
Giulianna Ronna [1]
A consciência gráfica de uma escrita que traduz forma, natureza e feitio, equivalendo ao gesto que organiza e direciona um pensamento, uma inscrição, se replicada no cinema aproxima-se do termo cinescrita, criado por Agnès Varda para particularizar sua concepção de linguagem cinematográfica. Para a cineasta, ‘escrever é estilo, e no cinema estilo é cinécriture’.
Agnès Varda transitou por diferentes formatos e gêneros, ao longo de mais de meio século de intenso trabalho. Com uma produção contínua e diversa, sua obra é marcada por características muito particulares, através das quais a narrativa é constantemente subvertida a favor da sua escrita fílmica.
O cinema vardiano se legitima na expressividade e autenticidade que emergem da composição dos elementos presentes na imagem. Nada está ali sem finalidade, tudo é escolhido com rigor e precisão, compondo uma geografia interna que dá ritmo ao arranjo. São decisões atentas e estruturadas pela própria cineasta que assina, na grande maioria dos seus filmes, não apenas direção, como também roteiro, narração e montagem.
Seu primeiro filme, La Pointe Courte (1954), foi realizado cinco anos antes do início oficial da nouvelle vague, chegando a ser indicado por alguns autores (FARMER, 2009) como o primeiro filme do movimento, pois, marcado pela ampla liberdade de estilo, o trabalho já demonstrava a forma como a cineasta realizaria e ‘assinaria’ seus filmes, expondo, de antemão, o aspecto autoral tão caro aos manifestos cinematográficos da época.

Comparado a um romance, o filme ganhou destaque pelas suas marcas literárias. Assumidamente, Varda buscou inspiração na obra “Palmeiras Selvagens” (1939), de William Faulkner, absorvendo a dupla narrativa que se apresenta no livro e aplicando-a no filme. Ao mostrar a história de um casal (interpretado por Philippe Noiret e Sylvia Monfort) visitando a ilha de Sète e, em paralelo, o cotidiano dos pescadores e moradores locais, Varda já misturava ficção e documentário, algo que se repetiria ao longo de toda sua obra, bem como fragmentos e inspirações autobiográficas: a cineasta viveu em Sète entre 1940 e 1944 em um barco com a família, ao deixarem a Bélgica fugindo da guerra.
A ideia de um cinema com maior liberdade de estilo, favorecendo uma escrita particular, marcada pela forte presença narrativa, experimental, pessoal e social, refletirá nos trabalhos seguintes da cineasta. Entre 1958 e 1965, Varda realiza alguns curtas documentais como Ô Saisons, ô Châteaux (1957), A Ópera Mouffe (1958)e Du Côté de la Côte (1958),e os longas Cléo das 5 às 7 (1962) e As Duas Faces da Felicidade (1965), apontados por críticos como obras importantes para a compreensão desse cinema autoral, social e político.
Embora com um conhecimento cinematográfico anterior restrito, se comparado ao padrão de cinefilia dos cineastas da novelle vague, Varda chegou no cinemacom um trânsito significativo pelas artes plásticas, fotografia e literatura, fazendo seus filmes ganharem, rapidamente, o respeito e a aprovação da crítica especializada pela densidade estética que demonstravam.
Exemplos dessa mestiçagem artística aparecem ao longo de sua carreira de variadas formas. Em relação à fotografia, posso citar, como exemplos importantes desse rastro fotográfico, Cinevardaphotos, umatrilogia de filmes realizados a partir de fotografias, composta por Saudações aos Cubanos (1963), um retrato filmado a partir de três mil fotografias de viagens; Ulisses (1982), abordando a memória e o esquecimento a partir da reflexão sobre a imagem fotográfica; e Ydessa, les ours et etc… (2004), sobre uma colecionadora de fotografias amadoras dos séculos XIX e XX. Não podendo deixar de mencionar as fotografias recorrentes como parte da diegese, presentes na galeria e nos cartões postais em Uma Canta, a Outra Não (1977).

