Tentando salvar Mank
Cícero Pedro Leão
O novo filme de David Fincher, Mank (2020), mostra Herman J. Mankiewicz no processo de escrita de Cidadão Kane (1941), o aclamado filme dirigido por Orson Welles. Por meio de flashbacks, conhecemos também a Hollywood do começo dos anos 1930 a partir da perspectiva do roteirista. No entanto, Mank não é sobre Cidadão Kane, Orson Welles, o magnata William Hearst (que inspirou o personagem Kane) e nem sobre o próprio Mankiewicz. Ainda assim, o filme permeia todos esses nomes, sem se aprofundar em ninguém. Gradativamente, a irregularidade salta aos olhos. Apesar da estrutura fragmentada em flashback lembrar a narrativa de Cidadão Kane, a fragmentação lírica do filme de Welles não ecoa no filme de Fincher.
Isto não significa que o filme esteja perdido. Para salvá-lo, pelo menos parcialmente, seria preciso responder: sobre o que é o filme? Quem procura informações sobre a produção de Cidadão Kane não encontrará muita coisa. O filme não revela bastidores de uma maneira cativante. Até o processo de escrita do roteiro é apresentado de maneira repetitiva, em meio a crises de Mankiewicz com seus funcionários em uma pequena residência interiorana; e só. Quem procura um retrato da Hollywood dos anos 1930, poderá encontrar outros filmes e séries bem mais didáticos e reveladores sobre a indústria no período clássico (a série Hollywood (2020), também da Netflix, é um exemplo interessante, mesmo que mais modesto). Então, afinal, sobre o que é o filme? Uma proposta: Mank é sobre um melancólico e desesperançoso homem idealista que encontrou em uma oportunidade criativa a possibilidade de retratar as figuras que tornaram inúteis e pueris as suas antigas aspirações.
Explico como cheguei nessa hipótese: na segunda vez que vi Mank, o filme me impactou mais quando identifiquei a força de uma melancolia paradoxal que nasce em um homem cínico e idealista. Contudo, a construção desse estado ainda é problemática, pois ela se intensifica a partir de uma linha narrativa que não é a principal: a relação de Mankiewicz com a campanha política para o governador da Califórnia de 1934, na qual o roteirista se coloca mais favorável ao candidato democrata Upton Sinclair. Não que seu apoio tivesse alguma relevância, pois é tratado como um bobo da corte pelos poderosos, mas a pressão em volta de sua falta de apoio é um elemento inquietante, justamente porque não faz diferença. Ao nos identificarmos com a perturbação de Mank diante dessa pressão sem sentido, alguma conexão entre filme e espectador passa a se formar.
Mas quando o espectador começa a vislumbrar o potencial desta crise, ele já é jogado em várias outras histórias que não se desenvolvem plenamente, como ocorre nas relações entre Mankiewicz e o seu irmão, a sua esposa e a sua datilógrafa. Filmes como Cidadão Kane ou Grilhões do Passado (1955), somente para continuarmos na filmografia de Welles, resolvem esse problema plenamente: cada fragmento dos filmes tem, ao mesmo tempo, em poucas cenas e diálogos, uma vida própria, ainda que efêmera, mas que ecoa, total ou parcialmente, no problema central que move a narrativa.
Mank não alcança essa harmonia fragmentada. No entanto, justamente por sermos jogados em um mundo vasto de informações, referências e histórias, algo, em algum momento, pode causar um impacto. No meu caso, como dito, foi a história ocorrida durante a campanha para governador da Califórnia. Ali, em 1934, Mank não é um jovem idealista, mas um roteirista maduro e que conhece bem as hipocrisias arraigadas na indústria cinematográfica. Consequentemente, não faz muito sentido o incômodo que sente diante da pressão dos seus chefes: sem ser um democrata devoto e ingênuo, ele poderia, se quisesse, contornar a situação facilmente.
Aí surgem questões interessantes: até que ponto é possível continuar vivendo em um mundo corrupto que fere seus ideais? Um (“ex”) idealista, já adaptado a um sistema corrupto, pode sentir uma revolta, uma paixão, ou algo parecido? Em Mank, é possível enxergar um sim para a última questão, pois Mankiewicz não é o revolucionário ou o reacionário cínico, mas talvez algo no meio, se é que isso é possível.
Essa problemática se desenvolve relativamente bem nas relações do protagonista com os personagens Marion Davies (Amanda Seyfried) e Shelly Metcalf (Jamie McShane). Ela representa a possibilidade de autenticidade em um mundo povoado por pessoas medíocres, e ele é o artista com consciência que, em busca de oportunidades, utiliza as suas habilidades a favor de um discurso reacionário. A sensação de raridade que emana das personalidades de Davies e Metcalf enfatizam a solidão de Mank em uma sociedade retrógrada, pois seus poucos aliados de alma também são pressionados ou atormentados.
