Crônicas de amor sob o gelo
Douglas König de Oliveira
Ao assistir ao longa-metragem de estreia da ucraniana Kira Muratova, não é difícil perceber o motivo das críticas lançadas pelas autoridades estatais soviéticas na época de seu lançamento. Desde a revolução bolchevique, em 1917, o cinema feito no país foi uma plataforma de divulgação ideológica importante para o regime. Cineastas como Sergei Eisenstein e Dziga Vertov ilustravam o ideário do socialismo, calcado na figura de Vladimir Lenin, com obras de grande rigor formal e intenção popular.
Vertov reportava o cotidiano do regime, como nos registros breves da série Kino Pravda (1922-1925), ou em obras mais ambiciosas, como Câmera Olho (1924), ainda dentro desse escopo pragmático do uso do cinema para propagar uma ideologia. Eisenstein tem suas obras mais representativas, como O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro (1927), baseadas em fatos históricos que contribuem para a aura da revolução, mostrando a bravura do heroísmo coletivo e utilizando uma estratégia de montagem derivada de Griffith e Gance, na qual a concatenação paralela de cenas e o ritmo acelerado auxiliam no convencimento da audiência. Não há espaço para lacunas ou ambiguidades. Essa arte oficial é feita para o povo, e qualquer sofisticação que represente um entrave entre a informação e o público é rejeitada.
Essa restrição também ocorreu em outras áreas, tendo o regime eleito seus artistas preferenciais, em detrimento de outros, quando levavam sua expressão artística muito à frente da expectativa de uma suposta audiência popular. O compositor Igor Stravinsky, por exemplo, era considerado muito cosmopolita, abarcando em seu estilo influências do folclore russo ao jazz norte-americano. Era preterido por compositores que, alegadamente, eram melhores porta-vozes dos valores que o mecenato estatal queria propagar, como Dmítri Shostakóvitch (e mesmo este sofreu com a censura e o embargo em momentos de sua carreira).
O cinema de Kira Muratova se afasta desse modelo estatal. Primeiro, cronologicamente, pois seus filmes foram feitos no pós-stalinismo, que representou certa flexibilidade (ou, ao menos, uma esperança), sob o comando de Nikita Khrushchev. Em segundo lugar, esteticamente, uma vez que ela se evadia da estética consagrada do realismo socialista para priorizar um formalismo que destacava o individual e o íntimo.
O característico herói coletivo ou figura de destaque do regime, assim como o enredo edificante e afirmador das diretrizes ideológicas do socialismo, dá lugar a um tratamento cambiante da personagem, assim como a ênfase em aspectos formais antes ignorados (e ainda fortemente criticados pelo discurso oficial) na obra dos cineastas soviéticos. Os filmes eram realizados, mas não havia garantia que seriam distribuídos, pois um comitê avaliava se estavam alinhados às ideias do partido. Nesse processo, muitos cineastas tiveram filmes proibidos ou não recomendados, e suas carreiras foram prejudicadas de forma irreparável.
Em Breves Encontros (1967), de Kira Muratova, podemos ver a influência de toda a gama expressiva do cinema europeu do início dos anos 60. No filme, temos o retrato íntimo emoldurado pelo contexto histórico e social, que é tão caro à obra de Resnais, assim como o uso da memória e do presente no mesmo espaço diegético para o desenvolvimento da trama. Outro fator derivativo são os planos distendidos e as variações do foco principal do drama para momentos de liberdade formal, comuns nos filmes de Antonioni nesta época, e a leveza e agilidade na condução do enredo e as repetições e quebras de padrões visuais e sonoros característicos da nouvelle vague francesa de Godard e Truffaut. A cineasta também incorporou o caráter romanesco presente nessas três referências, com ênfase em relacionamentos amorosos entre casais (como em Hiroshima, Mon Amour (1959) e Acossado (1960)) ou triangulares (como em Jules e Jim (1962) e A Noite (1961)), ao invés do típico personagem do realismo socialista. Toda essa vinculação à estética dos cineastas europeus chegou a inspirar a cena de uma nova onda do cinema soviético, como ocorreu contemporaneamente no Japão e no Brasil.
O filme de Muratova segue o triângulo amoroso de duas mulheres, Valentina (interpretada pela própria diretora) e Nadia (Nina Ruslanova), e o esposo de Valentina, Maxim (Vladimir Vysotskiy). Maxim e Valentina fazem parte da burocracia do Estado, enquanto Nadia é uma atendente de um bar que o geólogo encontra em uma de suas viagens de trabalho pelo interior. Um aspecto interessante é que a relação desses vértices do triangulo não é explícita. Valentina e Nadia amam o mesmo homem, mas Nadia nunca revela essa história, embora trabalhe na residência do casal. Maxim também não toma conhecimento do convívio das duas durante o filme, pois não retorna de sua viagem até o encerramento da narrativa. A tensão não tem ênfase dramática, mas se baseia num registro existencial, permeado principalmente por elementos da memória das duas protagonistas.
