Letícia Badan
“Governar o Brasil é criar desertos”. A frase cunhada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, professor da UFRJ, sintetiza a um primeiro vislumbre os seis filmes que integram a Mostra Olhos Livres, parte da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes. A fala encontra eco na voz de Silvana Stein em Subterrânea (2020); se reflete na desertificação da cultura maxakali em Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa Terra É Nossa! (2020); vira palco da jornada alucinógeno-transgressora na Wasteland à brasileira de Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) (2020); se interioriza como trevas no Brasil ditatorial de Voltei! (2020); reitera-se como deserto familiar em Irmã (2020); e transforma-se em ausência em Amador (2020).
Distantes a um primeiro olhar, enraizados em singularidades que ramificam essa vastidão geográfica compreendida por Brasil, os filmes fortalecem a necessidade do cinema brasileiro em tempos apocalípticos. Independente da enunciação, como documentário ou cinema de ficção, resistir aos desertos é o tema que prefigura as produções da mostra de 2021. O Brasil de Olhos Livres reúne espaços aparentemente dispares, verdadeiros arquipélagos – como o texto de abertura da mostra bem pontua. Trafega entre os confins do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Ceará e Rio de Janeiro, numa terra plural, sob a ótica de minorias assoladas por desertos. Ele ressoa resistência numa voz quase uníssona, que embora marcada pela discrepância tonal entre as narrativas, revela por meio do cinema Brasis de múltiplos desconhecidos, de anônimos coletivos e individuais, de verdades invisíveis ocultadas pela norma, gerindo espaços de visibilidade que refletem as problemáticas viscerais do país, traduzidas na epiderme cinematográfica.
Subterrânea respalda sua trama no jogo imbricado entre a superfície da cidade e seu núcleo segredista. Escrito, dirigido e fotografado por Pedro Urano, o filme projeta o percurso de dois pesquisadores, Silvana (Silvana Stein), “uma astrônoma do centro da Terra pra quem pedras são estrelas” e seu sobrinho, Leo (Negro Leo), que apesar de passar seus dias descobrindo minérios, não deixa de erguer os olhos para o céu que o envolve. Ambos partem em busca de um tesouro confinado no subsolo da antiga capital brasileira, como aquele descrito por Lima Barreto em “O Subterrâneo do Morro do Castelo”. O filme se inicia com a trajetória do Meteorito de Bendegó, “um pedaço de outro mundo descoberto pelo homem branco” em 1784, levado ao Museu Nacional do Rio de Janeiro ao final do XIX, e confirma as incongruências da história, desse Brasil que, apesar de estar em vias de abolir a escravidão, ainda persiste na força dos escravizados para tecer seu projeto de ciência. A desgraça que assolou o país com o incêndio do Museu Nacional em setembro de 2018 transforma o passado preto e branco das fotografias de registro do meteorito nas chamas violentas que dizimaram os traços físicos da nossa história de mundo, encerrados naquele edifício da Quinta da Boa Vista. Mas o fogo foi incapaz de destruir o fragmento celeste de mais de 4 milhões de anos que resistiu ao tempo, e resistirá também a nós. Silvana e Leo investigam os destroços do progresso, mergulham nessa Rio de Janeiro que, embora tomada pelo fogo, transborda-se de passado, como as águas do subsolo que vertem por entre as ruas do centro da cidade, outrora afogadas pelo mar.
E como a personagem Clara afirma que é preciso olhar para o chão a fim de se compreender o céu, o filme serve-se do subterrâneo para falar daquilo que está invisível na superfície. Os rizomas da ciência e da cultura – alicerces do cinema de Pedro Urano – permeiam essa busca verneniana ao centro da Terra. O cineasta fundamenta-se no fantástico para denunciar os crimes de nosso tempo, como Lima Barreto fizera, ao revelar o drama do tesouro dos jesuítas ocultado nas galerias do Morro do Castelo, conectando o Brasil de 1710 àquele governado por Rodrigues Alves em 1905, onde demolir é sinal de progresso. É sintomática a fala do funcionário da prefeitura, Giordano, que argumenta aos protagonistas sobre as demolições em nome do avanço.
Há certa maestria em confluir esses dois opostos – realidade e fantasia –, talhados num rigor absoluto da palavra, do auditivo e do visual. Jules Verne, Lima Barreto e Gustav Holst são os pilares dessa galeria de possibilidades extraordinárias, onde o tempo parece se articular sob uma atmosfera diversa, inquietante e descompassada, se comparada ao ritmo ágil da cidade na superfície. Ele enxerga na base do cinema – a câmera escura que dá acesso ao tesouro da Companhia Católica – a reflexão de um caminho possível para essa terra tomada por desertos.
