Pedro Veras[1]
O que pode um rosto no cinema? E um corpo? Essas não são questões imediatamente legíveis em O CAVALLEIRO, Elyseu (2015), mas que surgem à medida que entramos em contato com a imagem do personagem-tema do filme e também com as tantas imagens e sons que produziu e captou ao longo de sua vida. Trata-se de Elyseu Visconti Cavalleiro[2] (1939-2014), cineasta, artista plástico e gravurista que deixou um rico legado para a iconografia brasileira, composto por obras que vagueiam através de estéticas bastante distintas entre si. Possivelmente, seu trabalho mais conhecido tenha sido o experimental Os Monstros de Babaloo (1970), censurado durante dez anos pela ditadura militar, mas o grosso de sua obra cinematográfica foram os documentários etnográficos que realizou entre as décadas de 1960 e 2000. Por meio da articulação entre imagens de Cavalleiro já idoso — enquanto reflete sobre sua vida e seus trabalhos, em entrevistas ocorridas entre 2010 e 2014 — com aquelas criadas ou filmadas por ele, e ainda fotografias e filmes de arquivo pessoal, O CAVALLEIRO, Elyseu constrói o retrato do artista.
Filme sobre autor, filme sobre obra. As primeiras imagens de O CAVALLEIRO, Elyseu não são do artista, mas feitas por ele. A câmera passeia sobre alguns desenhos, traços, cores espalhadas sobre o papel branco, que formam figuras a princípio indiscerníveis. Pétalas? Borboletas? Plantas? Larvas? É então que aos poucos notamos o surgimento de alguns rostos, incompletos e mesclados às formas que remetem a um jardim psicodélico. Rostos de várias proporções, tons, formas, encaixados em corpos humanos ou em animais antropomorfos. A montagem nos leva de seus desenhos para uma vista panorâmica da mata densa de Teresópolis, até que, pela janela, entramos na casa/ateliê/escritório de Cavalleiro, para contemplarmos, bem de perto, o rosto do próprio artista. Esse procedimento que alia “vida e obra” em uma única sequência de planos, sugere uma conexão entre a aparição do artista e a aparição dos corpos em sua obra, pintados ou filmados, criados ou registrados.
Passando do Elyseu-desenhista para o Elyseu-cineasta, entra em cena a primeira imagem de arquivo de um de seus filmes etnográficos, Ticumbi (1978), na qual vemos membros de um quilombo capixaba em procissão sobre uma barca, tradição que faz parte da festa folclórica que dá nome ao curta-metragem. As pessoas filmadas por Elyseu parecem voltar do passado longínquo para encontrar o realizador, agora também tornado imagem, no tempo do filme. Mas é quando surge a figura de um passante anônimo — que carrega sobre a cabeça um amontoado de galhos secos — em Feira de Campina Grande (1978), é que esse diálogo entre imagens começa a se intensificar. Quem foi aquele homem que encarou diretamente a câmera de Cavalleiro nos anos 1970? O que pode nos dizer a aparição de seu rosto? Qual foi sua história de vida? Por que ele carregava os galhos? Informações não reveladas no curta-metragem de Cavalleiro, onde a narração onisciente descreve os dados objetivos a respeito da imensa feira na cidade paraibana. Ainda assim, a imagem desse homem permanece, está eternizada em nossa iconografia, podemos vê-la hoje e arriscarmos alguns palpites sobre sua vida, inclusive de sua relação com a câmera no momento da filmagem. Naquele dia, durante seu gesto cotidiano de trabalhar na feira, ele deparou com o cinema. Esse contato da câmera com o povo é fundamental para a obra do cineasta, agora retomada — ou remontada — pelo filme de Iulik Lomba de Farias. Isso porque o próprio Cavalleiro revela que procurou “descobrir” o popular, demonstrando um empenho em elaborar uma “imagem do povo brasileiro”, missão espinhosa compartilhada com outras e outros cineastas de seu tempo. Mas afinal, que povo era esse? Parece ser uma pergunta que o próprio feirante faz àquele que capturou a sua imagem, que agora aparece também impresso em uma tela. Imagens em diálogo. Isso graças a essa plasticidade contida nas imagens — as posições dos rostos, os contornos dos corpos, os gestos de cada pessoa — que as liberta de um atrelamento ao discurso que poderia “domá-las”, orientá-las e, por fim, usá-las como meras ilustrações. O CAVALLEIRO, Elyseu começa a se configurar como um filme que elabora um encontro — possível confronto — entre autor e obra, que nos leva para além de um convencional “filme-homenagem”.
