
Os fantasmas somos nós?
Rubens Fabricio Anzolin
Desde Sully (2016), o cinema de Clint Eastwood é mais sobre perguntas que sobre respostas. É mais sobre os homens que sobre um homem em si. É muito mais sobre nós que sobre ele mesmo.
Desde Sully (2016), o cinema de Clint Eastwood desafia uma convenção: a do gênero. É impossível enquadrá-lo. Ou melhor: é possível enquadrá-lo de diferentes formas. Pensemos: Sully, em essência, pode variar entre um estudo de personagem e um drama de tribunal, mesmo que a mim – e não lembro de isso constar em qualquer descrição do filme que tenha visto – permaneça em essência um filme de terror. Bom, Sully é sobre os nossos próprios fantasmas, nossos próprios tormentos. (Quantas cenas de pesadelo ou flashback tem os filmes recentes de Eastwood? De antemão, me recordo de Sniper Americano (2015), Sully e O Caso Richard Jewell (2019), mas podem haver mais). Se Sully, que por princípio é plastificado como um drama crasso e ao fim se revela um terror fantasmagórico (pensemos na luz fria de Tom Stern, na prisão do personagem de Tom Hanks na cidade do acidente, na expropriação do indivíduo legado a lidar com o sistema, a justiça – o “monstro” – sozinho), o que se pode dizer sobre 15h17 – Trem Para Paris (2018) e A Mula (2018)?

Rapidamente: 15h17 se veste de filme de ação, de road trip, mesmo que por dentro seja quase uma jornada ao Oeste – uma desmistificação pelo meio do caminho: descobrir quem se é, quem se foi, o que pode vir a ser; A Mula se veste de western, de filme policial, quando na verdade talvez seja o mais simbólico e pessoal dos filmes de Eastwood: cinema sobre conversas com o legado, mínimo, sobre vencer a si mesmo. Nada de violência, cinema sobre dançar despido.Falei anteriormente que desde Sully o cinema de Eastwood é mais sobre nós que sobre ele mesmo. Retomo: são todos filmes sobre a trivialidade do humano, sobre sacar fora as peças de roupa que formam a fantasia até que se chegue ao corpo nu, duro. São filmes em exercício – sair do mito, do herói (o comandante que salva uma tripulação, os civis que param um ataque terrorista, o nonagenário que trafica cocaína, o segurança de patrulha que encontra uma bomba) para chegar ao humano (o drama solitário do Capitão Sully, a infância militarizada e longe da paternidade dos americanos em Paris, a dureza da velhice sem a família do personagem de Earl, o hedonismo no ato do cumprimento do dever de Jewell). Em tese, são filmes que decalcam seus personagens para quem os assiste. Faz com que saiam do posto hierárquico, sobre-humano, para que alcancem o degrau da banalidade, da vida cotidiana. Eastwood tira-nos do pessoal para locomover-nos ao coletivo.
Falei anteriormente que desde Sully o cinema de Eastwood é mais sobre nós que sobre ele mesmo. Retomo: são todos filmes sobre a trivialidade do humano, sobre sacar fora as peças de roupa que formam a fantasia até que se chegue ao corpo nu, duro. São filmes em exercício – sair do mito, do herói (o comandante que salva uma tripulação, os civis que param um ataque terrorista, o nonagenário que trafica cocaína, o segurança de patrulha que encontra uma bomba) para chegar ao humano (o drama solitário do Capitão Sully, a infância militarizada e longe da paternidade dos americanos em Paris, a dureza da velhice sem a família do personagem de Earl, o hedonismo no ato do cumprimento do dever de Jewell). Em tese, são filmes que decalcam seus personagens para quem os assiste. Faz com que saiam do posto hierárquico, sobre-humano, para que alcancem o degrau da banalidade, da vida cotidiana. Eastwood tira-nos do pessoal para locomover-nos ao coletivo.
Cheguemos, enfim, a O Caso Richard Jewell (2020). Se os filmes de Clint, de Sully até A Mula, eram sobre esse revide farsesco que reside na figura do herói, Richard Jewell é quase como um tratado de completude: ao contrário do piloto de avião, dos militares treinados ou do velhote motorista, Jewell é figura fracassada, de baixa autoridade. Não sobra espaço para o sê-lo outra coisa – é zombado pelos adolescentes, ignorado pelo cameraman, desrespeitado pelos policiais. O que reside em Jewell, então, não é fantasia nem disfarce, é idôneo: Richard é um ser moral, é humano, completo de defeitos, absolutamente regrado. Encontramos o ponto em que Eastwood não mais desconstrói o herói para prová-lo humano, mas sim verte-o do coletivo (homem comum) não para o heroísmo, mas para um ato heroico. Richard Jewell não é especial, complexo, treinado; pelo contrário, Jewell mora com a mãe, sente diarreia e sente-se constrangido quando questionam sua sexualidade.

Pois então, se O Caso Richard Jewell é um complementar dos filmes de Clint Eastwood (de Sully até A Mula, em ideia mesma e processo inverso), o que o tornaria tão especial?
Desde Sully, os filmes de Clint Eastwood são mais sobre perguntas que sobre respostas. Pois, se são filmes sobre o homem banal, o americano qualquer, comum, civil; também são filmes sobre nós, seres-humanos, quaisquer, banais – em essência: civis.
E se, para todos os efeitos, o que Eastwood faz em todos os seus filmes a partir de Sully é recordar nossa capacidade de civilidade quando somos atravessados por uma assombração, uma situação de risco, um ponto de perigo, automaticamente também nos questiona acerca de seus efeitos. Grosso modo: humano versus humano, moral versus moral. Os fantasmas, por via das dúvidas, somos nós.
Se em Sully é o humano que salva uma tripulação, é também o sistema que tenta derrubá-lo. Isso torna-se ainda mais claro em 15h17 no confronto homem a homem, corpo a corpo. E talvez nenhum desses filmes citados no texto possa relegar mais a questão das perguntas que o cineasta nos indaga que O Caso Richard Jewell: não seria o mesmo civil que tenta incriminar um homem inocente? Levá-lo à derrocada para provar um ponto, tornar sua vida um inferno em prol da notícia?

O que Eastwood faz aqui é lembrar-nos de que, se os heróis somos nós, também somos nós a assombração – algo que toda a aura cinza da filmografia de Eastwood pós-Tom Stern comprova, e que aqui na luz de Yves Bélanger se ressalta: Jewell é personagem das sombras – humano como nós, todos os outros – mas fadado a lidar com os fantasmas do peso da banalidade. Jewell é julgado por ser um possível “herói terrorista”, de perfil farsesco, de luz fraca – homem comum. Talvez, fosse ele de perfil brusco, galanteador, luminoso, carregasse menos o peso dos fantasmas, as dores do cumprimento do dever.
E no moralismo de Eastwood, nesse ringue de faroeste homem contra homem, longe do disfarce do herói, longe dos apetrechos de autoridade – briga limpa, mano-a-mano, vence sempre quem tem mais coragem para ser si próprio. Para lembrar do que de si é mais defeituoso, não mais memorável. Richard é inocentado pois sua mãe chora em frente à câmera, ao público, ao mundo. Richard é inocentado não necessariamente por que é humano, por que é trivial, mas sim por que é necessário que se recorde aos outros – humanos, triviais, fantasmas – o que se é: comum.