Pensando em zumbis
Fábio Feldman
I
Algumas características recorrentes do cinema de Jim Jarmusch.
Em primeiro lugar, vale ressaltar que os filmes do diretor se constituem enquanto intricadas teias de relação intertextual, nas quais referências muito díspares dialogam, se atravessam, friccionam e se complementam. Tal diversidade é responsável por boa parte do humor e do caráter idiossincrático do mundo jarmuschiano – espaço aparentemente absurdo, ainda que povoado por toda sorte de estranhas coincidências.
As estórias que lá se passam tendem a possuir uma natureza um tanto episódica, lembrando uma grande e bela colcha de retalhos. Os personagens possuem naturezas distintas, mas os protagonistas tendem a dividir pontos em comum: são, geralmente, homens silenciosos, inacessíveis e algo alheios ao universo circundante. Além disso, são, quase sempre, outsiders, figuras que observam o entorno com um misto de admiração, confusão e leve desdém. As ações que perpetram e sofrem ajudam a compor um retrato singular dos Estados Unidos, desde sua fundação (como visto em Dead Man (1995)) até seu mais melancólico declínio (Ghost Dog (1999).
No que tange à forma, dois pontos devem ser mencionados. Primeiramente, Jarmusch sempre demonstrou grande interesse em representar momentos desdramatizados. Mais do que pelos instantes fundamentais da ação que concedem ao enredo um senso de progressão, Jim se interessa pelos entre-lugares, os redutos inabitados, as pausas grávidas, aquelas ocasiões em que a vida se desprega da linguagem e se desdobra de forma livre. O mundo jarmuschiano é um mundo, ao mesmo tempo, saturado e vazio, repleto de signos e silêncios.
Finalmente, vale destacar que todos os filmes do autor estabelecem uma relação ambígua com os gêneros cinematográficos. Nenhum escapa do gênero, mas tampouco se adequa plenamente. Há um recuo irônico que nos permite refletir a respeito das convenções, regras e variantes do jogo narrativo. Tudo em seus filmes é, simultaneamente, familiar e um pouco estranho, seguro e aventuroso.
O mundo que representa, portanto, com todas as suas repetições e padrões, é também marcado pelo mistério.
II
Muitas (se não todas) essas características fundamentais se encontram presentes também na última obra do autor, Os Mortos Não Morrem (2019). Trata-se de um filme de terror, gênero anteriormente visitado pelo diretor (ainda que de forma bastante diferente) em Amantes Eternos (2013), seu “filme de vampiro”. O enredo de Os Mortos… se passa em uma típica cidadezinha americana. Nela, somos introduzidos a uma estranha anomalia: formigas, galinhas, vacas, cães e gatos começam a agir de forma errática, contrariando as expectativas de seus donos ou daqueles que os observam. Um eremita, interpretado por Tom Waits, e que serve como uma espécie de narrador, examina o céu, as árvores, e detecta um clima pouco auspicioso no ar. Impõe-se um crescendo de tensão. Eventualmente, somos apresentados à premissa central: atividades destrutivas, executadas por companhias mineradoras, tiraram a Terra de seu eixo, resultando na gênese de outro fenômeno ainda mais insólito: a insurreição dos mortos-vivos!
Homenagem evidente a certo campo de filmes B, Os Mortos… opta, conscientemente, por negar a sutileza. A absurdidade da premissa, em realidade, concede ao filme um charme e uma graça particulares, também exalados do ambiente em que a trama se desenrola e da galeria de estranhas figuras que nele interagirão. Vemos, borbulhando num caldeirão intertextual, personagens tirados de filmes de samurai, elementos de comédia screwball, Senhor dos Anéis, Star Wars, Pirandello, Melville, sabedoria zen, niilismo existencialista e country music. E, obviamente, acima de tudo, há a enorme sombra de George Romero. Assim como o redefinidor essencial do subgênero de filmes de zumbi, Jarmusch ambiciona fazer de seu pequeno filme, com seus exageros e particularidades pitorescas, um espelho da realidade circundante.
Dito isso, é importante salientar que a crítica que se encontra no cerne de Os Mortos… não poderia ser menos focada. Jarmusch tenta pintar uma imagem ambiciosa do presente, apontando para o estado da América de Trump, a polarização política, a obsessão contemporânea com a tecnologia (que nos transforma em zumbis… get it?), a crise dos opiáceos, o excesso de consumismo, a ameaça ambiental, etc. E ao falar um pouco sobre tudo, acaba não dizendo muito sobre nada.