Já a pintura é recorrente desde La Pointe Courte, com a escolha da atriz Sylvia Monfort por sua semelhança com as mulheres retratadas pelo pintor italiano Piero della Francesca. Em Cléo das 5 às 7, Varda busca inspiração nas pinturas do alemão Baldung Grien; As Duas Faces da Felicidade (1965) carrega o impressionismo em suas cores; Os Renegados (1985) é comparado à uma pintura do quattrocento (MCGUIRE, 2004).
Em 1967, Varda mudou-se para os Estados Unidos com o então marido Jacques Demy, proporcionando à cineasta o contato com algumas questões políticas e sociais, sobretudo com o universo feminista, a partir de uma visão anglo-saxônica, que convocava um aspecto mais austero e desafiador do que a diretora estava habituada na França (LETORT, 2014).
Como resultado, os filmes dessa época são marcados por temáticas sociais e feministas, como os documentários que retratam a luta social e política dos ativistas do movimento Panteras Negras. Varda residia na Califórnia quando o líder do grupo Huey P. Newton foi preso, acusado de matar um policial em 28 de outubro de 1967. A cineasta realizou dois trabalhos sobre as manifestações em apoio a ele: Huey (1968), em preto e branco, mostrando a campanha Free Huey, durante o comício organizado em 17 de fevereiro de 1968; e Panteras Negras (1968), colorido, mostrando as atividades do movimento, sempre destacando o papel das mulheres afro-americanas que trabalhavam pelos direitos coletivos nas comunidades oprimidas.
Nos trabalhos sequenciais, Varda passa a abordar frontalmente os direitos das mulheres em questões relacionadas ao sexo, aborto, trabalho e maternidade, como no documentário Resposta das Mulheres: Nosso Corpo, Nosso Sexo (1975), e no longa Uma Canta, a Outra Não (1977). Em decorrência, o engajamento feminista torna-se uma constante no cinema vardiano, algo que, para a cineasta, passa pelo filmer en femme, quando as imagens das mulheres devem ser feitas apenas por mulheres, um “laboratório de uma escrita fílmica no feminino” como sugere Preto (2007, p. 6).

Neste cinema pautado por questões sociais, históricas e políticas, Varda sempre encontrou lugar para referências autobiográficas, como em Documentira (1981), no qual, retornando aos Estados Unidos, deixa transparecer um pouco da sua história pessoal. No filme, uma francesa recém-separada, interpretada por Sabine Mamou, reinicia sua vida com o filho de 8 anos, interpretado pelo próprio filho da cineasta, Mathieu Demy.
Em diálogo com essa proposição, alguns anos depois Varda realiza Sem Teto, Nem Lei, sobre a outsider Mona, interpretada por Sandrine Bonnaire, vivendo os ideais de ‘liberdade’ das décadas anteriores. Com uma crítica sociopolítica e uma ampla reflexão sobre a condição feminista, a cineasta apresenta a personagem em um percurso que vai desestabilizando os costumes, as normas e as regras sociais.
Assim como os trabalhos anteriores, a construção narrativa dos filmes desse período propaga-se por deslocamentos que partem de um eixo inicial e vão se associando a outras camadas, no caso, de cunho social e político. Se antes estas digressões estavam relacionadas às experimentações iniciais, ao filme-ensaio, descobertas de uma cineasta iniciante em plena nouvelle vague, depois disso passam a refletir as características mais robustas e permanentes da sua cinescrita.
Varda estrutura seus filmes incorporando um fluxo de associações que inicialmente parecem livres, mas estão rigorosamente amarradas ao eixo temático principal. Estes deslocamentos, muitas vezes, partem de elementos variados, convocando novas leituras relacionadas com as pontuações pretendidas, sejam elas sociais, políticas ou pessoais.
Sob a forma de digressões, as narrativas desenvolvem-se em um território heterogêneo, no qual o espectador é levado a transitar por uma justaposição de imagens e textos, desenhos, pinturas e fotografias. Se ficamos livres para buscar novas associações, é por que os filmes, em suas composições, estruturam este percurso pelos deslocamentos que oferecem.

Nos anos seguintes, com Varda ainda separada de Demy, as temáticas dos filmes percorrem questões ainda mais autorreferenciadas. Os filmes O mestre do Kung-Fu (1987) e Jane B. Por Agnès V (1986) compõem um retrato cinematográfico da mulher de 40 anos, independente, solitária, melancólica e produtiva. O primeiro, uma ficção, traz novamente o filho da cineasta no elenco. O segundo é um documentário estruturado em curtas representações e testemunhos da atriz, modelo e cantora Jane Birkin, em diálogo com a própria Varda.
Após um longo período afastados, Varda e Demy reatam o casamento no final dos anos 1980, o que vai influenciar diretamente a produção seguinte da cineasta. Demy, já muito doente, inicia uma viagem ao lado da esposa por diversos lugares do seu passado, revisitando importantes paisagens da sua infância. Juntos, constroem um projeto para dar forma cinematográfica à biografia detalhada de Demy em Nantes, Jacquot de Nantes (1991).
Mesmo debilitado pela doença, Demy esteve presente durante todo o processo, acompanhando as encenações que Varda construía das suas memórias, vindo a falecer duas semanas após o término das filmagens, em 1990. Na sequência, Varda realiza mais dois documentários inteiramente dedicados ao marido, Les Demoiselles ont eu 25 Ans (1992) e O universo de Jacques Demy (1995), homenagens que também aparecem nas instalações artísticas que ela realiza na década seguinte.
Segundo Conway (2015), a experiência do luto e as viagens ao lado do marido nutriram uma nova fase da carreira de Varda, que passa a abordar, em seus trabalhos, as paisagens e seus habitantes – em sua maioria os marginalizados –, ao mesmo tempo em que começa a refletir sobre sua trajetória como fotógrafa, cineasta e artista visual.

