
O Nordeste é uma ficção
André Berzagui
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Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem:
Conheço o meu lugar
(Belchior, “Conheço o meu lugar”)
Era de se esperar que surgissem críticas a Bacurau apontando um espelhamento entre as ações do filme e os recentes acontecimentos políticos do país. Toda obra enfrenta o contexto do momento em que veio ao mundo, algumas por mérito (ou não) persistem e são debatidas em circunstâncias futuras. É o caso de Aquarius (2016), filme anterior de Kléber Mendonça Filho, cujo timing não poderia ter sido mais oportuno: história de uma mulher que luta para permanecer em um espaço que é seu por direito, tal como Dilma em seu governo durante o processo de impeachment.
Trazendo consigo essa imagem de diretor engajado, muitos esperavam que seu filme seguinte(co-dirigido com Juliano Dornelles) se propusesse a discutir o atual panorama político brasileiro. Não que o filme não se proponha a isso, nem que leituras como essa sejam equivocadas. Mas diante de uma ânsia por manifestações que façam frente ao governo Bolsonaro, tais interpretações tornam-se simplórias. Todavia, Bacurau se mostra muito consciente da história cinematográfica nacional. Ao mesmo tempo, se propõe a explorar códigos particulares do cinema de gênero, sobretudo norte-americano.
“Por que sempre que aliens visitam a terra, eles vão para Washington?”, era o que me perguntava quando criança. Bacurau inicia reivindicando esse lugar, a câmera que sobrevoa o universo, deslizando até encontrar a Terra, apresenta o Brasil em foco, um ser “não Identificado” que nos convida a acompanhar sua narrativa. Em um mergulho, a câmera se lança hipnotizada em direção ao país do Hemisfério Sul com dimensões continentais, concluindo que o planeta vai virar sertão! Não se trata de buscar nessa “eloquência” uma necessidade de exploração dessas zonas obscuras. Pelo contrário, a ideia é demonstrar que essa centralização de pensamento/olhar está ao alcance de todos. Aterrissamos no sertão porque, dentre todos os cantos do mundo (incluindo Washington), só em Bacurau – cidade onde quem nasce é “gente” – há a certeza de que “tenho coisas novas, coisas novas pra dizer”, como cantou Belchior.

O povoado de Bacurau encontra-se em luto. Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), a matriarca da cidade, acaba de falecer e todos reúnem-se para o cortejo do velório. Sua partida deixa os moradores desemparados, já que era o alicerce de toda uma comunidade que agora precisa se reconstruir. É possível estabelecer como metáfora ao filme o próprio cinema brasileiro que, em sua historiografia, teve de lidar ciclicamente com rupturas, carregando consigo a necessidade de lutar. Talvez esteja aí o maior paralelo do filme com o atual momento vivido. Os ataques do atual governo à produção cinematográfica põem em xeque tudo que foi construído nos últimos anos, somados à inundação de obras norte-americanas nas salas locais, fator que também atua em função do nosso apagamento. Porém, é importante a consciência de que somos cria dos famintos do Terceiro Mundo. A história do nosso cinema é constituída por recomeços e resistência. Dessa necessidade, Bacurau construirá sua narrativa.
Assim que adentramos Bacurau junto com Teresa (Barbara Colen), personagem expatriada que regressa à cidade, a montagem aposta numa cacofonia entre os planos, acentuada também por fusões, como a do caminhão-pipa que assume o quadro na decorrência do seu deslocamento lateral. De início, somos incitados a entender que estamos diante de uma obra cinematográfica. Não se trata de uma experiência de abstração, na qual a linguagem se engaja de forma transparente para o espectador. O que interessa a Bacurau é o próprio cinema, e o filme faz questão de evidenciar sua linguagem quase o tempo inteiro. Quando os moradores, diante do iminente ataque, se reúnem para dançar capoeira, Night, do Carpenter, assume a trilha, abafando o cântico proferido por eles. Diferente de “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, em que a capoeira é filmada de forma exótica e turística, em Bacurau, é um rito ao qual Mendonça e Dorneles se apropriam para integrá-la ao cinema de gênero.
Bacurau perpassa pelos diferentes gêneros como o horror de Carpenter e a ação de John Woo; todavia, usa a influência desses diretores para um movimento que aponta para outras resoluções. Em “O Alvo”, de John Woo, cuja premissa é semelhante, pessoas ricas pagam para poder matar pessoas pobres. Fica a cargo do personagem de Van Damme salvar o dia, concepção norte-americana de vitória individualista meritocrática. Contrário da situação que passam os bacurenses, nela só há chance de vitória se houver união. Difere-se também do protagonista carpenteriano com o rosto tão marcado ao contraponto do mal que se move sem uma identificação. Em Bacurau, estrutura-se o inverso. Michel (Udo Kier), o vilão alemão-americano, é o rosto mais marcado, enquanto os moradores do vilarejo opõem-se como grupo, por mais que dividam o protagonismo em certos momentos, tal como ocorre em Pedreira de São Diogo (1962), curta de Leon Hirszman em que um grupo de trabalhadores triunfa sobre o patrão, porque diferentemente da concepção norte-americana de mérito e individualismo, nós, os subdesenvolvidos, aprendemos através da nossa história que para sobrevivermos precisamos resistir coletivamente.

“Por que vocês tão fazendo isso?”, pergunta de caráter quase inocente que evidencia a disparidade entre os gringos e os bacurenses. Não é a língua que impede que Michel e Domingas (Sônia Braga) se entendam, é a compreensão que ambos têm de si mesmos. O direito de denominar o outro terrorista é o prêmio de quem ganha, afinal a História mostra que as narrativas sempre foram contadas sob o ponto de vista dos vencedores; para quem perde, a violência será sempre intitulada barbárie. Se qualquer tentativa dos estrangeiros explicarem suas motivações pareça a nós injustificada, a incapacidade deles encararem os bacurenses com dignidade soa incontornável. A questão não é a ausência de justificativa dos que atacam, mas a impossibilidade de entendimento daqueles que quando pegam em armas o fazem para proteger o próprio espaço. Existem aqueles que comprando a narrativa estrangeira chamam a resistência de barbárie. A incompreensão, portanto, é uma batalha cultural.
O primeiro alvo dos estrangeiros é Darmiano (Carlos Francisco), que encontra-se pelado em meio às plantas que cultiva, imagem do homem selvagem que remete ao primitivismo. Conscientes desse imaginário dos subdesenvolvidos, Mendonça Filho e Dornelles partem ao contra-ataque. A descolonização do olhar estrangeiro começa por Darmiano, que cuida de seus vegetais dentro de uma estufa, possuindo total controle sobre eles, e, tal como os demais, estará dentro de casa e armado à espera dos matadores. Releitura também do cangaceiro por Lunga (Silverio Pereira) e sua androginia. Numa cidade que preserva seu museu, um novo ciclo surgirá consciente de seus antepassados. O sertão, terra de batalha, resiste como sempre resistiu e resistirá, assim como nosso cinema. Alguns quiseram classificar Bacurau como Western por se tratar de um filme de cerco, não sei… essa luta diz respeito a nossa realidade, então prefiro chamar de Nordestern mesmo!