MOSTRA FOCO – O terceiro mundo já explodiu

Rubens Fabricio Anzolin

O espectador que se aventurar a encarar os dez curtas-metragens da Mostra Foco (sessão competitiva da modalidade) irá encontrar uma tônica comum que sela um arranjo entre as obras: um movimento para a distopia. Em geral, todos os filmes programados na Foco deste ano situam-se em torno de uma realidade que não pode ser chamada de literal ou cotidiana, ordinária. Muito pelo contrário, estes são filmes que, em sua maioria, até aparentam situar-se em um universo corriqueiro, mas que, tão logo comecem, passam a revelar para quem os assiste um procedimento de linguagem ruidoso, arriscado, quase como um feitiço, que nos retira do lugar comum e nos insere em um universo multifacetado de imaginários acerca do caos cotidiano.

O primeiro dos filmes a fazer este movimento é Drama Queen (2020), de Gabriela Luíza, curta-metragem experimental constituído por um intercalado de diversos memes na tentativa de forjar uma narrativa catalisadora acerca do estado político das coisas. O filme começa com uma moça olhando para a tela enquanto fala ao telefone. Ela, basicamente, explica o mote da obra: quer fazer um filme com as imagens guardadas de sua amiga Mirela para que ele possa ser inscrito em um edital. A garota também recorda que não é uma atriz (apesar de estar se colocando neste lugar) e interrompe a sua ligação com uma risada violenta. Esse riso efusivo e rasante da menina em tela, que abre Drama Queen, pode ser encarado como uma metonímia da obra: eis um filme sobre o tal do riso engasgado, aquele mesmo que divide o limiar entre a graça e a tristeza, entre o rir e chorar (ou, melhor, entre o rir para não chorar).

Drama Queen opera todo neste processo, amparado numa lógica de que, já que não se pode mais chorar, é melhor fazer gozo com a tristeza. Daí pra frente, vêm e vão diversas imagens trágicas e populares do Brasil, tal qual o rompimento da barragem em Brumadinho (MG), esgotos e bueiros a céu aberto esguichando um turbilhão de água, e imagens de videogame, à la Phill Solomon, que trazem uma espécie de Bolsonaro do universo Grand Theft Auto (GTA) com uma espingarda nas mãos circulando ao redor de árvores digitais. Entretanto, mais do que esse coro às tragédias nossas de cada dia, Drama Queen enxerga uma maneira de fazer graça e injetar riso em meio a este processo, mesclando toda essa miscelânea de regimes com uma batida veloz de funk, alternando o significado inicial de cada um destes signos. De alguma forma, pode-se dizer que este não é um filme de derrota, mas um filme sobre o depois da derrota. O que fazer após a explosão das estruturas? Para Drama Queen, rir e bagunçar talvez seja a melhor solução.

Por sinal, falando em bagunça, o segundo filme da Mostra Foco leva quase que ao pé da letra a ideia do “Eu sei que fracassei. Eu tinha que avacalhar”. A Destruição do Planeta Live (2021), de Marcus Curvelo, é a consolidação de um projeto de cinema – composto por Mamata (2017) e Joderismo (2019) – que crê no fracasso como a força central que move o mundo. O já icônico personagem Joder, interpretado pelo cineasta, agora dá espaço à própria figura do realizador, um jovem que está dividido entre a árdua tarefa de realizar uma live ou dar um tiro na própria cabeça. Esse tom explícito do cinema de Curvelo, que trafega sempre no limite das experiências políticas catastróficas absorvidas pelos jovens da contemporaneidade, apenas revela que A Destruição do Planeta Live, possivelmente o melhor filme em exibição em toda a Mostra de Tiradentes de 2021, é a consumação de uma ideia que percorre todos os filmes do cineasta: filmar para não morrer.

E é mais ou menos disso que se trata o Planeta Live, um resumo do que é lidar com o mundo que já está em ruínas, que anda sempre na corda bamba entre o fracasso e a destruição. Para Curvelo, nunca houve sequer uma possibilidade de salvação e, por isso mesmo, toda e qualquer premissa já é, por si só, um desafogo, mais ou menos na lógica do: e agora, o que iremos fazer hoje para tentar contornar a depressão do planeta? Em se tratando de Planeta Live, filmar certamente é a resposta.

