O caminho da morte
Adolfo Gomes
“(…) Seu firme andar de passos gráceis, dentro dum círculo talvez muito apertado, é uma dança de força cujo centro ergue-se um grande anseio atordoado”.
Rainer Maria Rilke
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“É preciso estar morto para ser realmente um criador”.
Thomas Mann
É uma trajetória de morte, ou antes: um desejo de extinção. Cada passo milimetricamente fatal, dolorosamente sentido. Os Encontros de Anna (1978), de Chantal Akerman, situa-se algo além da tristeza, do vazio, da solidão; assim como o corpo, já há muito abandonado pela vida, se dirige, na crueza dos planos, na decupagem quase ritualística – um ritual rilkeriano (“…até verter nela a minha alma, enfim”) – para uma forma intransigente de automatismo.
Um autômato que, contrário à sua natureza, tudo sente, mas sem poder compartilhar, transmitir. No caso aqui, falamos da cineasta imantada por Aurore Clément. A ela, só cabe prosseguir fiel à sua própria encenação do fim. Sobre os instrumentos que dispõe para se personificar – os filmes que faz, por exemplo – não sabemos nada. Temos, forçosamente, que imaginá-los, e provém daí o vínculo criado entre nós e essa estranha personagem que a todo tempo (sob a aparência da frieza) recusa a nossa empatia, mas que, ao cabo do percurso, nos leva a sentir que poderíamos ter morrido com ela. E morremos um pouco, sim.
Não fosse pela presença epifânica da música e nos seria insuportável tal deslocamento – é quando a personagem de Clément oferece, em seu derradeiro encontro com Jean-Pierre Cassel, essa espécie de canção de ninar, vivificando seu semblante por uma ocasião única e fugaz durante o filme (o suficiente para nos preencher de esperança naquele momento).
Há quem considere, com a objetividade que requer a análise de um filme, que Os Encontros de Anna traga, em subtexto desencantado, um panorama do pós-guerra e das feridas abertas por esses conflitos mundiais em grande escala. Mas todo cinema realizado na segunda metade do século passado, de alguma maneira, reverbera esse trauma, e não seriam duas ou três conversas – notadamente o encontro primeiro de Anna com seu “amigo alemão” e, posteriormente com a sua mãe – o que particularizaria a experiência dilacerante que é entrar em cada cômodo, cabine de trem, carro e até mesmo varanda; como quem reconhece os contornos inescapáveis do seu ataúde.
Chantal Akerman está sempre ao passo esquivo do que a mera reflexão analítica pode nos proporcionar. Se é um filme tão imiscuído de morte, é que a vida parece não ser grande o suficiente para nos trazer todas as respostas. Essa é a constatação da sua protagonista, essa é sua aflição. O quanto isso nos afeta como espectadores, naturalmente, é variável – vai depender do quanto já se viveu até aqui a ponto de reconhecer a morte como uma possibilidade de entendimento das coisas, o último e definitivo entendimento.