Essa lógica de progresso em nome da destruição é também o cerne da denúncia que fundamenta Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa Terra É Nossa!, documentário assinado por Israel Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Ganguçu e Roberto Romero. Os cineastas, vencedores de melhor longa no ano anterior, compõem um retrato da realidade indígena no Vale do Mucuri, narrado sob a ótica dos maxakali, e conduzem a narrativa documental através da acusação desse Brasil que se faz de desertos culturais, dos povos que tiveram suas terras expurgadas e remarcadas pela mão branca. O filme se inicia com a vista do litoral, subvertendo o discurso da chegada dos europeus ao Brasil. Como em Subterrânea, que se utiliza de representações do Rio de Janeiro, vemos aqui um detalhe da “Vista dos rochedos de Tucutucuara, à margem do Rio Espírito Santo, perto da cidade de Vitória”, água-forte gravada por Johann Gottfried Abraham Frenzel, que compunha o registro iconográfico da paisagem brasileira, na primeira expedição científica organizada pelo príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied em 1808, disponível para consulta no acervo do Projeto Brasiliana Iconográfica.
Durante os 70 minutos do filme, percebemos o silenciamento constante, a invisibilidade de um povo cuja cultura é exemplo de atração turística na região, mas que não é respeitada. A denúncia se revela ainda pela presença dos brancos, expresso nas reclamações do dono do bar sobre os furtos de lâmpadas, minutos após ouvirmos sobre o extermínio de pessoas da aldeia, ou ainda a presença da placa de “cultura índigena” (sic) que ornamenta o portal de Machacalis, refletindo a negligência da cidade com a própria cultura fundadora de seu espaço, a partir da exploração de uma iconografia estereotipada dos registros etnográficos dos povos nativos da América do Norte. A frase que intitula o filme, “essa terra é nossa”, ressoa como um manifesto no longa-metragem. A voz de Nũhũ yãg mũ yõg hãm é dos próprios maxakali, que são acompanhados pelo olhar da câmera, a qual revela com clareza os estertores que condensam a batalha pela terra.
De maneira diversa, o outro documentário da mostra, Amador, de Cris Ventura, acompanha os passos de Jonatas Amador, o Vidigal, um artista do underground belorizontino, falecido em 2019. Apesar de trazer o ponto de vista do indivíduo, Amador encerra em si um universo multifacetado. Foi artista plástico, poeta, cantor e, no tempo livre, andarilho de seus próprios passos, que encontrou no desconforto das ruas a voz para sua poesia. Há certo amadorismo na filmagem, a câmera por vezes oscila ao encontrar o enquadramento perfeito para narrar a história de Vidigal, mas pouco importa, pois a inquietude do filme se faz justamente na potência da fala, das referências que compõem o imaginário lúdico do artista, postas numa esfera híbrida entre o amadorismo e o “amar demais”. Nesse sentido, a opção de alternar entre o preto e branco e o colorido também nos ajuda a compreender um pouco a arte de Vidigal. Suas impressões de mundo ficam gravadas no monocromatismo da memória, mas sua arte, pinturas, performances e shows, condensam o universo de cores de sua agitada personalidade.
É um pouco nesse ritmo de multiplicidades que adentramos Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó), baseado na zine “O Sol de Icó não tem dó”, de Cleyton Xavier e Urutau Maria Pinto. Dirigido pelo trio Clara Chroma, Orlok Sombra e Cleyton Xavier, Rodson narra a peregrinação do protagonista homônimo (Orlok Sombra) pelo deserto ensolarado do Brasil distópico do ano 3000, sob companhia de seu fiel robô Caleb. Provavelmente, trata-se do filme mais absurdo da seleção, que não se envergonha da filmagem precária ou da falta de orçamento. Ao contrário, é na ilogicidade narrativa que Rodson alcança sua força e constrói uma trama absolutamente surreal e lisérgica, por vezes cômica, mas sempre interessante, sobre esse andarilho que vagueia numa distopia “anarcocrenty”, onde pastores pregam alucinadamente contra “comunistas cheiradores de cu”, cuja sobriedade simplesmente inexiste. Rodson é como Amador, que encontra na liberdade das ruas o sentido de sua existência e persistência no mundo. Ou ainda, sob a companhia de Caleb, remete ligeiramente a Peggy Gravel e Grizelda de Viver Desesperado (1977), de John Waters, ambas fugitivas da neurose rígida suburbana que descobrem na marginalidade insólita da comunidade de Mortville um espaço de resistência ao establishment.
