MOSTRA SESSÃO DA MEIA-NOITE – A força da persistência de veteranos do horror

Beatriz Saldanha

Produção paulistana filmada, em grande parte, na cidade de São Paulo, Skull: a Máscara de Anhangá tem seu ponto de partida na descoberta de uma poderosa máscara pré-colombiana em um sítio arqueológico na Amazônia. O preâmbulo se passa em 1944, quando militares usaram o artefato em seus experimentos, que acabam dando muito errado. No presente, a máscara é encontrada e levada a São Paulo, onde deveria ser exposta em um museu com toda a pompa, mas é despertada em um ritual e se aloja no rosto de um incauto que, possuído por ela, promove um verdadeiro banho de sangue pela cidade. A policial Beatriz Obdias, uma mulher durona, porém atormentada pela culpa por algo hediondo que cometeu no passado, é encarregada de investigar a onda de assassinatos.

Skull tem direção coletiva de Armando Fonseca e Kapel Furman, sendo o segundo da dupla (Kapel tem um terceiro longa dirigido, Pólvora negra, que foi pouco exibido, mas se espera que um dia ainda seja lançado). Os dois, ao lado de Raphael Borghi, comandam o Cinelab, um reality show para a televisão a cabo que já soma três temporadas de sucesso. No programa, o trio orienta um grupo de aspirantes a profissionais dos efeitos especiais sobre como realizar cenas muito baratas com resultados surpreendentes. A trajetória de Kapel como maquiador remonta ao início dos anos 2000, quando trabalhou em dezenas de filmes importantes como técnico de efeitos especiais. Sua experiência com encenação de lutas também é um fator relevante em seu cinema, que costuma ser um híbrido de ação e horror.

Em Skull essa tradição de confirma. Diversas cenas de luta permeiam o filme, algumas delas ambientadas em pleno centro da capital paulista. Dentro do subgênero slasher (filmes de matança), exportado da cinematografia estadunidense, muitas vezes o que diferencia uma história da outra é a data comemorativa do ano em que a narrativa se passa. Já aqui há a criação de uma mitologia própria, tendo como base a cultura indígena, apoiada em uma aura mística que enriquece o personagem (as cenas que mostram o espaço possuem um encanto cósmico que seduz até mesmo os mais ferrenhos detratores dos efeitos em CGI).

Apesar dos méritos, Skull acaba se perdendo um pouco no registro caricatural. Há a tentativa de construção de uma anti-heroína na personagem da policial Beatriz, mas ela não desperta o menor sinal de empatia, mesmo que esteja fragilizada pela ferida que carrega na alma. Em algum lugar entre o desenvolvimento da personagem e a atuação da atriz Natallia Rodrigues foram ocultados seus sentimentos, suas intenções, o que poderia ter ficado um pouco mais claro com o famigerado recurso do voice over nas cenas em que está sozinha, já que seu desempenho não dá conta da ideia que a personagem precisa transmitir para o espectador.

Se Skull é essencialmente urbano, O Cemitério das Almas Perdidas se passa em um cenário rural, bem distante da selva de pedra. O Cemitério… narra a história de um jesuíta corrompido pelos irresistíveis poderes do livro negro de Cipriano (de quem assume o nome), um instrumento que lhe permite dialogar diretamente com o Diabo e lhe confere poderes sem limites. Ao ancorar com um grupo de missionários jesuítas no Brasil-colônia, Cipriano enfrenta os indígenas e inicia um reinado de terror, até que é amaldiçoado a ficar para sempre em um cemitério. Séculos mais tarde, uma trupe de atores chega ao local e termina encontrando os diabólicos jesuítas.

O Cemitério…, sexto longa-metragem de Rodrigo Aragão, surgiu de uma inspiração muito pessoal do diretor, que, quando criança, ouvia muitas histórias sobre o livro de São Cipriano e que um vizinho supostamente teria um exemplar em casa, o que provocava muito medo nas crianças do bairro. Amplamente comercializado, o livro, na verdade, pode ser encontrado nas banquinhas próximas da sua casa, mas continua fascinando Aragão, que começou a planejar O Cemitério… há muitos anos. Uma outra parte da história, sobre a trupe, também é baseada em uma experiência pessoal, de quando Rodrigo viajava com seu próprio museu de horrores. O diretor, assim como Kapel, é um reconhecido maquiador de efeitos dentro do cinema brasileiro, tendo começado a trabalhar na área ainda nos anos 1990. Sempre adepto de um cinema mais familiar, literalmente envolvendo sua esposa, filha e amigos na produção dos filmes, O Cemitério… é a sua maior e melhor produção até o momento – a evolução do diretor e de sua equipe a cada longa-metragem é impressionante, bem como o alto valor de produção deste filme.

Ainda que a história tenha personagens e elementos em excesso, o que a torna confusa, essa desvantagem fica em segundo plano devido à beleza das imagens e das ações. O elenco de O Cemitério… também vale ser celebrado: Renato Chocair, que fizera sucesso como galã global no começo dos anos 2000, interpreta o satânico Cipriano e se destaca em um elenco com excelentes nomes como Francisco Gaspar e Clarissa Pinheiro.

Parece que há um problema estrutural em O Cemitério…, com o terceiro ato se antecipando no que deveria ser o segundo, o que torna o filme exaustivo, apesar da razoável duração de 94 minutos. É como se houvesse um excesso de clímaxes e isso desgasta um pouco a experiência, mas, no fim das contas, a lembrança que fica é de uma sessão intensamente divertida.

Essa proposta mais de entretenimento e diversão é uma das caras do cinema de horror feito no Brasil, que é múltiplo e autoral por excelência. A mostra Tiradentes promoveu uma conversa intitulada “A poética do cinema de gênero”, conduzida pelo crítico Marcelo Miranda e da qual participaram, entre outros realizadores, Rodrigo, Armando e Kapel. Foi este último que disse a frase que resume uma das características mais bonitas, mas muitas vezes incompreendidas do horror: “Skull não é sobre violência urbana e real, mas sobre se afastar disso. Não é sobre sadismo, mas a plasticidade que o sangue possibilita”. Já Rodrigo e Armando, quando questionados sobre o futuro incerto da produção cinematográfica no país, incentivaram a realização de produções menores e caseiras. Aragão, inclusive, já está colocando em prática o que prega, realizando curtas baratos e divertidos durante o isolamento social, publicados em seu canal no YouTube.

Tiradentes, há anos, tem a responsabilidade de abrir o calendário dos grandes festivais de cinema nacionais, servindo como bússola do que devemos acompanhar na temporada, e embora em 2021 tenha exibido filmes que já haviam sido amplamente discutidos no ano anterior, ao menos não deixou passar em brancas telas as obras de realizadores que já há vinte anos têm insistido em mostrar que existe cinema de gênero no Brasil. Realizado em versão online, desta vez a “Sessão Meia-Noite” marcou apenas o horário de liberação dos filmes na plataforma, não dependendo de cinéfilos notívagos como espectadores, e confirmando que toda hora é ideal para um filme de terror.