As elipses constituem a estrutura que constrói o enredo, a toda hora movendo-se do passado ao presente para formar o vínculo entre os personagens. Na primeira metade do filme, a câmera adquire uma incomum liberdade, como que para tatear a cena, desvelando detalhes e aspectos visuais e dinâmicos de um formalismo bastante original. Vemos, então, um movimento de despir-se de um agasalho seguido com a câmera em toda a sua amplitude vertical, momento em que uma personagem parece introspectiva, enquanto observa os próprios braços se agitarem por sobre a cabeça. Observamos também o deslocamento circular de Valentina na sala de seu apartamento, à medida que elabora um discurso para o comitê do estado sobre agricultura.
Em vários momentos do filme, o tempo e o espaço adquirem um ritmo eminentemente sensório, desprendido do alinhamento dramático, dando ênfase a precisos e complexos movimentos de câmera. Mas, diferente dos tempos-mortos de Antonioni, que desde Crônica de um Amor (1953) enfatiza a continuidade e distensão de um plano também como estratégia de distanciamento, os momentos de liberdade formal em Muratova se integram completamente à cadência da trama. Isso traz novos elementos “descobertos” pela câmera, além dos que consideraríamos um plano usualmente padronizado. Esse é um aspecto que torna toda a invenção visual desses momentos muito naturais, não precisando de um contexto tão fechado na estilística para ser apreciado como fator poético. Por isso, ainda hoje, causam um efeito não datado e profundamente marcante do estilo, então recém-estabelecido, da diretora.
Outro aspecto que inverte uma convenção de linguagem é o fato de as personagens femininas problematizarem as figuras masculinas. Em diálogos travados com as mulheres, Maxim reclama do reducionismo em tentar decifrá-lo e prevê-lo de alguma forma, enquanto muitas vezes recorre a canções para mostrar seu ponto de vista (hábito que Valentina se opõe durante uma conversa importante do casal). No cinema e na literatura, é comum que as mulheres sejam vistas como figuras misteriosas, com certa tendência para a ambiguidade, ao passo que o homem, dotado de traços de racionalidade, tenta entender as motivações delas. Mas, no filme de Muratova, o olhar muda de posição, e a mulher é que tenta apreender a essência ambígua do universo masculino, simbolizado pela dimensão prática do extrativismo mineral do geólogo Maxim em contraste com seu temperamento artístico.
Valentina aparece no filme às voltas com a administração da construção de condomínios populares e o abastecimento de água dessas habitações. Nadia sai do interior para a cidade na condição de também servir, antes como garçonete, agora como auxiliar doméstica de Valentina. As duas estão ligadas ao amor pelo mesmo homem, e também compartilham a tensão de ter que lidar com a inconstância e complexidade desse personagem, que se esquiva de classificação e das características de uma construção familiar convencional. A notícia do retorno de Maxim, no trecho final do filme, é motivo de alegria e alívio pra Valentina, mesmo tendo ela promovido a separação, dadas as incompatibilidades com os compromissos afetivos. Nadia, por sua vez, entende a volta do rapaz como o estopim para sua própria emancipação. De alguma forma, Maxim contribuiu para que Nadia encontrasse a felicidade que vislumbrava na sua figura de aventureiro, ainda que perdendo a chance de obter exclusivamente o seu amor.
O embate entre as dimensões sociais das duas mulheres baliza a principal relação tratada pelo filme. Se, no socialismo, os membros mais diretamente ligados às funções estatais ou partidárias podem ser identificados como uma elite, existe uma parcela da população que espera que, dessa elite, emanem as ações que nortearão seu cotidiano, suas condições materiais e ideológicas.
Valentina e Maxim fazem parte dessa “casta” privilegiada e, de certa maneira, bastante exigida nas suas ações públicas. Nadia faz parte da outra metade, e tem a oportunidade durante sua convivência com Valentina de observar como ela age com as pessoas as quais gerencia ações estatais (a população à espera dos apartamentos, principalmente). Além disso, pode analisar a maneira nem sempre positiva como essa população vê e avalia os agentes do Estado (como nas cenas da pensão e do salão de beleza) e também a abertura que essa parcela de poder proporciona a quem está próximo (como na situação do primeiro encontro das duas, quando Valentina oferece a chance de Nadia continuar os estudos utilizando sua influência para colocá-la numa boa escola). Se o sentimento amoroso por Maxim as aproxima, as diferenças de suas posições na sociedade apresentam uma invulgar distância.
O retrato dessas relações em Breves Encontros não parece contribuir para lisonjear a máquina estatal que a patrocina. As angústias e as dificuldades de adaptação de Valentina às demandas oficiais, agravadas pela falta de companhia do errante e fugidio Maxim, não são exatamente os exemplos que o regime socialista queria transparecer para os seus cidadãos. A moralidade do trânsito amoroso entre os três personagens também não parecia desejável pelos padrões vigentes da época.
Se hoje vemos uma obra vigorosa e original da jovem Muratova, que se adapta ao que acostumamos ver no cinema mundial nos anos 60; na época, sua falta de apoio (ainda que não uma proibição) pelo Comitê Estatal de Cinematografia, praticamente, condenou o filme. Depois de uma relativa consagração de seu trabalho é que puderam vir à luz seus primeiros longas. Se pareceram inúteis e desvirtuados para a visão oficial da União Soviética, hoje constituem obras do mais alto grau de interesse cinematográfico, que estimulam novos desdobramentos sensíveis, ainda que por muito tempo inertes no gelo que encarcera a arte em determinados momentos da história.