Os dilemas dos dois personagens e as relações que Mank trava com os poderosos ao seu redor se comunicam com os nossos tempos: quando o roteirista explica a diferença entre socialismo e comunismo para pessoas (ricas) que comparam socialismo com nazismo, o personagem apresenta uma paciência e uma desenvoltura intelectual que muitos estão desenvolvendo atualmente.
Além disso, Davies e Metcalf são as figuras que mais me marcaram no mar de personagens de Mank, a maioria rapidamente esquecida. Na verdade, o filme de Fincher, na minha memória, existe mais como um filme sobre Marion Davies e Mankiewicz, ainda que a personagem tenha somente quatro cenas no filme, principalmente devido à ambiguidade ao redor dos dois. Nunca é explicado o porquê da admiração entre eles no tempo passado, e nem porque Mankiewicz fez uma construção tão estereotipada da atriz no roteiro de Kane. As desculpas do roteirista são superficiais e leves, mas estão lá. Balbuciadas de forma desajeitada, elas não carregam credibilidade. Independente de qual seja a resposta “real” para o motivo dessa construção, qualquer uma precisa levar em consideração esse duplo sentimento de admiração e raiva que o roteirista sentia por figuras como Davies, e até Hearst, principalmente em relação ao que elas representavam.
Mas eu estou enxergando uma luz no fim do túnel, pois a construção desses paradoxos é problemática. Na narrativa, a relação entre as cenas do passado e do presente não tem uma motivação clara, parecendo gratuita em alguns momentos. Não que precise ser explicada totalmente, mas alguma relação (ainda que de distanciamento) precisa ser estabelecida entre as duas temporalidades. O filme não é uma obra experimental que aposta na fragmentação radical; a sua fragmentação precisa ter motivações, ainda que abertas.
Na segunda parte do filme há uma conexão mais sólida: o fim da campanha política para governador da Califórnia é articulado com o fim da escrita do roteiro e as posteriores reações das pessoas próximas de Mankiewicz. A campanha política acaba com a vitória amarga do republicano, e, no presente, o roteiro é finalizado, filmado com modificações de Welles (com quem o roteirista mantém forte atrito). Os diálogos finais entre Welles e o magnata Hearst são intercalados no final, deixando claro a posição crítica do filme em relação a Welles, ainda que a suposta vilania de Hearst não seja tão aprofundada por Fincher.
São duas derrotas em duas lutas amargas. No entanto, Mankiewicz não tem poder nenhum na luta política; o apoio de seus chefes milionários é o que realmente importa. Dito isso, ele tem o poder de criação na luta “artística”. No entanto, esse poder significa algo? Aparentemente, não, pois o roteiro, apesar de ser visto como o melhor texto que Mankiewicz escreveu, é criticado fortemente por amigos próximos, e foi filmado com várias modificações e interferências de Welles. O seu talento não trouxe nenhum alento, não fez grandes mudanças. A aparente vitória é uma derrota. Ainda assim, é uma derrota na qual ele pode fazer algo. Talvez isto signifique alguma coisa.
A construção desses sentidos, como já dito, nunca é fácil. O próprio Gary Oldman varia. Acreditei mais no seu desespero quando o personagem está sóbrio. Bêbado, ele parecia a versão estilizada de uma boemia artística estereotipada. Tinha estilo, mas sem muita verdade. A verborragia também cansa. Os dois jantares na mansão de Hearst têm diálogos interessantes, mas que às vezes se perdem em seu próprio ritmo. Aliás, o filme inteiro quer seguir uma cadência frenética que casa bem com a visão romantizada da Hollywood clássica, mas essa batida causa mais descompasso do que música.
A vida dos personagens depende mais dos corpos dos atores, dos seus gestos e olhares, e não tanto da narrativa ou do roteiro. Já no estilo, o filme busca emular algo de Cidadão Kane, principalmente a fotografia com fortes contrastes e profundidade de campo de Gregg Toland, ainda que seguindo padrões mais contemporâneos, com um uso bem maior de planos curtos e movimentos de câmera. É tudo muito bonito, mas hora ou outra eu me perguntava qual o motivo por trás dessa escolha estilística, além do básico de fazer referência a Cidadão Kane.
Para efeitos de comparação, cito, por exemplo, o filme Longe do Paraíso (2002), de Todd Haynes, no qual há uma imitação intensa da mise en scène dos melodramas de Douglas Sirk. Mas o objetivo da recriação era claro: contrastar o estilo clássico com temas que eram impossíveis para a Hollywood dos anos 1950, principalmente homossexualidade e o amor entre uma mulher branca e um homem negro.
Os temas de Mank não eram tão impossíveis nos anos 1940. Então por quê? Não fica claro. Caso a construção da visão de mundo em um ex-idealista fosse mais desenvolvida, o filme apresentaria um paradoxo bem mais contemporâneo, principalmente com o fim das grandes ideologias e a volta dos conservadores reacionários nos nossos tempos. Dessa forma, o estilo clássico do filme serviria como uma moldura que abrigaria um sentimento atual, ainda que com referências do passado, mostrando como o que vivemos hoje foi plantado anteriormente.