Lea Monteiro
“Vertentes da Criação” é o tema da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O texto que descreve a temática, de Francis Vogner dos Reis e Lila Foster, fala sobre “novos pontos de partida” e “novos fundamentos para o mundo em que vivemos”. Entretanto, desde a estreia de Estrada para Ythaca (2010), filme repetidamente apontado como o marco inicial num processo de transformação nos modos de produção de longas-metragens brasileiros, em uma época em que a Ancine não conseguia romper com certo tipo de produção hegemônica e comercial de fazer cinema, o que os filmes que compuseram a Mostra Vertentes da Criação, realmente apresentam de “novo”?
Pedro Diógenes, que junto com os irmãos Pretti e Guto Parente, participou da direção de Estrada para Ythaca, traz o seu filme Pajeú (2020) para compor a Mostra Vertentes da Criação junto com os 8 outros filmes que aqui discutiremos. Sem o vigor de seu filme de estreia, Pedro Diógenes dá continuidade ao modo de produção independente[1] que parece perpassar sua filmografia. O filme começa flertando com elementos clássicos do terror. Uma figura fantasmagórica aparece no meio do Rio Pajeú nos sonhos da protagonista. Pajeú tem como tema central o problema do saneamento básico em Fortaleza. O rio, tratado como um ente de direitos, é concebido de forma similar com filosofias indígenas, sobretudo com as teorias latino-americanas do Bem-Viver[2]. A personagem desenvolve uma obsessão com o Pajeú e com o descaso que o poder público tem com o rio, transformado em um esgoto a céu aberto e desviado, a torto e a direito, em prol da construção civil.
A premissa interessante do filme é executada de forma que deixa a desejar. O terror cede lugar a um filme informativo repetitivo, em que o terror se torna apenas acessório. Pajeú acaba se tornando uma espécie de A Opinião Pública (1967), de Arnaldo Jabor, com o intuito de mostrar que a população local desconhece o rio que corta Fortaleza. Sem resolver seus conflitos, Pajeú deixa subentendido que o melhor amigo da protagonista é a figura fantasmagórica vista por ela em seus sonhos. O filme termina em uma cena de karaokê, com a personagem extravasando seus sentimentos ao cantar, mas não vai a lugar nenhum, uma vez que todas as cenas de karaokê me pareceram mais necessárias por preencher uma lacuna temporal, dando à obra duração suficiente para ser um longa-metragem.
Entre Nós Talvez Estejam Multidões (2020), de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, e #eagoraoque (2020), de Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, são filmes que possuem desejos parecidos. Debruçados sobre questões políticas que permeiam o debate público com uma intensidade cada vez maior desde a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, executam, de formas diferentes, suas reflexões sobre nossos tempos.
Aiano e Pedro Maia estabelecem uma continuidade com seus curtas-metragens anteriores, como Videomemoria (2020) e Na Missão, Com Kadu (2016), sedimentando as ocupações urbanas no centro de suas filmografias. Diferentemente do que ocorre nos curtas, que poderiam ser definidos, através de imagens captadas por celulares em meio a um verdadeiro horror provocado pelas forças estatais, como filmes de terror político, em Entre Nós Talvez Estejam Multidões, os diretores parecem buscar uma construção fílmica que conversa com outras tradições cinematográficas. Com uma mise-en-scène mais controlada, composta por enquadramentos precisos, o filme nos traz uma experiência que lembra Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho, ainda que os diretores não coloquem suas vozes no filme.
Aiano e Pedro Maia criam um mosaico dos moradores da Ocupação Eliana Silva. Espaço, pertencimento e subjetividade se confundem. Aqueles sujeitos são o Eliana Silva. Os enquadramentos da casa de cada um contam sobre aquelas pessoas tanto quanto o que elas estão dizendo sobre si mesmas. Se Videomemoria mostra cidadãos sendo expulsos violentamente pelas forças policiais de Minas Gerais, em Entre Nós Talvez Estejam Multidões temos a oportunidade de conhecê-los de perto, de forma tocante e sensível. Seus anseios e suas lutas pela moradia no Eliana Silva transitam de forma fluida, criando um filme que conhece bem a potência de cada um dos personagens para a construção de um universo próprio, que nos engaja diante da tela.
As lideranças da Ocupação Eliana Silva, Leonardo Péricles e Poliana do MLB, ganham especial destaque na obra e compartilham o respeito dos demais moradores da ocupação. O filme, ainda que mostre que não existe um consenso político na ocupação, uma vez que é formada por pessoas muito diferentes entre si, demonstra que há um centramento político e que aquelas lideranças, que ali vivem e compartilham das experiências políticas com os demais moradores, são formadas e reconhecidas de modo orgânico, diferente do que acontece em #eagoraoque.