Ainda nesta toada do mundo em ebulição, da distopia como forma de fuga da catástrofe, Céu de Agosto (2020), de Jasmin Tenucci, e Lambada Estranha (2020), de Darks Miranda, fecham a sessão. Entretanto, estas duas obras parecem deixar fenecer uma estratégia muito bem sustentada pelas primeiras que era a da criatividade enquanto motor da criação, desviar-se das catástrofes através da imaginação. Céu de Agosto, por exemplo, é um filme repleto de ideias e conceitos – a proporção de tela que vai aumentando com o passar do filme, as metáforas com passarinhos mortos -, mas nunca concretiza de forma concatenada os seus anseios. O filme traz uma moça grávida como protagonista, remetendo muito à primeira parte de As Boas Maneiras (2017), com direito à participação de Gilda Nomacce (atriz assinatura dos realizadores) em uma cena de ultrassom. Na seara da protagonista, existem muitas possibilidades e inquietações: as dores acumuladas pela gravidez, um possível flerte com uma amiga da igreja e, é claro, uma pontada de esquisitice à cada ida indevida ao culto religioso. Mas Céu de Agosto faz bem o exemplar de filme que promete e não cumpre. O desfecho em relação ao filho da moça grávida é nulo – ou “metafórico”, artimanha usada recorrentemente no cinema brasileiro -, suas experiências com um possível novo amor não oferecem mais que uma ou outra troca de olhares enquanto se divide um cigarro e, por fim, o tal do céu anil, que finaliza a projeção, nada oferece além de uma manobra de estilo muito bem calculada, mas que derrapa duramente enquanto uma conjugação mais concisa de mise-en-scène.

O mesmo pode se dizer de Lambada Estranha, o filme com a menor das aspirações dentre todos os dez exibidos. Trata-se, desta vez, de uma literal distopia, de um Brasil que foi invadido por extraterrestres e que, agora, tenta conciliar as diversas possibilidades intergalácticas de sobreviver. Mas Luísa Marques e Darks Miranda, ao contrário do que haviam feito em Maldição Tropical (2017), aqui nada oferecem além de um pulular de corpos misturados no chroma-key, a dançar um ritmo uníssono diante da catástrofe que o filme prevê. Não temos uma mudança de arranjo, uma investigação destes corpos, e tampouco os motions e efeitos do filme oferecem qualquer saída para tentar pensar, refutar ou se afogar na narrativa. Pelo contrário, demonstram uma capacidade técnica muito rica de duas cineastas que deixaram de lado a criatividade para dar vazão a uma ideia um tanto quanto insossa de que apenas filmar as performances ao som de uma lambada possa dar algum sinal diante do futuro. Em Lambada Estranha, o céu derrete ao revés dos corpos cambaleantes, mas as cineastas parecem não ligar muito para isto. É como se o filme adotasse uma postura do “deixa disso”, a ignorar tudo ao seu redor numa dança. Mas esse movimento, esse requebrar de corpos, infelizmente não proporciona nenhuma saída plausível para a destruição, enquanto os atores e performances ficam todos ali, extasiados, a afundar cada vez mais dentro de suas próprias ruínas.

Em contraponto ao que assistimos na primeira parte da mostra, a Sessão 2 da Foco parece trazer uma diluição das dores diante do cenário de uma possível distopia. Esta é mais ou menos a tônica presente em Ratoeira (2020), de Carlos Adelino, De Costas Para o Rio (2020), de Felipe Aufiero, Eu Te Amo, Bressan (2020), Gabriel Borges, e 4 Bilhões de Infinitos (2020), de Marco Antônio Pereira. Outro movimento interessante é uma migração dos conflitos para um ambiente mais interno, uma catástrofe ou uma fenda mágica que se abre diante dos olhos através dos mais simples e pequenos sentimentos. Isso pode ser observado na trajetória do personagem Macgyver, por exemplo, de Ratoeira: um técnico de aparelhos eletrônicos que acumula em sua oficina um turbilhão de memórias e sentimentos através das coisas que as pessoas deixaram para trás. Em seus parcos 11 minutos, um dos mais curtos filmes da Foco busca concentrar-se diretamente na figura de seu ator para poder emular as memórias de suas crises. Para Macgyver, a destruição do planeta ou do Brasil não passa por uma invasão intergaláctica e nem mesmo por um anseio direto de morte. Muito pelo contrário, em Ratoeira a destruição da vida é sentimental e simbólica, e a maior das dores pode ser não conseguir mais achar uma memória querida em meio a tanta sucata abandonada.