Enquanto isso, de volta à casa de Teresópolis, a câmera na mão se contorce para explorar o corpo e o rosto de Elyseu Visconti Cavalleiro. Em planos bem fechados, caminhamos sobre a pele enrugada do realizador, que revela ter nascido no Rio de Janeiro, porém ter se mudado logo para Teresópolis por motivos de saúde. Ele relembra o estágio com o pintor Oswaldo Goeldi, viagens, a relação com a umbanda e a influência do artista Heitor dos Prazeres. A espontaneidade das conversas, regadas a copos de cerveja, revela não apenas as ideias, preferências estéticas e estórias do personagem, mas também o seu universo particular de imagens. Recortes, fotografias, cartazes e desenhos emolduram o corpo do artista na intimidade de sua casa. Enquanto ouvimos sua voz, o filme de Farias retoma os arquivos e volta no tempo para perscrutar planos de Folia do Divino (1968), Caboclinhos de Tapirapé (1978) e Maracatu – Estrela da Tarde (1978), todos com o mesmo tom de “registro do folclore brasileiro”. Mas Cavalleiro expressa a intenção de superar tal etiqueta, ir além dessa abordagem superficial: “O nitrato de prata capta a energia! Não é DVD não. É filme, negativo. O negativo capta a energia. [Se] Uma câmera [fica] em cima de você durante uma hora, meia hora, sua energia vai pro beleléu. (…) [É] Uma alquimia!”.
Fluxo que é novamente animado pela montagem de O CAVALLEIRO, Elyseu, ao interpor as imagens de arquivo tão distantes temporalmente. Na camada sonora, Cavalleiro narra suas experiências artísticas, “sentindo a energia” das pessoas que filmou e fotografou, enquanto a imagem apresenta materialmente esses rostos anônimos, dos quais ele fala. Esse diálogo — ou “fluxo energético” —, iniciado pelo negativo no ato da filmagem e agora acessível pelo digital, é renovado. É como se a postura frontal de um caboclo de lança do Maracatu em Pernambuco, que encara a câmera, ou os sorrisos nos rostos de algumas crianças que acompanham a festa do Boi Calembano Rio Grande do Norte, irrompessem nas imagens para reivindicar alguma singularidade. São rostos que parecem exigir de nosso olhar algo que os torne únicos, em meio ao universo das imagens estereotípicas que circulam no “mercado das aparências”. São imagens e sons que apontam para uma possibilidade de resistência, de sobrevida, das culturas folclóricas e aos modos de vida tradicionais.
Elyseu Visconti Cavalleiro — esse “vulcão de inquietações criativas, figura firme & forte nas rodas às vezes esotéricas da experimentação cíclica”, como o descreveu Jairo Ferreira (2016, p. 200) — faleceu em 2014, contudo é preciso reconhecer que seus filmes continuam quentes. Todas essas possíveis histórias impressas em cada pessoa por ele registrada, no conjunto de seus documentários, permitem a continuação do trânsito de energias e de significados. Rostos e corpos, gestos e modos, transformados em imagens que se põem à espera de novos encontros, para atestarem alguma forma de reconhecimento e de resistência contra as forças que se empenham em apagá-los.
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Referência
FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2016.
[1] Ensaio publicado originalmente no catálogo do Forumdoc.Bh.2017 – 21º Festival do filme documentário e etnográfico.
[2] Seu sobrenome em caixa alta, no título do filme, sugere uma singularização do artista, que era homônimo do avô, Eliseu Visconti — pintor brasileiro, conhecido por sua fase impressionista, que viveu entre 1866 e 1944.