#eagoraoque é um documentário que, em alguns momentos, se intercala com encenações ensaiadas um tanto toscas do ponto de vista de técnicas de atuação, mas que ilustram bem os pontos apresentados pelo filme. Bernardet e Rewald buscam apresentar as diversas contradições que permeiam a ação política organizada no Brasil que vivemos nos últimos anos. Bernadet parece colocar seu filho, Vladimir Safatle, no banco dos réus. O que está posto no filme são imagens de uma celebridade, um intelectual de esquerda, professor universitário, que dá palestra para milhares de pessoas no seio da universidade, mas que não consegue transformar seu conhecimento em ações políticas concretas. Safatle não consegue convencer nem mesmo seu pai ou sua filha de que o caminho apontado por ele, a partir de suas pesquisas, é o adequado, quanto mais um grupo de líderes das periferias paulistanas.
Assistir #eagoraoque e Entre Nós Talvez Estejam Multidões na mesma mostra deixa um sabor estranho em relação ao primeiro. Parece haver uma resistência muito forte da elite-branca-universitária em ceder o poder. Vladimir Safatle, nas cenas finais do filme, conversa com lideranças negras e periféricas de uma forma vertical, com uma escuta defasada, enquanto no filme de Aiano e Pedro Maia, as lideranças são estabelecidas de forma orgânica. #eagoraoque acaba não chegando em nenhuma conclusão. Deve-se alimentar o anti-intelectualismo e a desconfiança profunda em relação a professores universitários de classe média alta dispostos a lutar contra o neoliberalismo? É preciso buscar o autogestionamento, paralelo ao Estado, como fazem os espaços dos quilombos e das ocupações urbanas? O filme parece contrapor as duas posições.
As transformações sociais que viveu o Brasil nos últimos anos fazem com que os apontamentos de Bernardet para o presente sejam um tanto quanto ultrapassados. Se na época do Cinema Novo e do Cinema Marginal, Bernadet conseguia se engajar com sindicatos, hoje as pautas políticas são ditadas por agentes muito mais diversos que a organização sindical em si. A verborragia de #eagoraoque produz uma obra enfadonha e que usa de uma tática que, nesse ponto, já deveria ser unânime na esquerda como não-funcional: dar sermão não é uma estratégia inteligente para ganhar pessoas para uma causa, sejam elas quais forem.
Negro em Mim (2020), de Macca Ramos, é um documentário um tanto quanto convencional, que mescla performances artísticas e relatos de artistas negros das mais variadas artes. Passando pelo teatro, música, moda, artes visuais, entre outros, o filme cria um caleidoscópio da cena preta de São Paulo, com a exposição de trabalhos complexos e cheios de subjetividade, sempre em diálogo com a ancestralidade diaspórica africana. Entretanto, o filme falha em transitar de um artista para o outro. Falta certa fluidez ao mudar de assunto. As falas, por vezes, são cortadas muito abruptamente, e as performances artísticas, posicionadas entre um relato e outro na montagem, em vez de ajudar na transição, colaboram para a sensação de que o fio da meada é perdido o tempo todo. Mas, ainda assim, é mais bem-sucedido que Agora (2020), de Dea Ferraz.
Assistindo Agora, eu me lembrei de uma frase de Ismail Xavier, em que ele diz que não é porque um filme tem um tema que me interessa que o filme vai ser bom. Não há nada particularmente cinematográfico em Agora. Uma espécie de teatro filmado, não há nada ali que não possa ser encontrado em um teste de seleção para qualquer escola de teatro brasileira. Sem uma proposta estética, o filme espera que haja um engajamento por parte do espectador a partir de algumas frases prontas, apenas porque elas possuem valor ideológico. Agora nos apresenta nada além de uma câmera fixa, um estúdio e pessoas fazendo exercícios teatrais básicos e vazios, sem conexão uns com os outros. Vários artistas apresentam técnicas corporais e vocais impressionantes, é realmente uma pena que eles tenham sido acometidos por uma direção incapaz de trabalhar a potência dos seus próprios atores.
Para além dos longas, a Mostra Vertentes da Criação apresentou 3 curtas-metragens. Filme de Domingo (2020), de Lincoln Péricles; Uma Noite Sem Lua (2020), de Castiel Vitorino Brasileiro; e República (2020), de Grace Passô. Filme de Domingo nos traz uma mistura de linguagens. Há um diálogo muito forte com os signos do YouTube – que ilustra como, para as gerações futuras, a comunicação com a câmera vem de uma forma muito natural -, o musical – a premissa de que rap é compromisso já fora solidificada em outros filmes do diretor – o cinema experimental – estabelecido sobretudo na decupagem e na montagem -, e com o cinema mudo – através de letreiros. A ficcionalização é feita a partir de uma organicidade e naturalidade muito fortes trazidas pela personagem da criança, o que faz com que a rigidez dos diálogos entre os adultos fique muito mais acentuada. A criança nos faz questionar como fazer adultos recuperarem seus gestos naturais diante da câmera. Quando os adultos interagem com a criança, a fachada dura cai, pois diante da criança a organicidade é a regra.
Filme de Domingo aparenta, ainda que com o mesmo tipo de produção de baixo orçamento de outros filmes de Lincoln Péricles, traduzir sentimentos diferentes do tom de denúncia e revolta de Aluguel: O Filme (2015), por exemplo. Em Filme de Domingo há uma celebração das vidas de uma família preta, que nos toca através da afetividade compartilhada por mãe, filha e tio.