Outro filme que aposta muito certeiramente em um movimento simples é o último curta de Marco Antônio Pereira, integrante de sua pentalogia de Cordisburgo (MG). 4 Bilhões de Infinitos encerra a sessão 2 da Foco trazendo o que de mais estiloso e delicado possui o cinema de Marco Antônio: a simplicidade. Na trama, a cidade do interior encara a falta de luz, enquanto dois irmãos pequenos discutem dentro de sua casa qual é a melhor maneira de se assistir a um filme. Um furto, então, entra na jogada, e o irmão mais velho revela que roubou o cinema da escola – que, na realidade, é o retroprojetor da instituição. Marco Antônio, porém, assim como é feito nos outros filmes da Foco (e durante todos os seus trabalhos) rejeita uma ideia literal de sentimento e trabalha em torno de um espaço cinematográfico imaginário, onde o cinema sempre é uma porta para oferecer o sonho. Em 4 Bilhões de Infinitos, a luz das casas está em falta, e o cineasta contorna esta condição narrativa escolhendo apontar sua câmera àqueles pequenos seres que, na falta de energia, usam da sua própria imaginação para criar uma sessão de cinema diante do lençol em branco que encerra a obra.

Por fim, Eu Te Amo, Bressan e De Costas Para o Rio, possivelmente, dão um passo mais além no sentido distópico, ficcional. Ambos os filmes trazem como mote a mitologia para desdobrar suas narrativas. Em De Costas…, uma serpente gigantesca irá engolir Manaus; em Eu Te Amo, dois amores perdidos são realocados em uma montagem que remete ao primeiro Godard, quase como se a ideia de amar alguém fosse similar a fazer um pacto com o diabo. Mas Eu Te Amo…, ao contrário de De Costas…, consegue contornar os seus ensejos sentimentais e ficcionais para chegar ao fundo de sua narrativa, levando o espectador a seguir o fio desesperado dos apaixonados até as últimas bordas do maneirismo. Já De Costas…, abandona a sua premissa em um filme que parece ser uma mistura dos documentários de Apichatpong com um cinema marginal dos anos 70 – câmera na mão, bagunça, desestrutura -, e, nessa amálgama de fatores, o resultado acaba sendo um pouco desconcertante – infelizmente, no pior dos sentidos.

Encerrando a Foco, na última parte, temos Abjetas 288 (2020), de Julia da Costa e Renata Mourão. De todos os exibidos, este é o filme que leva até à última letra a ideia de uma distopia. Estamos diante de um Sergipe ruidoso, metálico e sonoramente esgarçado, com duas protagonistas que buscam se comunicar com o mundo onde estão inseridas. Abjetas, entretanto, parece pouco interessado em suas protagonistas, no que de mais interessante elas poderiam oferecer, como experiência de vida e corpo, e acaba recolhendo-se a um movimento árduo de performance e experimentalismo mecânico batido, deixando de lado uma pulsão narrativa que, ao início, parecia poder render algo muito mais valoroso à obra.

Preces Precipitadas de um Lugar Que Já Não Existe Mais (2020), de Rafael Luan e Mike Dutra, ao contrário de Abjetas, pretende apostar em uma distopia como comentário mais sisudo em relação à realidade. Tudo no filme é exibido num sentido metafórico, desde o amigo que some em uma parada de ônibus até o espaço que seria considerado como um limbo, local de corpos periféricos, que possivelmente poderíamos ler como um pós-vida das tantas pessoas que costumam partir antes da hora. Dos três filmes da Foco 3, este é o que mais tenta um movimento de tensão entre a distopia e o real, e, por mais que seja através da metáfora (que reina na primeira parte, mas que na segunda descamba para uma literalidade exagerada) pelo menos é capaz de ofertar a quem assiste um relicário de observações e interpretações acerca das agruras da vivência.

Por último, Novo Mundo (2020), de Natara Ney e Gilvan Barreto, é uma reflexão que conjuga, assim como o filme anterior, uma metáfora em cima da chegada de corpos negros em um território novo, em um “novo mundo”. O encerramento da Mostra Foco escancara, com seu último programa, um ensejo de refeitura da nossa história, de possibilidades e imaginações para vidas marginais e de como um cinema brasileiro produzido por estas pessoas pode ser uma saída. Ao mesmo tempo, a Mostra como um todo (o que inclui também os filmes da última sessão), parece escancarar a ideia de uma invenção política como contorno ao estado das coisas no país em que vivemos. É como se estes filmes todos acreditassem que estados em colisão, em ebulição, tentando fabular sobre o que aqui acontece. É como se eles dissessem: o terceiro mundo vai explodir. Entretanto, ao que parece, devo dizer, a verdade talvez seja outra. Por aqui, o terceiro mundo já explodiu. E é bem possível que quem se dê melhor com isso sejam os cineastas que saibam ver no valor simples da imaginação uma maneira de começar a reconstruir as mazelas dos destroços.