Parece-me inegável que, geralmente para seu demérito, uma certa impressão de desorganização e falta de coesão acomete Os Mortos… Pela primeira vez, a colcha intertextual de seu autor parece um tanto puída, ainda que vários momentos que a constituam sejam bastante engenhosos e divertidos. Sim, não nego que se trata de um filme muito simpático, com alguns momentos realmente engraçados. Porém, aquele delicado senso de organização interna, aquela alquimia muito especial, responsável por conceder a um todo altamente volátil e discordante uma organicidade plena, me parece estar algo ausente aqui.
III
Outro aspecto importante: nenhum filme de Jarmusch funcionou tanto como meta-comentário acerca de um gênero quanto Os Mortos Não Morrem. Trata-se de um filme (excessivamente?) cônscio das regras que o compõem. Essas, inclusive, são muitas vezes explicitadas pelos próprios personagens. Não há aqui nenhuma pretensão naturalista: desde o primeiro plano, encontramo-nos no interior de uma Obra, um constructo intertextual que se alimenta de topoi alheios – por vezes os ridicularizando. Tal operação pode ser lida como constante no cânone jasmuschiano, mas se outros filmes eram marcados por desconstruções sutis, aqui a operação se dá de modo bastante brusco. Poder-se-ia dizer que Jarmusch nunca se aproximou tanto do Godard da primeira fase, mas onde em Godard havia uma intenção brechtiana de subversão da estética clássica, aqui há apenas uma forma meio oca de ludismo: autorreferencialidade como base para gags.
A “experiência” metalinguística menos bem-sucedida do filme me parece ser também sua mais radical. Os dois policiais que, de certa forma, agem como protagonistas, possuem várias das características definidoras dos heróis de Jarmusch. Porém, enquanto dialogam, demonstram, aos poucos, uma certa noção acerca dos rumos da própria trama a que estão submetidos. Centelhas de consciência vão, aos poucos, configurando uma returning gag. Ronnie, personagem interpretado por Adam Driver, defende que a canção de Strugill Simpson tocando no rádio é a “trilha”; ele repete várias vezes que as coisas terminarão mal, adágio interpretado por Cliff (Bill Murray) como dotado de um significado profundo e secreto; no ato final, preso dentro de um carro circundado por zumbis, Ronnie admite já ter “lido o roteiro”. Nesse momento, o filme lança seus heróis numa área interseccional: não são mais personagens, mas tampouco são atores. E a quarta parede, que vai sendo lentamente fissurada ao longo da projeção, é demolida por completo. Os dois policiais acabam se tornando os outsiders definitivos, expondo uma percepção crítica acerca da natureza do próprio filme a qual pertencem. Eles não se encontram apartados apenas da sociedade, mas da própria realidade.
Essa gag metalinguística/metafísica, tão longa, amplifica ainda mais o senso de artificialidade que atravessa Os Mortos… – nesse ponto, mais um filme de zumbis sobre filmes de zumbis do que um filme de zumbis per se. E é, justamente, essa implacável aposta no artifício puro o calcanhar de Aquiles da obra. Parece-me que seus melhores momentos são, justamente, aqueles em que Jarmusch se sente mais à vontade: os lacônicos instantes de interação estabelecidos entre os policiais, a representação exuberante da dona da funerária (interpretada por Tilda Swinton), os dias de solidão do eremita Bob, os passeios de carro noturnos em uma cidade devastada por mortos-vivos.
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Há muito a se admirar na última criação de Jarmusch. A estrutura episódica, com seus núcleos variantes de personagens, lhe assegura certo frescor (ainda que nem todos os núcleos funcionem muito bem – o que envolve os garotos no orfanato, por exemplo, me parece ser completamente prescindível). Algumas das piadas internas, envolvendo Adam “Kylo Ren” Driver e a Tilda Alienígena são inventivas, e as habituais colisões entre mundos textuais diferentes conseguem, por vezes, produzir efeitos interessantes. Porém, a falta de foco (tanto em termos de tema quanto de forma) e a insistência no uso de certos procedimentos modernistas que nada fazem além de esgarçar a tapeçaria narrativa, afetando sua coesão interna e lhe oferecendo pouco em troca, concedem a Os Mortos Não Morrem um tom irregular. Trata-se, portanto, de um filme perpassado por bons momentos, mas, ainda assim, menor, quando pensado à luz da filmografia de seu diretor.
Dito isso, a cena final, com a narração de Waits sobre as imagens dos zumbis devorando os protagonistas, se destaca enquanto um dos grandes desfechos de qualquer narrativa jarmuschiana. We are in a fucked-up world, after all.