As tantas vozes do silêncio
Letícia Badan
Eliza Hittman, cineasta e roteirista que no passado fora responsável por títulos como Parece Amor (2014) e Ratos de Praia (2017) assina em seu terceiro longa-metragem o roteiro e a direção. A sexualidade adolescente, tema caro e notado em produções anteriores, declara-se como ponto de partida do lançamento de 2020, vencedor do Urso de Prata do Festival Internacional de Cinema de Berlim. Não se trata de um filme confortável e, no entanto, certa beleza perpassa a história. Mais que pelo tema, esse desconforto se manifesta como pano de fundo do cotidiano das personagens, dilatando o drama inicialmente privado e íntimo para a esfera do coletivo. E embora a trama se teça sobre o fio individual, encarando o tema do aborto, uma denúncia mais geral ressurge na urdidura, fundamentando Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre como uma obra concomitantemente sensível e política. Indubitavelmente, o longa de Hittman nos reporta a Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias (2007), filme que inclusive serviu de inspiração para a diretora, não por suas evidentes qualidades, mas pelas “falhas”, como ela própria comenta em entrevistas. Sobretudo, lhe incomodava a empatia pálida com a qual Mungiu tingiu seu drama.
A aproximação, contudo, se faz em algumas passagens do filme. Em sequências, enquadramentos e mesmo no caráter silencioso de ambas as narrativas, com suas protagonistas isoladas em espaços de clausura e incompreensão. Mas Hittman subverte essa trama e encontra essencialmente no silêncio a força motriz de seu cinema. O filme entrega uma visão muito particular sobre a condição do feminino na atualidade. Ele denuncia, num sentido mais amplo, uma sociedade pouco receptiva à mulher, que se reitera persistentemente ao longo de todos os gestos, ações, falas e olhares lançados pelas figuras masculinas no decorrer da história. Há sempre uma violência embutida nos homens. Na escola, no ambiente familiar, no trabalho ou na viagem, as duas protagonistas se veem obrigadas a lidar e sobreviver a constantes assédios e abusos.
Mas as inspirações para a realização da obra não se resvalem somente no longa romeno. Hittman tomara conhecimento de um caso de negligência médica ocorrido em 2018, no Hospital Universitário de Galway na Irlanda. Repercutido mundialmente, o episódio levou a óbito a jovem indiana Savita Halappanavar por septicemia. O caso pôs em xeque a 8ª Emenda Constitucional irlandesa, que garantia ao feto o direito à vida, e permitia a realização do procedimento de interrupção gestacional somente para casos em que a vida da mãe fosse posta em risco. A emenda foi insuficiente para salvar a vida de Sativa, mas a comoção com sua tragédia levantou questionamentos acerca da lei de 1983, resultando na aprovação, em 2018, da 36ª Emenda Constitucional, que revogava a anterior. A trágica história de Savita fez Hittman se questionar acerca da política de direitos da mulher, do acesso legal ao aborto e das diversas imbricações burocráticas que se mostram como verdadeiros impedimentos para a segurança garantida da mulher. As problemáticas da gravidez indesejada têm ganhado cada vez mais espaço no campo cinematográfico, e são ponto de encontro de diversos lançamento dos últimos anos, como o road-movie Unpregnant (2020), de Rachel Lee Goldenberg; Saint Frances (2019), de Alex Thompson; ou ainda com tom mais perturbador, Devorar (2020), de Carlo Mirabella-Davis.
Em Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre, acompanhamos o drama de Autumn Callahan (Sidney Flanigan), uma jovem de 17 anos residente em uma cidade interiorana, na Pensilvânia. Após uma visita a uma clínica local e a descoberta – equivocada – de 10 semanas de gestação, Autumn apela para tentativas frustradas de aborto autoinduzido, em detrimento da lei estadual que não permite a realização do procedimento para menores de 18 anos. As sequências, como boa parte do filme, causam inquietação. Nós a vemos ingerir uma quantidade exorbitante de pílulas de vitamina C e, numa exploração ainda mais violenta e aflitiva, Autumn inflige socos contra o próprio ventre – uma sequência que sintetiza a incomensurabilidade da rede de abusos na qual se vê aprisionada. A fim de realizar o procedimento sob amparo legal, Autumn embarca em uma viagem para Nova York em companhia de sua prima, Skylar (Talia Ryder), onde as leis são mais inclusivas.
