paralisia nervosa (inscrita, sobretudo, nos corpos dos personagens), um apocalipse silencioso e noturno (o único som é o ruído, a única luz, o fogo e as lâmpadas fosforescentes da ponte) que atravessa a mise-en-scène. As histórias de vida dos personagens são ligeiramente deformadas por um gesto de fabulação do real que inscreve o passado dessas pessoas num mundo distorcido por uma imaginação surrealista. Ambos os atores foram presos na vida real, e no filme se encontram numa cidade-presídio – “da nossa memória, fabulamos nóis mesmos”. A aventura que protagonizam é intergaláctica, mas o objetivo é político: assassinar o criador de Brasília, dar cabo ao sonho de modernidade que só produz cárcere e destruição.

Nessa obra, o embate é sutil, esfumaçado como a nave espacial de WA, coberta pelas nuvens de tabaco produzidas pelo caminhante noturno. A direção de arte e composição de figurino inventiva, assinada por Denise Vieira,merecem destaque, assim como a escolha de locações que, no filme, subvertem clichês da ficção científica clássica para criar algo híbrido. A nave espacial é de sucata pesada, os sons são metálicos, “de cadeia”[1]. O alienígena faz churrasco. O outro mundo é aqui.

O filme realiza uma etnografia surrealista de um inferno intersticial, em que elementos da experiência na Ceilândia se articulam numa chave de ficção científica (ao invés do estúdio, um desmanche de carros!). A força motriz da obra não é uma cinefilia pedante, mas a fenda aberta entre o cinema e a experiência de vida.

Adirley está filmando o apocalipse da periferia. As ruínas do capitalismo funcionam como espécie de negativo fotográfico do sonho de modernidade que persiste no Brasil. O universo distópico de Era Uma Vez Brasília produz um deslocamento: somos levados a olhar corpos de sucata pesada, cuja paralisia sinaliza mais que simboliza. A imobilidade de um Brasil colapsado produz estátuas-vivas, mas na iminência de um acontecimento: a rebelião? Ficamos olhando, seguindo personagens que vão de um lado para outro e, mesmo assim, não se movem, num jogo constante de sombras coloridas.

Os filmes de Adirley trabalham com uma dimensão alegórica, sempre na chave do absurdo em choque com o real – o Partido da Correria Nacional; a bomba cultural que “explode na cabeça e estraçalha ladrão”. Era Uma Vez Brasília utiliza metáforas sutis, sem deixar de fora da mise-en-scène relações plásticas e indiciais entre corpos, espaços, cores e gestos. Ao converter a Ceilândia em cidade-presídio, o filme reinventa elementos da vida na periferia através de um universo complexo de signos. A disparidade social é representada, alegoricamente, no espaço, posta em trânsito entre Plano Piloto e Ceilândia[2], e o encarceramento em massa da população se transforma em metáfora absurda de um mundo distópico.

A metáfora da cidade-presídio desloca nosso olhar, nos reconduzindo ao real pela força do absurdo. As relações entre as cores dos espaços, exploradas de maneira exemplar pela fotografia de Joana Pimenta, corroboram para a composição de um universo em declínio: o azul do cárcere solitário presente na nave de WA ou nos close ups no rosto de Marquim asfixiam o espectador, que é obrigado a buscar outras relações estéticas na mise-en-scène, poisa representação não basta.

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Era Uma Vez Brasília compõe um jogo etnográfico entre estátuas-vivas. O fracasso decorrente do golpe de 2016 produziu corpos elétricos, ainda que imóveis em sua tensão raivosa. As cenas em que Marquim do Tropa, Andreia Vieira e Wellington Abreu se encontram na ponte indicam essa imobilidade tensa. A opacidade do amarelo das lâmpadas fosforescentes incendeia sutilmente o quadro: a experiência desse filme é sensorial e plástica.

