O risco de escutar, o risco de mostrar
João Campos
Dar corpo e presença ao inimigo para que ele apareça em sua potência, tal como ele se apresenta hoje na cena política – uma ameaça a ser levada a sério. Aqui, o horror não é caricatural. Ele está no pensamento lógico, na racionalização, no cálculo, na negociação. O horror está na concretização da mais meditada aliança.
Jean-Louis Comolli. Como filmar o inimigo.
Poucos cineastas estão pensando o Brasil contemporâneo como Marcelo Pedroso. Seu novo longa-metragem apresenta uma etnografia sutil e arriscada de comandantes e praças do Batalhão do Choque da Polícia Militar de Pernambuco. O documentário é claramente orientado por um desejo militante de filmar o inimigo, e é nessa chave que podemos compreender um dos filmes que causaram mais alarde no 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Em Como filmar o inimigo?, Jean-Louis Comolli reflete, a partir de trabalhos próprios relacionados à Frente Nacional (FN) francesa, sobre as formas cinematográficas através das quais podemos filmar e compreender o inimigo (as modalidades do fascismo), a fim de combatê-lo com mais força. Durante o processo de filmagem de Tous pour un (1988), Comolli se deparou com uma jovem militante da FN, partidária da fascista Marine Le Pen. A surpresa o leva a indagar “como uma moça dos dias de hoje poderia ser partidária de Le Pen?”, e prossegue de maneira propositiva:
Eu estava estupefato, e esperava entender isso melhor filmando-a. Eu dizia a mim mesmo, ainda digo, que filmar é percorrer um tempo de experiência em que a relação do sujeito com seu corpo e sua palavra se desdobra e, ao mesmo tempo, se intensifica. Uma dinâmica de encarnação dos motivos do pensamento se torna possível, reconhecível. Se o Outro se encarna, para mim, isto acontece, antes de tudo, nos filmes. Acrescentar, filmando-o, corpo – gesto, palavra, movimento, sinuosidade – à ideologia do outro é, evidentemente, representar essa ideologia com mais força, ou seja, talvez provocar uma reação mais viva no espectador, dar-lhe mais material a apreender e mais desejo de combater. Portanto, a curiosidade se sobreporia à repulsa (p. 125).
Esse é o convite que Por Trás da Linha de Escudos (2017) nos faz: sobrepor a curiosidade à repulsa. Uma das cenas mais potentes do filme é a entrevista em que uma das policiais nos descreve, num aterrador gesto de rememoração, parte de seu passado no choque: a formação, o primeiro confronto etc. Ela lembra com saudade desses momentos violentos em que tomava gás lacrimogêneo na cara e batia em manifestantes. O diretor aponta para uma foto e diz: “eu tava aí”. Ela pergunta: “apanhou?”. O riso é nervoso, pois o sentimento é real. O que essa entrevista nos apresenta são vestígios de uma ambiguidade inquietante: o afeto é a força motriz do embrutecimento dos policiais do batalhão de choque. O interstício entre a afetividade e a violência mostra uma obscuridade difícil de lidar. Um deslize ambivalente atravessa o processo do filme, que a todo o momento dá a ver o horror que lampeja na conversa franca entre adversários.
“A partir do momento em que se encarna e se representa, um poder se torna sua própria caricatura. Nem é preciso forçar o traço, ele se força por si próprio. A sombra se desloca ao mesmo tempo que a luz” (p. 126-127). Em Por Trás da Linha de Escudos, não é preciso forçar nada, apenas escutar e compreender. A postura de Marcelo Pedroso em relação aos policiais é tática – e vice versa. Assistimos a uma atividade de observação participante: a interação é estruturada pelo jogo de mostrar/esconder taticamente. Contudo, os policiais se enforcam, suas performances deixam os rastros do horror. É preciso seguir esses vestígios, por exemplo:o documentarista filma uma ação do choque num presídio de menores. Estes são dispostos em fileira, obrigados a permanecer, violentamente, agachados durante a revista das celas. Tal gesto (cotidiano) de desumanização é representado através do som pesado dos cassetetes que ricocheteiam nas barras de metal e, principalmente, pelo close-up nos policiais que olham com repulsa os jovens detentos – o semblante deixa rastros. Como essa gente banaliza tanto suas ações violentas e repressoras? As pistas estão na formação, e é justamente esse o foco do filme.
O que torna Por Trás da Linha de Escudos uma obra singular é seu caráter dialógico, o desejo de aprender com o inimigo, de escutá-lo e compreender o que faz dele o que é. Nas imagens, acompanhamos a formação de novos membros do batalhão de choque da PM, processo em que os “motivos do pensamento” da instituição são incorporados nos praças. Ao filmar o inimigo, o que mais nos aterroriza é o “pedaço de humanidade bem humanamente viva” que este carrega, “até naquilo que teria de odioso ou detestável”(p. 129). Seus corpos não amados são humanos e, no filme, o que se busca são os mecanismos que definem essa gente: máquinas de repressão, braços direitos do fascismo latente da nossa sociedade – Comolli diria: são a “carcaça” de nossa sociedade.