Sob o sol de 2000°C, o jovem Rodson se depara com figuras diversas do submundo, como a polícia sadomasoquista, os pistoleiros milicianos, a banda Glamourings, Cavalona Dishavada e a gangue das Cavaletes. Se a sobriedade do argumento se perpetua nos demais cinco filmes da seleção, em Rodson o que impera é a absurdidade. O filme é composto por um reportório visual que amplia o campo do cinema; brinca com o videogame; flerta por momentos com a narrativa silenciosa, evocando o cinema mudo; transfere nossa realidade para esse futuro árido, onde redes sociais são os instrumentos perpetuadores da proibição artística e da intolerância religiosa.
Apesar da disparidade ilógica, Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) reflete o Brasil de hoje, em que igrejas neopentecostais utilizam-se do conservadorismo pútrido e corrupto para extorquir a população de suas riquezas e liberdades. Aqui, a ideia do futuro é precária. Não estamos em uma distopia onde a máquina impera com sua tecnologia avançada. Os cyborgues avançam na obscuridade, nesse mundo que – tomando de empréstimo a metáfora das três metades de Leo em Subterrânea – é meio humano, meio máquina e meio intolerância. A distopia é disfórica, e o futuro não é somente inóspito, mas ineficaz. Um pouco como aquele dos Morlocks de “A Máquina do Tempo”, de H. G. Wells, que sobrevivem às margens clandestinas no ano 802701. O grande trunfo de Rodson é a habilidade de empregar essa galáxia de referências, formas e composições numa montagem frenética e acelerada, assinada por Clara Chroma, e na trilha sonora, que indica uma espécie de faroeste do macrocosmo psicodélico, sem deixar de falar diretamente sobre o nosso próprio tempo e, quem sabe, o futuro.
É sob a órbita das distopias que Voltei! concentra sua trama. O filme, um roman à clef centrado no futuro próximo de 2030 sob o “regime do disparate”, acompanha a noite de duas irmãs, Bina, uma professora de história, e Alayr, uma delegada. Sob a atmosfera cálida da luz de velas, sequela da corruptela política que relegou o Brasil à escuridão, as irmãs conversam sobre seus dias; relembram a morte da mãe, uma esquizofrênica vítima da perseguição política, denunciada pela vizinha; bem como da irmã, Fátima, artista desaparecida, fuzilada pelo regime totalitário. Elas conversam sobre o passado enquanto escutam no rádio de pilha o julgamento e condenação do governo que implementou o golpe no país. Fátima retorna dos mortos, e as irmãs, agora reunidas, compartilham memórias, opiniões e melodias, devorando pratos de maniçoba, mordendo o violão.
O ambiente doméstico é flagrado pela câmera com evidente familiaridade e nos insere nessa conversa íntima, sempre próximos das personagens, sob a luz de uma fotografia que remete ao aconchego e ao lar. Apesar da deterioração da liberdade, expressa no filme pela escuridão avassaladora, a fotografia cálida entrega certo grau de acolhimento, e traz à mente aquela qualidade do chiaroscuro das cenas religiosas de Georges de La Tour. Um filme que fala sobre as angústias de viver na era da barbárie sem dar voz à insanidade. Em meio ao obscurantismo político de 2030, a casa das três irmãs acende a chama de uma lucidez urgente ante um mundo túrbido. Numa era de silenciamento, de povos marginalizados, as protagonistas são três mulheres negras que ocupam cargos de suma importância para nossa sociedade: a arte, a educação e a lei.
Irmã, por sua vez, primeiro longa de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, escrito em 2016, compreende um outro espaço, igualmente centrado sob a ótica feminina. Semelhante a Subterrânea, o longa reflete um Brasil de meteoritos, passado e história. Um road movie que se descortina no interior do Rio Grande do Sul, trilhando o caminho de duas irmãs, Ana (Maria Galant) e Julia (Anaís Grala Wegner), em busca do pai ausente, após o acometimento da mãe por uma grave doença. Filmado em Porto Alegre, Novo Hamburgo, Gravataí, Maquiné e Mata, os fósseis de dinossauros que perpassam a trama central refletem esses fantasmas paternais. As irmãs atravessam juntas as dificuldades da independência impostas pela perda. O fantástico pincela o drama cotidiano com cores pungentes, ao passo que Julia revela seus poderes sobrenaturais, capazes de atrair meteoros para a Terra. Irmã salienta a iminência de um futuro incerto, mas não impossível.
O Brasil de Olhos Livres, embora lide com tempos futuros ou pretéritos confirma as mazelas de um país contemporâneo, relegado à censura, ao silenciamento de minorias, ao absurdo que é viver sob um regime político que implode patrimônios, destrói vidas e dá voz à intolerância. Como escreveu Lima Barreto em “O triste fim de Policarpo Quaresma”: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.