
Amor, afeto e algumas dúvidas
Leandro Afonso
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“O cinema é um olhar que se substitui ao nosso
para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos”
(Michel Mourlet)
Era uma vez… em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, nasce e morre entre a repetição e a reinvenção, entre o prazer da zona de conforto e o risco da coragem, num dilema próprio de quem já acertou na estreia (Cães de Aluguel, 1992), realizou um clássico instantâneo em seguida (Pulp Fiction, 1994) e foi refinando sua arte como (em ordem crescente de habilidade) roteirista, dialoguista e encenador, sem grandes deslizes, até atingir o ápice em Bastardos Inglórios, a última parceria com a montadora Sally Menke.
Coincidência ou não, após a morte dela, o cinema tarantinesco parece ter perdido em precisão, incluindo aí seu mergulho no conturbado contexto americano da família Manson. Esse cenário é essencial porque, diferente dos outros longas de Tarantino, o motivo real da vingança está menos na tela que na História, com agá maiúsculo. A dramaturgia cede espaço à memória. Tarantino parte do princípio de que nós sabemos, portanto podemos sentir a tensão pelo ataque iminente e, em consequência, o prazer pela vingança. Porém, em todos os seus filmes, a imaginação e a revanche são mais importantes que a História e, neste quesito, da fantasia como revisionismo, da lenda que se torna fato, ele está dentro da zona do conforto e da repetição. Quando é então que ele a deixa e como é que se sai?
Aqui Tarantino revisita a cidade e a época mais caras à sua formação, mas que são também o berço de um dos últimos ou talvez do último grande período criativo do cinema estadunidense. Num dos momentos em que Pussycat (Margaret Qualley) esboça o primeiro flerte com Cliff Booth (Brad Pitt), por exemplo, começa a tocar Mrs. Robinson, de A Primeira Noite de um Homem (Mike Nichols, 1967), num filme que trata justamente do oposto num instante histórico também na contramão do atual. Ali, a dois anos do que viria a ser Woodstock, uma mulher mais velha e casada se envolvia com um jovem que poderia ser filho dela, enquanto agora uma adolescente paquera um homem de meia-idade; hoje os EUA são governados por uma caricatura intolerante e desprezada mesmo por muitos que o apoiaram, enquanto na época eram liderados por um Lyndon Johnson que substituía o trágico e tão admirado John Kennedy. Em Era uma vez…em Hollywood, imediatamente antes de começar o refrão de Mrs. Robinson, tão marcante em sons e tão ligado à história do cinema e a uma era, vem o corte seco. Quando a nostalgia tende a tomar conta do filme, pulamos para meio século depois. Esse balanço, geralmente equilibrado, que traz a referência sem se prejudicar, recordando outro filme mas sem se afastar do seu próprio, tende a ficar mais complexo e difícil de manter nesse nível de comparação, e Tarantino demonstra ter clara consciência disso. Quando podemos pensar que ele se inebriará com as referências potencialmente maiores que o seu cinema, ele se contém.