É com Os Catadores e Eu (1999) e sua sequência, Les Glaneurs et la Glaneuse… Deux Ans Après (2002), que Varda consolida seu estilo como documentarista comprometida com o social e o político. Combinando sensibilidade, ironia e bom-humor, a cineasta coloca-se na frente das câmeras, trazendo reflexões sobre si mesma, sobre a passagem do tempo, o apagamento e a manutenção da memória.
Para a cineasta (CONWAY, 2015), ao filmar os catadores, na tentativa de retratar o desperdício, acabou encontrando muito de si mesma, muito da ‘catadora de imagens’. Dessa forma, a partir das digressões autobiográficas; da narração que pontua e conduz o espectador; da justaposição de referências visuais, funcionando como vestígios de uma multiplicidade de vozes, Varda atualiza uma das principais características da sua cinescrita: fundir o social e o político com suas próprias experiências e reflexões.
Este compromisso foi sendo construído e elaborado num contínuo ao longo de toda sua carreira e está explicitamente estruturado no documentário autobiográfico As praias de Agnès (2008). O filme, organizado em uma disposição heterogênea e fragmentada, conta a história da cineasta, a partir das imagens dos seus filmes, depoimentos e algumas encenações das suas vivências, por vezes, falando mais sobre o mundo, o político e o social, do que a trajetória pessoal e profissional da realizadora. O mesmo ocorre em seus dois últimos trabalhos, Visages, Villages (2017) e Varda por Agnès (2019).
A longa trajetória de Varda é marcada por uma continuidade e unidade no seu método, com raras rupturas estéticas, como observa Conway (2015). Sua forma de realizar repete-se ao longo de sua carreira, funcionando como uma costura entre todas as fases da cineasta.

Agnés Varda concebeu um cinema provocativo, acionando diferentes pontos de escuta, em um percurso feito de associações e dissociações. Vida e obra estiveram sempre alinhadas, em ressonância com seus processos criativos, compondo uma estilo que favoreceu as digressões e provocou reflexões, dando espaço para a improvisação em uma estrutura rigorosamente preparada, na qual o significado nunca foi o foco principal e sim a imagem, já que em sua cinescrita, por si só, as imagens significam.
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REFERÊNCIAS
CONWAY, Kelley. Agnès Varda. Champaign/IL, Estados Unidos: University of Illinois, 2015.
DeRoo, Rebecca J. Agnes Varda between Film, Photography, and Art. Berkley/CA, Estados Unidos: University of California Press, 2008.
FARMER, Robert. Marker, Resnais, Varda: Remembering the Left Bank Group. Disponível em: <http://sensesofcinema.com/2009/feature-articles/marker-resnais-varda-remembering-the-left-bank-group/> Acesso em: 14/ago./2017.
LETORT, Delphine. Agnès Varda: filming the Black Panthers’s Struggle, L’Ordinaire des Amériques [En ligne], 2014 URL: http://journals.openedition.org/orda/1646; Acesso em: 20/ago./2017.
MCGUIRE, Shana. Cinécriture et cinépeinture chez Agnès Varda, 2004. Disponível em: <https://ojs.library.dal.ca/initiales/article/view/5160> Acesso em: 22/jun./2017.
PRETO, António. Elogio Da Curiosidade Laudatio Agnès Varda, 2017. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/ijfma/article/view/5436/3426>. Acesso em: 12/dez./2017.
[1] Mestre em Comunicação pelo PPGCOM/PUCRS (2019). Especialista em Expressão Gráfica pela PUCRS/FAU (2008). Participa do Kinepoliticom (CNPq): Grupo de Pesquisa em Cinema, Audiovisual, Estética, Comunicação e Política.