O discurso de Michel Temer presente no filme aponta para o futuro, um “novo horizonte” que se abre. “O inimigo fala dar-te-ei”[3], diz Marquim para o exército dos correria, formado por malucos de rua, boxeadoras, lutadores de muay-thai, caratecas, jiujiteiros e dois espadachins. A perspectiva que subjaz às falas de Temer é essencialmente anti-materialista – contra qualquer revolução ou rebelião –, pois eufemiza o real apontando uma utopia sempre distante – enquanto isso, a periferia queima. Essas são as promessas não cumpridas do progresso, cujo cinema de Adirley, desde A Cidade É Uma Só? (2011), tende a justapor.

Era Uma Vez Brasília é um filme anti-progresso: o que lampeja nesse universo sombrio e subterrâneo é a fricção entre um ocorrido não muito distante – o golpe de 2016 – e um presente materializado em corpos estáticos. A montagem produz uma silenciosa polifonia,capaz de explodir o contínuo da história[4] conservadora, que olha para o futuro de forma linear, rumo ao progresso – também sempre iminente, mas ilusório e covarde. É na montagem que o filme produz explosões: o gesto de mesclar o discurso oficial com as imagens do agora fabulado não é apenas uma justaposição absurda, é também uma operação estética destrutiva que coloca o presente em cheque.

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Era Uma Vez Brasília lida também com um paradoxo fundamental: como filmar o movimento no imóvel? Filme de fluxo na imobilidade, ele se vale de uma tessitura opaca cuja potência está na longa duração dos planos e nas interposições sonoras que, através de sutis movimentos de câmera e do uso do som ambiente entre ruídos e barulhos metálicos, inventa uma etnografia audiovisual surrealista de corpos em alerta, na busca fabulatória do lampejo vingativo – essa é a aventura do cinema de Adirley Queirós: consciência de classe, fabulação do passado no agora.

As caveiras-berrantes usadas pelo exército de Marquim apresentam uma relação importante no filme. A imagem da caveira reúne, em si, potencialidades icônicas, indiciais e simbólicas, se assemelhando ao rosto de gente, indicando vestígios mortais e simbolizando a face do horror. Em Era Uma Vez Brasília ela é acionada para duas finalidades: reunir um exército e evocar o passado – na busca de justiça aos mortos, aos fantasmas dos vencidos.

O golpe é a nova afirmação de um fracasso único – os vencedores falam “dar-te-ei”, mas pisam no túmulo de nossos iguais. Num certo momento, as caveiras-berrantes produzem sons de gritos – o que ressoa é o berro singular da luta de classes. A catástrofe produziu o horror e o apocalipse é agora. Estes vestígios do sofrimento e do ódio dos vencidos são as chamas simbólicas que envolvem a mise-en-scène de Era Uma Vez Brasília, uma obra que se aproxima do que Walter Benjamin[5] julgou ser o sentido político do cinema: fazer explodir o único sentimento capaz de produzir o despertar da classe trabalhadora, o ódio.

“Em qualquer época, os vivos descobrem-se no meio-dia da história. Espera-se deles que preparem um banquete para o passado. O historiador é o arauto que convida os defuntos à mesa”[6]. O cinema de Adirley Queirós é como esse banquete fantasmático dividido por defuntos e vivos; Era Uma Vez Brasília é a gloriosa expressão fenomenológica de uma obra que tem como mote a memória, a história e a vingança.

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[1] Essa caracterização da nave foi comentada pelo próprio diretor durante o debate de seu filme no Festival de Brasília.

[2]Lembremos do metrô que, a todo momento, atravessa o filme, levando os presos para a Ceilândia. Esses elementos visuais e sonoros constroem uma paisagem sonora assombrosa, sem mencionar a dimensão simbólica supracitada.

[3]Referência às mesóclises tortas de Temer.

[4]BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. In: Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. Sobre “explodir o continuum da história”, ver as teses 14 e 15.

[5] Arquivo K [3a, 1] do livro Passagens, de Walter Benjamin. Este arquivo está disponível online no seguinte link: http://www.arquivoswbdeantropologia.net.br/

[6]BENJAMIN. Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. Pp. 523