O filme se descortina, portanto, nos poucos dias que compreendem a descoberta da gravidez e seu percurso nas diversas clínicas, tanto em sua cidade natal, quanto em Nova York. Apesar de nossa participação no drama de Autumn se concentrar no transcurso de sua viagem, a duração da jornada parece interminável. O procedimento, que em teoria levaria um dia para ser realizado, se estende por três morosas e insones noites, devido ao diagnóstico impreciso acerca do tempo da gravidez – 18 semanas, na realidade. Autumn e Skylar perambulam como duas outsiders que sobrevivem às margens de Manhattan, levando consigo somente as roupas do corpo, um montante de dinheiro rapidamente engolido pelo sistema de saúde, e uma mala que, arrastada por entre as ruas e escadarias da cidade, mais parece uma espécie de materialização metafórica do peso burocrático, social e dramático de sua condição.
Embora Jasper, o rapaz que conhecem no ônibus (Théodore Pellerin), comente diversas vezes sobre as qualidades da cidade, Autumn e Skylar não são turistas prontas a desbravar as novidades. Sua permanência ali se faz somente em locais de trânsito e em não-lugares, onde a existência se camufla no anonimato, dissolvendo-as entre as incontáveis misérias individuais na turba. A Nova York que vemos aparece desfocada nas ruas movimentadas da Time Square, nas estações de trem, nos vagões de metrô que revelam assediadores, nas lanchonetes 24h, nas assépticas salas de espera dos consultórios médicos. Há uma qualidade opressora em tudo isso, uma sensação de esmagamento e claustrofobia, numa cidade de interiores iluminados por lâmpadas fluorescentes, e cujo céu é aludido somente na artificialidade da decoração de nuvens que recobre o teto de uma das clínicas. Há algo de inóspito nessa Nova York pervígil de Hittman, e sua aspereza confirma um evidente não-pertencimento.
Mas isso não ocorre somente em Nova York. A câmera aprisiona tal sensação desde o nosso primeiro encontro com a protagonista. A forma como Hittman inicia sua trama, no palco, e as primeiras falas de Autumn consolidam uma via de manifesto de sua silente incompreensão, reiterada ao longo do filme. Somos apresentados a ela durante um show de talentos na escola local, onde a jovem oferece uma performance musical que parece a confissão mais sincera de suas angústias. Em meio às apresentações animadoras de seus colegas, entre rockabilly e paródias de Elvis Presley, a voz de Autumn ecoa dor, amor, impotência e submissão numa reinterpretação melancólica de He’s Got the Power, cuja letra manifesta a denúncia e sintoma de sua situação. Isso ocorre novamente na sequência do karaokê, em Nova York. E Don’t Let the Sun Catch You Crying parece imortalizar aquela noite inacabável, na qual se faz necessário esconder do dia prestes a surgir não somente as lágrimas, como também a dor lacerante de caminhar desconfortavelmente pela cidade com uma laminária no cérvix. Flanigan, que também é cantora, faz aqui sua estreia no cinema, e o realismo com o qual absorve o drama de sua personagem é tocante.
Desde o início, somos postos diante de diversas evidências de relações instáveis. Autumn parece uma desconhecida em meio às irmãs mais novas, à mãe e ao padrasto, Ted (Ryan Eggold). Suas afinidades afetivas são corroídas e maculadas. A residência e a relação familiar são problemáticas e as poucas palavras que ouvimos do patriarca confirmam a turbulência do relacionamento. O drama se estende ainda numa denúncia mais alargada de negligência, insinuado pelas palavras de Ted à cadela da família – oscilante entre o elogio e o insulto –, ou ainda na cerveja entregue à adolescente pela mãe. Os olhares de Autumn para Ted, sempre furtivos, parecem tentar fugir de seu encontro. Será que estamos diante de um caso de abuso entre adolescentes de mesma idade, ou a aspereza da relação paterna delata algo de ordem mais complexa?
De forma similar, sua invisibilidade se faz notar em diversas passagens do filme, sendo talvez a visita à primeira clínica, em Ellenboro, a mais delatora. Autumn recebe um tratamento pouco acolhedor do corpo médico local. A instituição parece um lugar congelado no tempo, onde o excesso de ornamentação característico desse espaço de confidencialidade feminino – isto é, as flores artificiais, a decoração antiquada e até mesmo a idade dos funcionários – parece refletir diretamente uma visão ultrapassada e preconceituosa acerca do direito ao aborto. Não há suporte profissional ou emocional para a protagonista. E até a marca do teste de farmácia que realiza na clínica, Right Time, parece ecoar certa ironia. “Um positivo é sempre um positivo”, “este é o som mais mágico que você escutará” são exemplos das falas que escuta e que confirmam a falta de empatia com a gravidez adolescente. Os panfletos que recebe apontam mais da presença paterna nas relações infantis, ao invés de denotarem preocupação e solidariedade com a mulher.
