Fugiu e foi ao cinema
Daniel Dalpizzolo
Injustiças que persistem em alguns círculos: Hong Sang-soo produz sempre o mesmo filme; o cinema de Hong Sang-soo é apenas banal e naturalista. Injustiças porque, a cada novo projeto, o coreano sempre dá um jeito de bagunçar estas convicções quando a obra finalmente chega ao olhar do espectador – que, em um primeiro momento, pode considerar um plano como o de uma mulher cortando lentamente uma maçã como apenas mais uma cena naturalista, mas não deverá manter a mesma impressão quando essa cena se repetir durante o mesmo filme, em outra situação e sob um novo contexto. Identificar a autoconsciência da repetição cíclica de gestos triviais permite não somente reavaliar certas convicções que se formaram em torno do cinema de Sang-soo; permite, também, identificar subtextos preciosos em seu cinema, em especial como as situações convocam o espectador a perceber nas imagens, sejam elas fabricadas ou espontâneas, motifs que transcendem a aparente banalidade de suas superfícies.
Se o fantasma de Um Corpo Que Cai (1958) sempre assombrou a obra de Sang-soo, seus trabalhos mais recentes sentem-se ainda mais à vontade ao lado de Janela Indiscreta (1954), obra-prima de Hitchcock sobre o olhar e o cotidiano – filme no qual um voyeur testemunha um assassinato com os olhos fechados, levemente adormecido, e atravessa o restante da história à procura de uma imagem que comprove e dê corpo à sua fantasia. Em algum lugar entre o sonho de James Stewart e os pequenos recortes da vida que ele testemunha através da varanda do apartamento, A Mulher que Fugiu (2020) dá continuidade a essa investigação de narrativas e imagens impossíveis, mergulhando em situações narradas de personagem para personagem por meio da fala, e que ganham corpo na imaginação do espectador – ele próprio convocado a escutá-las enquanto, em tela, observa uma maçã sendo cortada, uma carne grelhada no fogo ou alguém dando os últimos goles em um copo de bebida. Filmes de palavras, alguns dirão, mas que também poderíamos nomear, parafraseando Jorge Luis Borges, como filmes de imagens sonhadas, flutuando em um espaço compartilhado entre o cinema, a literatura e a fantasia.
Em A Mulher que Fugiu, como em Grass (2018) ou A Câmera de Claire (2017), a triangulação entre narrador, objeto e espectador ganha contornos ainda mais literais, à medida em que a personagem de Kim Min-hee, a jovem mulher que está longe do marido pela primeira vez em cinco anos (como ela mesma reafirma três vezes, para três mulheres diferentes), é deslocada ao papel de espectadora das histórias narradas, em companhia ao próprio espectador do filme. Durante as inéditas férias do relacionamento com seu marido, ela adentra residências de antigas amigas que, no conforto de seus ambientes domésticos, discorrem sobre casamentos fracassados, transas acidentais, stalkers insistentes, novas paixões e desejos. Algo entre os apartamentos de Mrs. Lonely e Mrs. Torso em Janela Indiscreta, a personagem-espectadora transita por pequenas histórias do cotidiano e presencia conflitos que brotam não apenas da relação com o outro, mas principalmente da relação com os homens – que, quando surgem em cena, interrompendo o bate-papo, ocupam o primeiro plano de costas para a câmera, bloqueando a nossa visão, quase sem pertencer ao filme.
Essa triangulação adquire novas camadas conforme as conversas avançam, acumulando repetições e coincidências, como a própria interrupção desses homens que, em outros tempos, seriam os reais protagonistas de um filme de Sang-soo – sujeitos inseguros, confusos, passivo-agressivos e desajeitados com mulheres, que tentam insistentemente conquistá-las ou convencê-las, e que aqui também são observados por uma perspectiva deslocada. É deste acúmulo de repetições e deslocamentos que surgirá a principal ruptura dramática da obra, ao final do terceiro bloco, quando a protagonista-espectadora ganha efetivamente o centro da ação, reencontrando, acidentalmente, um homem do passado e sendo, neste encontro, movida de espectadora a protagonista do drama, tendo seu próprio sentimento finalmente confrontado em tela. A oscilação da câmera, no momento em que seus olhos cruzam com os de seu antigo amante, remete ao momento em que o assassino finalmente olha no olho de James Stewart e, consequentemente, no do espectador, trazendo o observador para o centro da imagem.
A imagem, em A Mulher que Fugiu, ainda ganha em complexidade se considerarmos que os jogos estruturais de Sang-soo, fundamentais às narrativas de filmes como Turning Gate (2002), Conto de Cinema (2005), Certo Agora Errado Antes (2015)e Yourself and Yours (2017), se revelam cada vez mais sutis e metamorfoseados no plano, inundando as cenas com outras microcenas. Nestes filmes de personagens-espectadores, não somente o olhar e a audição são convocados a perceber a ação sob novas perspectivas, como o próprio cotidiano recebe intervenções diretas das imagens-dentro-da-imagem, sejam elas produzidas por câmeras de vigilância, projetores de cinema, portas ou janelas (os planos de paisagens que, com um pequeno zoom out, se transformam em planos de interiores, materializando as transições de dentro para fora dos ambientes), sendo os momentos mais notáveis a cena do abraço, no primeiro conto, a qual assistimos por meio da tela do circuito de vigilância interna do condomínio, e a cena final, quando, após Kim confrontar o fantasma de seu passado, a imagem que ela assiste, projetada na tela do cinema, ganha cores – e a câmera de Sang-soo aproxima-se da tela para torná-la o último plano do filme, ocupando toda a extremidade da imagem.
A cada novo trabalho, Hong Sang-soo refina esse método metanarrativo, transformando os próprios mecanismos na narração em leitmotiv, porém o faz de modo cada vez mais sutil e discreto. Nesse sentido, A Mulher que Fugiu aponta para caminhos frescos e ainda pouco explorados na filmografia do coreano. À medida em que a manipulação do autor sobre a história se apresenta ao espectador em cada detalhe, no modo como articula as repetições improváveis, as triangulações entre a narrativa e o espectador e as cenas-dentro-da-cena, seus planos têm se tornado mais austeros e misteriosos, inclusive, também, mais naturalistas, porém deitando na relva de uma ficção inesgotável. Algo como a imaginação de um voyeur ao espiar a vizinhança com um binóculo, adormecendo lentamente enquanto preenche cada janela com pequenas histórias. Ou como uma fuga até a sala de cinema, com as portas fechadas e o projetor apagado, para sonhar um filme na tela.