A Falecida (1965)

A falecida 1

Morte como liberdade, vingança como prisão

Flávio C. von Sperling

É sob a chuva feral e o céu fechado que Zulmira vai à cartomante apostar suas fichas no misticismo do baralho. O plano abertíssimo de um prédio descascado, ruína viva (percebe-se alguém aqui e ali habitando suas entranhas), sobre a pequena personagem de Fernanda Montenegro indica sua solitude e seu desamparo. A vidente indica seu demônio: a mulher loira. E aconselha cuidado. Um “meu Deus!” é exclamado pela cliente.

Em conversa no quarto com o esposo Toninho (Ivan Cândido), a conclusão logo vem: a loira é Glorinha, prima e vizinha de Zulmira. Na parede do quarto há apenas dois objetos pendurados, dois símbolos religiosos: uma cruz com o defunto de Jesus e um quadro do Vasco. Na horizontal, o marido fleumático e sonolento, na vertical, Zulmira e suas diatribes contra a prima. Suas tosses, Zulmira asserta, são macumba de Glorinha, ainda que protestante. “Glorinha está cavando a minha sepultura!” Em frente ao espelho, acusa a prima de vestir máscara: beija de boca aberta, mas é falsidade: não vai mais à praia e não veste maiô. Zulmira acorda possuída pelo fantasma invocado frente ao espelho: recusa o convite do marido à praia (“não aprovo mais praia”), jogou fora o maiô. Zulmira é outra, vai batizar-se outra vez, diz. Vai, inclusive, tentar outra igreja, a Teofilista, pelos seus hinos bonitos. Toninho, crente inabalável e fiel, permanece vascaíno.

Frente à estagnação, ao marasmo e à solidão de Zulmira, a morte descortina-se como a única possibilidade de fuga, de leveza e de movimento. Morrer, o ato definitivo de liberdade, é a chama que pode tirá-la da inércia. Zulmira sorve um pouco dela, em uma das cenas mais belas e importantes do filme, ao tomar chuva no quintal dos fundos– o que felizmente piorará seu quadro de saúde. Entrando em casa, Zulmira hesita, olha para a chuva e sai novamente. A câmera, como que ainda a tentar entender o que se passa, a contempla durante algum tempo de dentro da casa. Zulmira sente a chuva que lava o miasma que a envolve, olha para o céu, tira a jaqueta, experimenta a liberdade da morte, toca seus cabelos, toca seus seios, sente um pouco daquilo que está por vir, morre um pouco, arde, goza – La petite mort. A câmera de Dib (o maior câmera-na-mão do nosso cinema) junta-se a Zulmira, dança, ao entorno dela, em movimentos circulares (Ouroboros; ciclo, recriação da vida pela morte).

A falecida 2

Em testilha ferrenha travada dentro de si, Zulmira busca vencer sua nêmesis – Glória, ou a construção que Zulmira faz de Glória. Um de seus triunfos se dá quando a notícia do seio arrancado de Glória chega a Zulmira, que não esconde o sorriso de satisfação. Vale salientar que, além do peito, Glória também não tem voz no filme. O que sabemos dela é sempre intermediado por Zulmira ou por seu ex-amante Pimentel (Paulo Gracindo). A paranoia, desde a suposta macumba até o volume alto do rádio, que Zulmira afirma ser Glória a zombar de sua morte iminente, dá as cartas dessa disputa interna de Zulmira. Glória, ao saber da infidelidade da prima, transforma-se numa espécie de fantasma. “É como se ela estivesse aqui”, diz Zulmira ao amante no parque. É seu fantasma mais íntimo que apaga sua sexualidade, que a condena a uma vida de aflição e agruras que só a morte pode mitigar. Exorcismo. Exorcismo e vingança, pois não basta qualquer morte. Ela há de ter o “enterro mais bonito que já aconteceu no Brasil”. Ela, Zulmira, que, não mutilada, tem o privilégio de poder morrer. Glória, coitada, não pode. Com apenas um seio, hão de zombá-la quando estiver na horizontal. É o enterro mais pomposo que há de consumar esta vingança. “Glorinha vai ficar com uma cara deste tamanho, possessa”.

A vitória de Zulmira está ali, ao alcance. A morte está para bater à porta, e seu ex-amante há de bancar um funeral como nunca houve por aqui, não fosse pela segunda vingança, a de Toninho contra Zulmira, instigada pela infidelidade desta, que vem à luz no encontro com Pimentel. Toninho, antes tão passivo, agora, para o bem ou para o mal, sai da inércia, da apatia. É, de certa forma, salvo pela falecida. Impõe-se, chantageia Pimentel e o tem na mão, em sequência filmada quase que como um showdown de um noir B.

Toninho condena Zulmira a ser sepultada no caixão mais barato, que ainda lhe parece caro demais. A câmera de Dib vai em direção contrária ao cortejo do pobre caixote, para então enquadrar Gloria à janela, plena e impávida. Maldito será Toninho, que nega o último desejo da esposa, que atravanca sua vingança e, consequentemente, impede a completude de seu exorcismo.

A falecida 3

É na religião que Toninho vai buscar a salvação. É sozinho na multidão do Maracanã – sua igreja, na arquibancada – seu confessionário, que tentará expiar seus pecados. O vemos em primeiro plano, penitente, durante algum tempo (talvez até tempo demais). Há algum eco da Falconetti de Dreyer e Maté ali. O instrumental de Luz Negra (regido por Radamés Gnattali, tema de todo o filme, em diferentes arranjos) toma aqui sua feição mais lúgubre. Não sabemos se há salvação para ele. O jogo segue. A câmera finalmente dá licença.