É nesse momento em que a médica, após perceber a inclinação da jovem para a interrupção da gravidez, apresenta-lhe o documentário Hard Truth, um filme de propaganda antiaborto realizado pela American Portrait Films. A sequência é um tanto quanto catártica, devo confessar, pois trouxe à minha mente um episódio da adolescência, quando certa professora, sob pressupostos similares àqueles da doutora, exibiu um documentário de veia parelha, também produzido pela American Portrait Films e intitulado The Silent Scream (1984). Talvez o conteúdo daquele VHS esclareça um pouco sobre o tom conservador e obsoleto do ambiente clínico de Ellenboro, engessado em fanatismos religiosos de origem duvidosa, numa falsa promessa de zelo pela vida.
Como um filme que fala sobre o privado, a cineasta aproveita esses recursos de proximidade para doar simultaneamente a sensação de um mundo recluso, particular e introvertido, enquanto confere certa ideia de desajuste, de pouca familiaridade com o entorno. A fotografia de Hélène Louvart consegue interpelar pela câmera na mão certa ideia de instabilidade e intimidade que flui em sintonia com a atmosfera tímida e deslocada das personagens. Há uma atenção aos detalhes, majoritariamente expressa pelo uso recorrente do primeiro plano, do close e do plano-detalhe, que conferem certa qualidade íntima e privada às cenas, enquanto igualmente evidenciam sua inospitalidade. Desta forma, a mise en scène reporta uma inegável falta de familiaridade com o espaço e as pessoas de sua vida, por meio dessa insinuação fragmentária, imposta pelos detalhes. O monocromatismo outonal da fotografia e a granulação perceptível do filme realçam a atmosfera gélida e solitária.
Esmaecida como a estação que a nomeia, introvertida e desarticulada tanto em sua cidade, quanto na Nova York desconhecida na qual percorre sua jornada, Autumn encontra cumplicidade e o apoio na figura de Skylar, numa relação que, persistentemente, ultrapassa os limites das palavras. O silêncio impera, e prevalece também certa qualidade do dizer através dos gestos entrecortados pela câmera avizinhada com cautela, pela revelação dos retalhos que compõem sua narrativa de adversidades. Uma sequência parece acusadora de tudo isso: Skylar descobre sobre a gravidez da prima no banheiro do supermercado em que trabalham. Por entre a fresta da cabine, a câmera deixa entrever um fragmento do mundo sigiloso de Autumn, como se Skylar adentrasse um universo completamente individual e confidencial, tornando-se, a partir de então, cúmplice sincera de seu drama. Skylar é a única consistência no mundo perturbado de Autumn.
Essa sensação de cumplicidade e acolhimento aparece também em um dos momentos mais impactantes do filme, durante a entrevista com a assistente social. Interpretada por Kelly Chapman, uma assistente social de uma clínica de Planned Parenthood, Autumn sintetiza nas lágrimas e nas expressões interrompidas pelo embaraço, tentando pesar nos termos postos pelas palavras que compõem o título do filme, as marcas de traumas passados ou presentes, submersas na memória. Diante delas, as respostas parecem transitar nas entrelinhas, deixando latente algo da ordem do não-dito. É exatamente essa sensação que percorre o filme de Eliza Hittman, em que a mera existência feminina é indelével resistência. A câmera repousa por longos 11 minutos sobre o rosto de Autumn, o qual expressa, com um incomodo quase emudecido, suas respostas à assistente.
Muito do filme se mantém sob o véu da sugestão, principalmente os motivos que levaram Autumn aos eventos dispostos no decorrer da trama. Sua imobilidade dramática perante os eventos manifesta-se como resiliência. Apesar do pouco rendimento que o filme teve devido à pandemia, as indicações e prêmios recebidos confirmam sua grandiosidade. Não se trata apenas de uma visão feminista sobre o tema, mas de uma obra que aborda com precisão técnica a simbologia poética constituinte desse olhar confidencial e humano acerca de um drama coletivo.