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Para dar corpo ao inimigo é necessário filmá-lo e, sobretudo, escutá-lo, uma vez que esse corpo só se realiza enquanto produtor de sentidos que estão no “gesto, palavra, movimento, sinuosidade”. “Comolli é novo no Brasil”, comentou Marcelo Pedroso durante o debate de seu filme. De fato, na realização, Comolli é novo, e Pedroso é pioneiro nessa aventura arriscada. Dar presença e corpo à polícia brasileira não é tarefa fácil, uma vez que na primeira desavença o filme cessaria. É necessário negociar, conversar, ouvir – e nisso o filme de Pedroso prima.
Para se tornarem choque, os praças fazem teatro, ciranda e o escambau. Participar conjuntamente com eles em suas atividades é crucial para a compreensão de seus mecanismos formativos. A cena em que eles respiram o gás lacrimogêneo juntos e abraçados evoca filmes de rituais como Os Mestres Loucos (1995), de Jean Rouch[1]. Dando a ver esse processo, somos mais capazes de entender como a polícia funciona por dentro – compreensão que se dá a partir do contato com o corpo, dos processos que ele experiencia, do ideal de cidadania que se projeta nele. “Iniciar, ver, dar a ver, ver-se. É o que poderíamos transcrever como: a alegria/a criação. Quando não há essa fruição, não há filme” (p. 56). A câmera de Por Trás da Linha de Escudos estabelece um elo social, tático e, obviamente, efêmero entre aqueles que são filmados e os que filmam, dando a ver relações que o cinema brasileiro nunca sequer sonhou em mostrar.
Um dos maiores riscos tomados por Marcelo Pedroso em seu filme é o de parecer conivente ou complacente.O dispositivo de espelhamento que elabora produz metáforas que tomam a relação de reflexo entre cineasta e polícia como algo a se evitar. O filme se debate com essa questão – que é social, mas também plástica –, a fim de mostrar que, ao tentar compreender o inimigo, corre-se o risco de se contaminar pela humanidade do outro. O reflexo do diretor no escudo do choque e sua imagem fardada parecem apontar para tal perigo: um tênue jogo de ilusões se institui.
Outra inscrição desse mesmo dispositivo está na cena final, em que justapõe, na montagem, policiais e manifestantes. Os recém-formados policiais do choque se apresentam na praça do batalhão. Em formação, eles ostentam sua organização militar – os demônios foram paridos e estão prontos para o combate. Não obstante, uma montagem paralela inscreve manifestantes que, depois de recortarem o azul celeste da bandeira do Brasil e atearem fogo no símbolo nacional, se posicionam e marcham em direção à câmera, empunhando escudos de “ordem e progresso”. Esse jogo de reflexos simboliza o aprendizado com o inimigo. Nós o escutamos, compreendemos suas contradições, performances e fraquezas (um policial não pode atacar a bandeira nacional durante serviço) e agora vamos combatê-lo. Da ordem e progresso, o documentário extrai a súmula capaz de fortalecer a resistência. No resto, nós tacamos fogo.
Durante o debate promovido no Festival de Brasília, o incômodo do público em relação à obra deixou claro que poucos aceitaram seu desafio. A dimensão alegórica da obra tenta atender às demandas mais moderadas da audiência[2]. A voz over do documentarista apresenta evidências de um desejo de aprendizado e resistência. Desse modo, as descrições que Marcelo Pedroso faz das formas da bandeira do Brasil e dos obstáculos legais que envolvem a polícia e depredação do símbolo nacional funcionam como um único gesto proléptico. Este projeta, ainda que timidamente,o aprendizado do agora – escutar a PM – num futuro de luta – usaremos o azul celeste da bandeira para nos defender de vocês, que estudamos e agora combatemos. Filmar para conhecer, filmar para combater. O que tem de arriscado nisso? Considerando o apedrejamento que esse filme sofreu em Cachoeira e Brasília, e depois de muita reflexão, defendo: o maior risco está em mostrar. Mas não se enganem, pois esse filme abriu uma ferida difícil de estancar – um curto-circuito necessário. Por trás da linha de escudos poderá muito bem ser o centro originário de um capítulo da história do cinema brasileiro futuro.
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[1]Não quero dizer, obviamente, que Jean Rouch filmava inimigos.
[2] No debate, fiquei pensando: e se Por Trás da Linha de Escudos abdicasse da alegoria e fosse para um corpo a corpo direto com a realidade documentada? Que obra-prima! Mas ficaria para a posteridade, considerando o público de hoje, sedento por posicionamentos que lhe afagam: reproduzir o consenso! É isso mesmo o que nós queremos?