O constante campo de batalha
Adolfo Gomes
Destacamento Blood (2020) bem que poderia ser um “mockumentary” velado, ironicamente respeitoso, mas cáustico. A variedade da estrutura narrativa e sua “tessitura” dramática, com a constante alternância de registros – foto fixa, documento histórico, reencenação, o hibridismo entre o real e o fabular – reforçam que Spike Lee é um homem do seu tempo.
O cineasta norte-americano segue, conscienciosamente, as demandas da sensibilidade e recepção dos dias de hoje. E vai mais longe: transforma em liberdade formal o pressuposto de que vale “quase” tudo na construção das imagens-histórias na contemporaneidade. O espectador aceita, por exemplo, a inserção de um discurso de Martin Luther King Jr., como apêndice tonal da mise-en-scène; ou a mudança no “tamanho” da imagem a emular o fade in/out da passagem e oscilação espaço-temporal. Em alguns momentos chega a parecer uma apresentação didática, mas prevalece a força da entonação. Tudo feito com desconcertante naturalidade.
A mesma que permite Lee revisitar a Guerra do Vietnã, acolhendo referências de maneira frontal e desconstrutivista – notadamente, o rio abaixo, evocado do imaginário cinematográfico Coppola/Wagneriano (Apocalipse Now). Em que pese a transparência, é preciso reconhecer que há muito com o que lidar, mesmo para um filme de quase três horas. Ainda assim, Destacamento Blood avança através dos seus sobressaltos, porque estamos preparados para tal fragmentação.
Nem sempre isso foi possível. Grande parte do cinema da Nova Hollywood, só para ilustrar, era construído como documentário de ficção, mas seu “andamento” tinha que ser orgânico, absolutamente integrado ao regime de representação – certas sequências de Pat Garret e Billy the Kid (1973), de Sam Peckinpah, parecem saídas de um estudo etnográfico, mas em nada diferem, no registro ou na textura, do restante do filme.
Lee acentua, reforça cada intervenção, não no sentido brechtiano – da consciência do espetáculo – mas como gesto político: não existe mais o mundo dos filmes e a realidade: as fronteiras já se foram… O que existe é um único território, o da opressão do olhar e das ideias (Corações e Mentes (1974), para lembrar um incontornável documentário também sobre a Guerra do Vietnã).
O platô, aqui, transcende a selva vietnamita, que acolhe, uma vez mais, o encontro de veteranos de guerra em torno de um carregamento de ouro e dos restos mortais e lembranças de um antigo companheiro de batalha. Destacamento Blood não é um filme revisionista. É violento, sujo e atualíssimo – em forma e conteúdo. Lida com as emoções formativas do ser humano: amor, culpa, ganância, companheirismo e desejo. No fim das contas, sobra o homem. E Delroy Lindo, através dos monólogos extraordinariamente intensos (hustonianos!) é a imagem dessa dialética e fragilidade.
Para Spike Lee, conforme a assertiva de Sam Fuller, o cinema será sempre um campo de batalha.