Há outros horizontes de expectativas, claro, e um deles se apresenta escancarado no massacre final, mas achar que o melhor ou o mais puro Tarantino está ali (ou mesmo no jogo com as referências, uma espécie de piada interna para a cinefilia), é resumi-lo a uma sanguinolência que, por mais presente que esteja em seus filmes, está longe de representá-lo na sua integridade, ou mesmo no que ele tem de mais interessante. QT é sobretudo um grande entendedor da imagem, da combinação audiovisual, e podemos percebê-lo no seu melhor em pelo menos três sequências.
A primeira é o flash-back com Bruce Lee (Mike Moh); a outra é uma conversa sem palavras, apenas dosando enquadramentos e expressões, entre Cliff (Brad Pitt) e Pussycat (Margaret Qualley), que culmina num choro sinalizado; e a última é a no Spahn Ranch dos Manson, que remete diretamente ao maravilhoso uruguaio-espanhol ¿Quién puede matar a un Nino? (Narciso Ibañez Serrador, 1976): um grupo de crianças e/ou adolescentes aparentemente inofensivos mas que, juntos e com uma encenação precisa, podem se relacionar a danos infinitamente maiores que de jovens numa situação ordinária.
Na maior parte do resto do filme, Tarantino vai menos construir grandes cenas, menos investir na sua cuidadosa artesania audiovisual de linguagem, e mais tentar construir e mergulhar nos personagens. Segue o sempre rígido controle do quadro, mas agora há uma maior liberdade de imersão e tempos quase mortos, no que talvez resida o maior desafio autoimposto pelo diretor até agora. O cineasta que abraça a história do cinema como uma criança que acabou de se apaixonar por um brinquedo, aqui tenta investir menos no procedimento e mais no material, menos na grandiloquência das situações, menos no virtuosismo da linguagem, e mais nas nuances da celebridade que retrata. Não tem a mesma vitalidade, energia, vibração de outros filmes, mas até que ponto, dentro do que ele se propôs, poderia ter?

A cena que abre o filme mostra Rick Dalton (Leonardo Di Caprio) e o seu dublê como artistas, projetados numa outra tela, e é seguida por outra imagem do protagonista desenhada em sua casa, enquanto ele e seu duplo são agora acompanhados “apenas” pela câmera do filme. A mudança dada pelo quadro, pelo movimento, pelo ponto de vista cinematográfico, está presente já nos seus três primeiros filmes, mas aqui a questão da imagem é outra: como as pessoas enxergam Rick Dalton e como de fato ele é?
O filme é imagem e representação num nível diferente daquele a que QT se acostumou, que ele domina, o da (meta)linguagem. A relação “eu-cineasta com a minha ferramenta de linguagem” passa o bastão para o “eu-personagem com minhas imagens”, as projetadas e aquelas que outras pessoas fazem baseadas nas projetadas. É menos paixão e mais amor, menos energia e mais afeto, representado especialmente na amizade entre uma imagem (ator) e sua outra-imagem (dublê), entre um eu e um alter-ego.
Tarantino vai do conforto de quem poderia “só” brincar com sons e imagens, de quem sabe fazer isso como poucos no cinema, e vai ao risco de trabalhar com (sub)gêneros específicos, o bromance, o buddy movie, zonas por onde ele até passou, mas nunca fincou raízes. Agora, é o foco sobretudo no personagem, na crise alcoólica, no choro, na promessa não cumprida, mas como se dá esse foco?
A cena em que o personagem mais se abre, mais se expõe, mais traz nuances, é também a cena em que a montagem mais intervém, dando sinais de que a entrega a toda dor e angústia do personagem é menos importante que o riso causado por aquela situação. A vontade de Tarantino trazer (quase sempre) a comédia sobrepõe a carga dramática.

Na maravilhosa cena em que Bruce Lee enfrenta Cliff Booth, oscilando entre o cômico e as artes marciais, Tarantino escolhe o realismo cênico de longos planos. Na sequência em que a dor interna poderia ser expressa, Tarantino (em conjunto com Fred Raskin, essencialmente um diretor de filmes de ação) se abstém. Num filme de quase três horas, por quê?
Num dos momentos-chaves da parte final do filme, toca Out of Time, dos Rolling Stones. Uma possibilidade de analogia dela com o longa é conectá-la a um Tarantino se afastando de sua imagem já consolidada e se aproximando de outro cinema, fora de mão e de tempo, tentando falar sobre uma cidade e um instante já filmados incessantemente, buscando mais sentimento, mas seu receio de sentimentalismo acaba resultando num grande Frankenstein. Um filme estranho ligado a um passado forte e a uma tentativa de buscar um presente distinto, numa espécie de procura por uma identidade (sempre?) mutável. Mas não seria exatamente essa complexidade esperada de quando fazemos uma autoimersão, explorando as semelhanças e diferenças entre o que fomos, o que nos tornamos, e as imagens que fazem do que éramos um dia e do que somos agora?