Uma Noite Sem Lua é também um filme híbrido, mas que, por sua vez, combina uma fotografia ultra estilizada com imagens de arquivo. Com uma experimentação visual estimulante, é um filme circular, espiral, com corpos sempre em movimento e com um controle rígido da mise-em-scène. Entretanto, acaba domesticado por uma narração que está presente na maior parte do tempo. A personagem declama um texto que, apesar de ter seus momentos potentes, é um tanto quanto redundante e acadêmico. Por vezes o texto acaba traindo a força que as imagens têm em si mesmas.
É em República que nos deparamos com o verdadeiro potencial criativo dessa mostra. Em seu curta-metragem, realizado durante o isolamento social, Grace Passô mais uma vez se solidifica como a maior atriz do cinema brasileiro contemporâneo. Não, não vou medir minhas palavras. Em República, Grace Passô traz não apenas sua experiência dramatúrgica do teatro, criando um enredo permeado por conflitos e sentimentos fortes, como também o corpo, a presença e a entrega que exige um palco de teatro, além de nos remeter a elementos cinematográficos do realismo ozuniano de suas experiências na Filmes de Plástico.
O filme começa com um tom muito realista. Mas o cotidiano logo ganha o tom absurdista que encontramos em suas peças teatrais. O Brasil é um sonho, ele só existe na cabeça de um xamã que vai acordar a qualquer momento. O alívio e a dor provenientes da constatação de que o Brasil não passa de algo sem materialidade física só podiam se fazer sentir com uma atuação do porte da que Grace Passô nos entrega.
A câmera, na maior parte de República, funciona como um plano sequência. Uma experiência que quebra com aquilo que o formalismo russo afirma ser o próprio do cinema, a montagem. A atuação sem interrupção se aproxima da experiência teatral, sem a fragmentação que caracteriza a atuação para o cinema. Quando o plano sequência é verdadeiramente interrompido, ele o é por uma figura que remete a imagens clássicas do cinema. Ela encena um ninja? Um gângster? Um viajante do futuro? Não se sabe. O que aparenta ser mais importante é que esse duplo da Grace Passô parece convocá-la. Já que o Brasil não acabou de fato, já que o que o sonho do xamã era apenas enredo para um filme, o que você vai fazer agora? “O seu Brasil acabou, o meu nunca existiu”.
Sinto que não poderia ter terminado as críticas com outro filme que não fosse República. Dentre todos, é o que, formalmente, mais brinca com signos já constituídos no cinema e os inverte, os manipula. Mas, no geral, acredito que o título “Vertentes da Criação” seja um pouco entusiasmado demais. O que eu vi talvez sejam Vertentes da Reafirmação. Não sei se consigo ver algo que de fato seja “novo”, como propõe o texto dos curadores. Para mim, o que assistimos foi a reafirmação de um processo que teve seu marco em Estrada para Ythaca, mas que, 10 anos depois, não encontra expoentes cinematográficos que realmente transformem esse estilo. O Novíssimo Cinema Brasileiro, com todo seu vigor, teve uma importância fundamental para resgatar modos de produção não industriais, para romper duras hierarquias econômicas e geográficas que dominavam a ANCINE na época. Mas eu me pergunto o que o cinema brasileiro independente tem para oferecer que de fato seja novo em uma época que suas narrativas já são massificadas pela Rede Globo, seja em novelas, seja em programas como o Big Brother Brasil, e pela publicidade e videoclipes milionários que têm condições muito mais robustas de brincar com efeitos especiais. Talvez falte nos diretores e demais criadores audiovisuais brasileiros um exercício de olhar com mais profundidade para experiências cinematográficas nacionais dos anos 60 e 70 ou experiências de outros territórios subalternos, como Hong Kong nos anos 80 e 90, para renovar nosso fazer cinematográfico. Olhar para além de um movimento cinematográfico brasileiro, iniciado há mais de uma década, que com toda sua importância política, parece ter se esgotado formalmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FOSTER, Lila. REIS, Fagner Vogner. Vertentes da Criação. Tiradentes: 24ª Mostra de Tiradentes. 2021. Disponível em: https://mostratiradentes.com.br/tematica/.
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, 2016.
BAHIA, Lia. Discursos, Políticas e Ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2012.
OLIVEIRA, Maria Carolina. Novíssimo Cinema Brasileiro: práticas, representações e circuitos de independência. Tese (Doutorado em Sociologia). UFSP, São Paulo, 2014.
XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Terra e Paz, 2001.
[1] Para uma discussão mais aprofundada sobre o cinema brasileiro contemporâneo, ver OLIVEIRA, Maria Carolina. Novíssimo Cinema Brasileiro: práticas, representações e circuitos de independência. Tese (Doutorado em Sociologia). UFSP, São Paulo, 2014.
[2] Ver ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, 2016. DUSSEL, Enrique.